terça-feira, 22 de novembro de 2022

Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

 


Argonautas

 

E se a alma

deve conhecer-se a si mesma

ela deve voltar os olhos para outra alma: *

o estrangeiro e inimigo, vimo-lo no espelho.

Estavam bem, meus companheiros, nunca se queixavam

do trabalho ou da sede ou da geada,

possuíam o porte das árvores e das ondas

que aceitam o vento e a chuva

aceitam a noite e o sol

sem que se alterem em meio ao que se altera.

Estavam bem, por dias inteiros

de olhos baixos eles suaram defronte aos remos

respirando em cadência       

e seu sangue tornava rubra uma pele submissa.

 

Por vezes cantavam, de olhos baixos

enquanto passávamos pela ilha seca e seus figos

rumo ao ocidente, para além do cabo

dos cães que ladram.

Se é para conhecer-se a si mesmo, diziam

deve-se olhar no fundo da alma, diziam

e os remos batiam no ouro dos mares

ao pôr do sol.

 

Passamos por muitos cabos muitas ilhas o mar

levando a outro mar, gaivotas e focas.

Por vezes mulheres desafortunadas choravam

lamentando seus filhos perdidos

e outras enfurecidas procuravam por Alexandre o Grande

e glorias sepultadas no coração da Ásia.

 

Atracamos em praias repletas de fragâncias noturnas

e gorjeios de pássaros, águas que deixavam nas mãos

a memória de grandes venturas.

Mas a viagem não terminou.

Suas almas se confundiam com os remos e as toleteiras

com a solene face da proa

com a vigília dos lemes

com a água que estilhaçava suas imagens.

Os companheiros morreram um a um,

de olhos baixos. Seus remos

assinalam o local onde adormecem à beira-mar. **

Ninguém se lembra deles.  Justiça!



Argonauts


And if the soul
is to know itself
it must look into a soul:*
the stranger and enemy, we've seen him in the mirror.

 

They were fine, my companions, they never complained
about the work or the thirst or the frost,
they had the bearing of trees and waves
that accept the wind and the rain
accept the night and the sun
without changing in the midst of change.
They were fine, whole days
they sweated at the oars with lowered eyes
breathing in rhythm
and their blood reddened a submissive skin.

 

Sometimes they sang, with lowered eyes
as we were passing the dry island with the Barbary figs
to the west, beyond the cape
of the barking dogs.
If it is to know itself, they said
it must look into a soul, they said
and the oars struck the sea's gold
in the sunset.

We went past many capes many islands the sea
leading to another sea, gulls and seals.
Sometimes unfortunate women wept
lamenting their lost children
and others raging sought Alexander the Great
and glories buried in the heart of Asia.

 

We moored on shores full of night-scents
with birds singing, waters that left on the hands
the memory of great happiness.
But the voyages did not end.
Their souls became one with the oars and the oarlocks
with the solemn face of the prow
with the rudder's wake
with the water that shattered their image.
The companions died one by one,
with lowered eyes. Their oars
mark the place where they sleep on the shore.**

No one remembers them. Justice!

 

 Notas:

(*) Referência a Alcebíades, de Platão. Em nota, Seferis nos diz que essas palavras, ditas por Sócrates à Alcibíades, produziram nele uma sensação aparentada à outra, evocada pelos versos seguintes do poema “A morte dos amantes”, de Baudelaire, aqui, na tradução de Ivan Junqueira:

 

Nos deux coeurs seront deux vastes flambeaux,
Qui réfléchiront leurs doubles lumières
Dan nos deux esprits, ces miroirs jumeaux.

 

Meu coração e o teu, flamas sensuais,

Refletirão em dobro as suas cores

Em nossas almas, dois gêmeos cristais.

 

(**) Referência à Odisseia de Homero, na qual a sombra de Elpenor, o mais jovem dos companheiros de Odisseu, pede-lhe que seu remo seja plantado em sua sepultura à beira-mar, para perpetuar sua memória.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Miguel de Unamuno (Espanha, 1864 - 1936)

 Diz-me o que dizes, mar! (traduzido com a colaboração de Isaias Edson Sidney)

Diz-me o que dizes, mar, que dizes, diz-me!
Entretanto não o digas; teus cantares
são, com o coro de teus vários mares,
uma única voz que cantando geme.
Esse mero gemido nos redime
da palavra fatal, e seus pesares,
sob o marulho de nossos azares,
o secreto segredo nos oprime.
Injusto, o destino nos atraiçoa,
silencia a culpa e dá-nos o castigo;
a vida ao que nasceu não lhe perdoa;
a esta enorme injustiça vê comigo,
que assim meu canto com teu canto entoa,
e não me digas o que não te digo.

¡Dime qué dices, mar!

¡Dime qué dices, mar, qué dices, dime!
Pero no me lo digas; tus cantares
son, con el coro de tus varios mares,
una voz sola que cantando gime.
Ese mero gemido nos redime
de la letra fatal, y sus pesares,
bajo el oleaje de nuestros azares,
el secreto secreto nos oprime.
La sinrazón de nuestra suerte abona,
calla la culpa y danos el castigo;
la vida al que nació no le perdona;
de esta enorme injusticia sé testigo,
que así mi canto con tu canto entona,
y no me digas lo que no te digo.
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segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Lilian Serpas (El Salvador: 1905 – 1985)

Beethoven


Vertical na rosa do som produzido

Ouves vibrar o cosmos, que em si gira

– de uma inaudível clave? – e de teu ouvido

– vórtice de uma clave? – livre paira,

 

ao acorde cifrado, e uma única nota

conjuga no cerne do teu pensar

um Universo aberto na remota

abóbada, pentagrama em teu pulsar;

 

e tua mão estelar em contraponto

– beethoveniano de alta sinfonia? –

tira do tempo universal conjunto:

 

maré quando explode, oh Deus!, que move,

o irrefreável fluir da harmonia,

e sobressalta o eterno com o breve!

 

Beethoven


Vertical en la rosa del sonido          

Oyes vibrar el cosmos, que en sí rota  

– ?desde inaudible clave? – y de tu oído    

– ?vórtice de una clave? – libre flota,    

                                        

al acorde cifrado, y sola nota          

conjuga en unidad de tu sentido,        

un Universo abierto en la remota        

bóveda, pentagrama en tu latido;        

                                        

y tu mano estelar en contrapunto        

– ?beethoveniano de alta sinfonía? –         

pulsa del tiempo universal conjunto:    

                                        

marea cuando estalla ¡oh Dios, que mueve,

el perenne fluir de la armonía,        

y amenaza lo eterno con lo breve! 


domingo, 31 de julho de 2022

Lilian Serpas (El Salvador: 1905 – 1985)

 

A noite

 

 

Criatura entre outros ‘egos’ desligada,

a noite, em concreção do não concreto

– ao não ser a matéria resignada –

pende de um mundo em seu sofrer concreto...

 

Desnace atrás da luz, finge o secreto

de ver-se no vazio, quando nada

– a não ser a leveza do esqueleto –

equilibra-a deixando-a inventada...

 

O brevíssimo evento que a decifra,

concentra – com voz harmônica a cifra,

que em sua esférica forma a resolve...

 

E no possível, o impossível, erra

– com seus olhos sem luz – indo à procura

da inviolável fulgência que: a envolve...!

 

La noche

 

Criatura entre otros 'egos' desligada,

la noche, en concreción de lo inconcreto

– al no ser la materia resignada –

cuelga de un mundo en su dolor concreto...

 

Desnace tras la luz, finge el secreto

de verse en el vacío, cuando nada

– si no la levedad del esqueleto –

la equilibra dejándola creada...

 

Lo infinitesimal que la descifra,

centra – con voz armonica la cifra,

que a su esférica forma la resuelva...

 

Y en lo posible, o imposible, vaga

– con sus ojos sin luz – yendo a la zaga

de la inviolable lumbre que: ¡la envuelve...!

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Octavio Paz (México: 1914 – 1998)

 

Noturno de São Ildefonso

 

1

Inventa a noite em minha janela

                                          outra noite

outro espaço:

                 festa convulsionada

em um metro quadrado de negrume.

                                                  Momentâneas

confederações de fogo,

                                          nômades geometrias,

números errantes.

                         Do amarelo ao verde ao vermelho

desenreda-se a espiral.

                                  Janela:

lâmina imantada de chamamentos e respostas,

caligrafia de alta voltagem,

mentido céu/inferno da indústria

sobre a pele cambiante do instante.

Signos-sementes:

                 a noite os dispara,

sobem,

        estouram lá em cima,

                                  precipitam-se,

já queimados,

                 em um cone de sombra,

                                          reaparecem,

fogos divergentes,

                                  cachos de sílabas,

incêndios giratórios,

                                  dispersam-se,

                                                   cacos outra vez.

A cidade os inventa e os anula.

Estou à entrada de um túnel.

Estas frases perfuram o tempo.

Talvez eu seja esse que espera no fim do túnel.

Falo com os olhos fechados.

                                          Alguém

plantou em minhas pálpebras

um bosque de agulhas magnéticas,

                                                  alguém

guia a fila destas palavras.

                                          A página

tornou-se em formigueiro.

                                  O vazio

estabeleceu-se na boca de meu estômago.

                                                   Caio

interminavelmente sobre esse vazio.

                                          Caio sem cair.

Tenho as mãos frias,

                         os pés frios

– mas os alfabetos ardem, ardem.

                                          O espaço

faz-se e se desfaz,

                         A noite insiste,

a noite apalpa minha testa,

                                  apalpa meus pensamentos.

O que quer?

 

2

 

Ruas vazias, luzes tortas.

                                  Em uma esquina

o espectro de um cão.

                         Procura, no lixo,

um osso fantasma.

                 Alvoroço de rinha de galo:                     [1]

pátio de cortiço e sua altercação.

                                          México, por volta de 1931.

Rueiros pardais,

                         um bando de meninos

com os jornais que não venderam

                                          faz um ninho.

Os faróis inventam,

                         na solidão,

charcos irreais de luz amarelenta.

                                  Aparições,

o tempo se abre:

                         um sapateado lúgubre, lascivo:

sob um céu de fuligem

                                 a labareda de uma saia

C’est la mort – ou la morte...

                                          O vento indiferente

arranca nas paredes anúncios lacerados.

A esta hora

                 os muros negros de São Ildefonso

são negros e respiram:

                         sol tornado tempo:

tempo tornado pedra,

                         pedra tornada corpo.

Estas ruas foram canais.

                                  Ao sol,

as casas eram prata:

                         cidade impenetrável,                    [2]

lua caída no lago.

                         Os crioulos levantaram,                [3]

sobre o canal aterrado e o ídolo enterrado,

outra cidade

                 – não branca: rosa e ouro –

ideia tornada espaço, número tangível.

                                                  Assentaram-na

no cruzamento dos oito caminhos,

                                          suas portas

ao invisível abertas:

                         o céu e o inferno.

Bairro adormecido.

                 Andamos por galerias de ecos,

por entre imagens rotas:

                         nossa história.

Calada nação das pedras.

                                  Igrejas,

vegetação de cúpulas,

                         suas fachadas,

petrificados jardins de símbolos.

                                          Encalhados

na proliferação rancorosa de casas anãs,

palácios humilhados,

                         fontes sem água,

afrontados frontispícios.

                                  Cúmulos,

madrepérolas insubstanciais:

                                          acumulam-se

sobre os graves moles,

                         derrotadas

não pelo padecimento dos anos,

pelo obróbrio do presente.

                                  Praça do Zócalo,

vasta como firmamento:

                         espaço diáfano,

frontão de ecos.

                 Ali inventamos,

entre Aliocha K. e Julien S.,

                         destinos de relâmpago

cara ao século e suas camarilhas.                            [5]

                                  Arrasta-nos

o vento do pensamento,

                         o vento verbal,

o vento que brinca com espelhos,

                                  senhor dos reflexos,

construtor de cidades de ar,

                                  geometrias

suspensas pelo fio da razão.

                                  Vermes gigantes:

amarelos bondes apagados.

                         Esses e zês:

um carro louco, inseto de olhos malignos.

                                  Ideias,

frutos ao alcance da mão.

                         Frutos: astros.

                                          Ardem.

Arde, árvore de pólvora,

                 o diálogo adolescente,

súbita armação chamuscada.

                         12 vezes

golpeia o punho de bronze das torres.

                                                   A noite

explode em pedaços,

                         junta-os logo a si mesma,

intacta, agrega-se.

                 Dispersamo-nos,

não lá na praça com seus trens queimados,

                                                           aqui,

sobre esta páginas: letras petrificadas.

 

3

O jovem que caminha por este poema,

entre San Ildefonso e o Zócalo,

é o homem que o escreve:

                                  esta página

também é uma caminhada noturna.

                                          Aqui encarnam

os espectros amigos

                         as ideias se dissipam.

O bem, quisemos o bem:

                                  endireitar ao mundo.

Não nos faltou inteireza:

                         nos faltou humildade.

O que quisemos não o quisemos com inocência.

Preceitos e conceitos,

                                  soberba de teólogos:

golpear com a cruz,

                         fundar com sangue,

levantar a casa com tijolos de crime,

decretar a comunhão obrigatória.

                                          Alguns

converteram-se em secretários dos secretários

do Secretário Geral do Inferno.

                                          A raiva

tornou-se filósofa,

                 sua baba cobriu o planeta.

A razão desceu à terra,

tomou a forma do patíbulo

                         – e adoram-na milhões.

Enredo circular:

                 todos fomos,

no Grande Teatro do Imundo,

juízes, verdugos, vítimas, testemunhas,

                                          todos

levantamos falso testemunho

                                  contra os outros

e contra nós mesmos.

                         E o mais vil: fomos

o público que aplaude ou boceja em seu assento.

A culpa que não se sabe culpa,

                                  a inocência,

foi a culpa maior.

                         Cada ano foi monte de ossos.

Conversões, retratações, excomunhões,

reconciliações, apostasias, abjurações,

ziguezagues das demonolatrias e das androlatrias,

os embruxamentos e os desvios:

minha história,

                 são as histórias de um erro?

A história é o erro.

                         A verdade é aquilo,

muito além das datas,

                         muito aquém dos nomes,

que a história desdenha:

                                 o cada dia

 – pulsação anônima de todos,

                                 pulsação

única de cada ano –

                         o irrepetível

cada dia idêntico a todos os dias.

                                          A verdade

é o fundo do tempo sem história.

                                          O peso

do instante que não pesa:

                                 umas pedras com sol,

vistas há tempos e que hoje regressam,

pedras de tempo que são também de pedra

sob este sol de tempo,

sol que vem de um dia sem data,

                                          sol

que ilumina estas palavras,

                                  sol de palavras

que se apaga ao nomeá-las.

                                  Ardem e se apagam

sóis, palavras, pedras:

                         o instante os queima

sem queimar-se.

                 Oculto, imóvel, intocável,

o presente – não suas presenças – está sempre.

Entre o fazer e o ver,

                         ação ou contemplação,

escolhi o ato de palavras:

                                  fazê-las, habitá-las,

dar olhos à linguagem.

                         A poesia não é a verdade:

é a ressurreição das presenças,

                                          a história,

transfigurada na verdade do tempo não fechado.

A poesia,

                 como a história, se faz;

                                          a poesia,

como a verdade, se vê.

                         A poesia:

                                          encarnação

do sol-sobre-as-pedras em um nome,

                                                   dissolução

do nome em um mais além das pedras.

A poesia,

                 ponte suspensa entre história e verdade,

não é caminho que leva a isto ou aquilo:

                                                  é ver

a quietude no movimento,

                                  o trânsito

na quietude.

                 A história é o percurso:

não vai a nenhuma parte,

                         todos o percorremos,

a verdade é percorrê-lo.

                                  Não vamos nem voltamos:

estamos nas mãos do tempo.

                                          A verdade:

saber-nos,

                 desde a origem,

                                  suspensos.

Fraternidade sobre o vazio.

 

4

As ideias dissipam-se,

                         caem os espectros:

verdade do vivido e padecido.

Resta um sabor quase vazio:

                                  o tempo

– furor compartilhado –

                         o tempo

– esquecimento compartilhado –

                                          por fim transfigurado

na memória e suas encarnações.

                                                  Resta

o tempo tornado corpo compartilhado: linguagem.

Na janela,

                 simulacro guerreiro,

                                  acende-se e se apaga

o céu comercial dos anúncios.

                                  Atrás

apenas visíveis,

                         as constelações verdadeiras.

Aparece,

                 entre caixas d’água, antenas, terraços,

coluna líquida,

                         mais mental que corpórea,

cascata de silêncio:

                                 a lua.

                                          Nem fantasma nem ideia:

foi deusa e é hoje claridade errante.

Minha mulher dorme.

                                 Também é lua,

claridade que transcorre

                                  – não entre escolhos de nuvens,

entre as penhas e as penas dos sonhos:

também é alma.

                 Flui sob seus olhos fechados,

de sua testa se precipita,

                         torrente silenciosa,

até seus pés,

                 em si mesma se desapluma

e de si mesma brota,

                         seus pulsares a esculpem

inventa-se ao percorrer-se,

                                  copia-se ao inventar-se

entre as ilhas de seus seios

                                          é um braço de mar,

seu ventre é a lagoa

                                 onde se desvanecem

a sombra e suas vegetações,

                                          flui por seu talhe,

sobe,

                 desce,

                         em si mesma se esparrama,

                                                           ata-se

ao seu fluir,

                 dispersa-se em sua forma:  

também é corpo.

                         A verdade

é o marulho de uma respiração

e as visões que veem uns olhos fechados:

palpável mistério da pessoa.

A noite está a ponto de transbordar-se.

                                          Clareia.

O horizonte tornou-se aquático.

                                  Transbordar-se

vinda da altura desta hora:

                         morrer

será cair ou subir,

                 uma sensação ou uma cessação?

Fecho os olhos,

        ouço em meu crânio

os passos de meu sangue,

                         ouço

passar o tempo por minhas têmporas.

                                  Ainda assim estou vivo.

O quarto areou-se de lua.

                                          Mulher:

fonte na noite.

                         Eu me fio a seu fluir sossegado.

 

 

 

Nocturno de San Ildefonso

 

1

Inventa la noche en mi ventana
                                                         otra noche
otro espacio:
                        fiesta convulsa
en un metro cuadrado de negrura.
                                                              Momentáneas
confederaciones de fuego,
                                                nómadas geometrías,
números errantes.
                                 Del amarillo al verde al rojo
se desovilla la espiral.
                                       Ventana:
lámina imantada de llamadas y respuestas,
caligrafía de alto voltaje,
mentido cielo/infierno de la industria
sobre la piel cambiante del instante.

Signos-semillas:
                            la noche los dispara,
suben,
             estallan allá arriba,
                                               se precipitan,
ya quemados,
                         en un cono de sombra,
                                                                 reaparecen,
lumbres divagantes,
                                    racimos de sílabas,
incendios giratorios,
                                   se dispersan,
                                                          otra vez añicos.
La ciudad los inventa y los anula.

Estoy a la entrada de un túnel.
Estas frases perforan el tiempo.
Tal vez yo soy ese que espera al final del túnel.
Hablo con los ojos cerrados.
                                                   Alguien
ha plantado en mis párpados
un bosque de agujas magnéticas,
                                                            alguien
guía la hilera de estas palabras.
                                                        La página
se ha vuelto un hormiguero.
                                                   El vacío
se estableció en la boca de mi estómago.
                                                                         Caigo
interminablemente sobre ese vacío.
                                                                Caigo sin caer.
Tengo las manos frías,
                                        los pies fríos
 – pero los alfabetos arden, arden.
                                                             El espacio
se hace y se deshace.
                                      La noche insiste,
la noche palpa mi frente,
                                             palpa mis pensamientos.
¿Qué quiere?

 

2

Calles vacías, luces tuertas.
                                                En una esquina
el espectro de un perro.
                                           Busca, en la basura,
un hueso fantasma.
                                    Gallera alborotada:
patio de vecindad y su mitote.
                                                      México, hacia 1931.
Gorriones callejeros,
                                     una bandada de niños
con los periódicos que no vendieron
                                                                 hace un nido.
Los faroles inventan,
                                     en la soledumbre,
charcos irreales de luz amarillenta.
                                                              Apariciones,
el tiempo se abre:
                                un taconeo lúgubre, lascivo:
bajo un cielo de hollín
                                       la llamarada de una falda
C'est la mort  – ou la morte...
                                                    El viento indiferente
arranca en las paredes anuncios lacerados.

A esta hora
                     los muros negros de San Ildefonso
son negros y respiran:
                                        sol hecho tiempo:
tiempo hecho piedra,
                                      piedra hecha cuerpo.
Estas calles fueron canales.
                                                 Al sol,
las casas eran plata:
                                    ciudad de cal y canto,
luna caída en el lago.
                                     Los criollos levantaron,
sobre el canal cegado y el ídolo enterrado,
otra ciudad
                     – no blanca: rosa y oro –
idea vuelta espacio, número tangible.
                                                                   La asentaron
en el cruce de las ocho direcciones,
                                                               sus puertas
a lo invisible abiertas:
                                      el cielo y el infierno.

Barrio dormido.
                             Andamos por galerías de ecos,
entre imágenes rotas:
                                       nuestra historia.
Callada nación de las piedras.
                                                     Iglesias,
vegetación de cúpulas,
                                         sus fachadas
petrificados jardines de símbolos.
                                                            Embarrancados
en la proliferación rencorosa de casas enanas,
palacios humillados,
                                     fuentes sin agua,
afrentados frontispicios.
                                            Cúmulos,
madréporas insubstanciales:
                                                    se acumulan
sobre las graves moles,
                                          vencidas
no por la pesadumbre de los años,
por el oprobio del presente.

                                                 Plaza del Zócalo,
vasta como firmamento:
                                            espacio diáfano,
frontón de ecos.
                             Allí inventamos,
entre Aliocha K. y Julian S.,
                                               sinos de relámpago
cara al siglo y sus camarillas.

                 el viento del pensamiento,
                                                el viento verbal,
el viento que juega con espejos,
                                                          señor de reflejos,
constructor de ciudades de aire,
                                                          geometrías
suspendidas del hilo de la razón.

                                                          Gusanos gigantes:
amarillos tranvías apagados.
                                                   Eses y zetas:
un auto loco, insecto de ojos malignos.
                                                                      Ideas,
frutos al alcance de la mano.
                                                   Frutos: astros.
                                                                             Arden.
Arde, árbol de pólvora,
                                         el diálogo adolescente,
súbito armazón chamuscado.
                                                     12 veces
golpea el puño de bronce de las torres.
                                                                      La noche
estalla en pedazos,
                                  los junta luego a sí misma,
intacta, se une.
                           Nos dispersamos,
no allá en la plaza con sus trenes quemados,
                                                                                aquí,
sobre esta página: letras petrificadas.

   

3

El muchacho que camina por este poema,
entre San Ildefonso y el Zócalo,
es el hombre que lo escribe:
                                                  esta página
también es una caminata nocturna.
                                                                Aquí encarnan
los espectros amigos

                                       las ideas se disipan.

El bien, quisimos el bien:
                                            enderezar al mundo.
No nos faltó entereza:
                                        nos faltó humildad.
Lo que quisimos no lo quisimos con inocencia.
Preceptos y conceptos,
                                         soberbia de teólogos:
golpear con la cruz,
                                   fundar con sangre,
levantar la casa con ladrillos de crimen,
decretar la comunión obligatoria.
                                                             Algunos
se convirtieron en secretarios de los secretarios
del Secretario General del Infierno.
                                                                La rabia
se volvió filósofa,
                               su baba ha cubierto al planeta.
La razón descendió a la tierra,
tomó la forma del patíbulo
                                                 – y la adoran millones.
Enredo circular:
                             todos hemos sido,
en el Gran Teatro del Inmundo,
jueces, verdugos, víctimas, testigos,
                                                                todos
hemos levantado falso testimonio
                                                             contra los otros
y contra nosotros mismos.
                                                Y lo más vil: fuimos
el público que aplaude o bosteza en su butaca.
La culpa que no se sabe culpa,
                                                      la inocencia,
fue la culpa mayor.
                                   Cada año fue monte de huesos.

Conversiones, retractaciones, excomuniones,
reconciliaciones, apostasías, abjuraciones,
zig-zag de las demonolatrías y las androlatrías,
los embrujamientos y las desviaciones:
mi historia,
                    ¿son las historias de un error?
La historia es el error.
                                       La verdad es aquello,
más allá de las fechas,
                                        más acá de los nombres,
que la historia desdeña:
                                           el cada día
 – latido anónimo de todos,
                                             latido
único de cada uno – ,
                                      el irrepetible
cada día idéntico a todos los días.
                                                            La verdad
es el fondo del tiempo sin historia.
                                                              El peso
del instante que no pesa:
                                             unas piedras con sol,
vistas hace ya mucho y que hoy regresan,
piedras de tiempo que son también de piedra
bajo este sol de tiempo,
sol que viene de un día sin fecha,
                                                           sol
que ilumina estas palabras,
                                                sol de palabras
que se apaga al nombrarlas.
                                                 Arden y se apagan
soles, palabras, piedras:
                                          el instante los quema
sin quemarse.
                         Oculto, inmóvil, intocable,
el presente  – no sus presencias –  está siempre.

Entre el hacer y el ver,
                                       acción o contemplación,
escogí el acto de palabras:
                                               hacerlas, habitarlas,
dar ojos al lenguaje.
                                     La poesía no es la verdad:
es la resurrección de las presencias,
                                                                 la historia,
transfigurada en la verdad del tiempo no fechado.
La poesía,
                   como la historia, se hace;
                                                                 la poesía,
como la verdad, se ve.
                                         La poesía:
                                                            encarnación
del sol-sobre-las-piedras en un nombre,
                                                                        disolución
del nombre en un más allá de las piedras.

La poesía,
                   puente colgante entre historia y verdad,
no es camino hacia esto o aquello:
                                                              es ver
la quietud en el movimiento,
                                                    el tránsito
en la quietud.
                         La historia es el camino:
no va a ninguna parte,
                                         todos lo caminamos,
la verdad es caminarlo.
                                           No vamos ni venimos:
estamos en las manos del tiempo.
                                                               La verdad:
sabernos,
                   desde el origen,
                                                 suspendidos.
Fraternidad sobre el vacío.

 

4

Las ideas se disipan,
                                    quedan los espectros:
verdad de lo vivido y padecido.
Queda un sabor casi vacío:
                                                 el tiempo
 – furor compartido –
                                        el tiempo
 – olvido compartido –
                                          al fin transfigurado
en la memoria y sus encarnaciones.
                                                                 Queda
El tiempo hecho cuerpo repartido: lenguaje.

En la ventana,
                         simulacro guerrero,
                                                             se enciende y apaga
el cielo comercial de los anuncios.
                                                             Atrás
apenas visibles,
                            las constelaciones verdaderas.
Aparece,
                entre tinacos, antenas, azoteas,
columna líquida,
                              más mental que corpórea,
cascada de silencio:
                                    la luna.
                                                  Ni fantasma ni idea:
fue diosa y es hoy claridad errante.

Mi mujer está dormida.
                                          También es luna,
claridad que transcurre
                                           – no entre escollos de nubes,
entre las peñas y las penas de los sueños:
también es alma.
                                Fluye bajo sus ojos cerrados,
desde su frente se despeña,
                                                   torrente silencioso,
hasta sus pies,
                           en sí misma se desploma
y de sí misma brota,
                                     sus latidos la esculpen
se inventa al recorrerse,
                                            se copia al inventarse
entre las islas de sus pechos
                                                    es un brazo de mar,
su vientre es la laguna
                                         donde se desvanecen
la sombra y sus vegetaciones,
                                                      fluye por su talle,
sube,
          desciende,
                               en sí misma se esparce,
                                                                           se ata
a su fluir,
                 se dispersa en su forma:
también es cuerpo.
                                   La verdad
es el oleaje de una respiración
y las visiones que miran unos ojos cerrados:
palpable misterio de la persona.

La noche está a punto de desbordarse.
                                                                      Clarea.
El horizonte se ha vuelto acuático.
                                                             Despeñarse
desde la altura de esta hora:
                                                   ¿morir
será caer o subir,
                                una sensación o una cesación?
Cierro los ojos,
                           oigo en mi cráneo
los pasos de mi sangre,
                                          oigo
pasar el tiempo por mis sienes.
                                                        Todavía estoy vivo.
El cuarto se ha enarenado de luna.
                                                              Mujer:
fuente en la noche.
                                   Yo me fío a su fluir sosegado.

 


             Notas: 

[1] Gallera alborotada: Em períodos eleitorais, os meios de comunicação e o povo mexicanos referem-se aos políticos como “galos que começam a cantar em alvoroço”.

[2] Mitote: palavra de origem nahuatl. “Dança indígena na qual os integrantes dão-se as mãos formando um grande círculo, no meio do qual colocam uma bandeira, e junta a ela uma vasilha com bebidas. Enquanto trocam de posição ao som de um tamborim, bebiam até se embriagar”; no México, gritaria, bulha, alvoroço.

[3] De cal y canto: algo forte, maciço e muito durável.

[4] Criollo: o poeta se refere aos filhos de europeus nascidos na América espanhola.

[5] “Allí inventamos, / entre Aliocha K. y Julian S., / sinos de relámpago / cara al siglo y sus camarillas são versos de tradução complicada, por várias razões:

1) O que podemos imaginar que foi inventado entre Aliocha K[aramázov] e Julian S[orel], se o primeiro é personagem de “Os irmãos Karamázov” que acredita em Deus e na imortalidade da alma; se o segundo é personagem de “O vermelho e o negro”, que é ateu e recebe na prisão, onde aguarda seu julgamento e sua execução, a visita de um sacerdote que pretende convertê-lo?

2) No verso “sinos de relámpago”, ‘sino’, substantivo masculino no espanhol, é facilmente traduzível por ‘destino’ ou ‘fado’, e, neste contexto, por nenhuma outra palavra, o que nos leva a pensar que o verso, em seu simbolismo, pode bem ser interpretado como “mudanças bruscas, passageiras e radicais trazidas pelo destino”, ou algo parecido.

3) “cara al siglo y sus camarillas” é o verso mais complicado. ‘Cara’ é adjetivo e, no verso, está no feminino, no sentido de ‘cara’, ‘querida’, ‘amada’, ‘estimada’, ‘prezada’. Isso nos faz pensar que, por estar no singular, a palavra ‘cara’ é aplicada, não a “destinos de relâmpago’, mas a algo anteriormente mencionado, mas o quê? O quê foi inventado, entre Aliocha Karamázov e Julian Sorel, que era ‘cara ao século e às suas camarilhas’? Isso levanta ainda outra questão: ‘camarilha’ é palavra que imediatamente nos leva a Mao Zedong, à sua desastrada e infame Revolução Cultural e à Camarilha do Quatro que a implementou. Levando-se tudo isso em consideração, e o fato de que Octavio Paz era um homem ‘de direita’, resta saber o que ele quer dizer com esses versos, de uma poema de cunho notadamente ideológico, por meio do qual ele critica tanto a Igreja Católica, e as atrocidades da Santa Inquisição, quanto as ditaduras mais ferozes de seu tempo, a de Joseph Stálin e a do citado Mao Zedong. Feitas estas considerações, optei por traduzir os versos aqui analisados sem tentar decifrá-los ou cair na tentação de interpretá-los, como fez o tradutor do poema para o inglês, que, nestes versos, ‘chutou o balde’ (broke the beds): “There, between Alyosha K. and Julien S., / we divised bolts of lightning / against the century and its cliques” (Lá, entre Alyosha K. e Julien S., / divisamos clarões de relâmpago / contra o século e seus conspiradores).

Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

  Argonautas   E se a alma deve conhecer-se a si mesma ela deve voltar os olhos para outra alma: * o estrangeiro e inimigo, vim...