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sábado, 6 de março de 2021

Pablo Neruda (Chile: 1904 – 1973)

De “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”

 

A canção desesperada

 

Emerge tua lembrança da noite em que estou.

O rio junta ao mar o seu lamento obstinado.

 

Abandonado como os cais na alvorada.

É hora de partir, oh abandonado!

 

Sobre o meu coração chovem frias corolas.

Oh porão de escombros, feroz furna de náufragos! [*]

Em ti se acumularam as guerras e os voos.

 

De ti alçaram asas os pássaros do canto.

A tudo tragaste, como a distância.

Como o mar, como o tempo. Tudo em ti foi naufrágio!

 

Era a alegre hora do assalto e do beijo.

A hora do assombro que ardia como um farol.

 

Ansiedade de piloto, fúria de mergulhador cego,

turva embriaguez de amor, tudo em ti foi naufrágio!

 

Na infância de névoa, minha alma alada e ferida.

Descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio!

 

Tu enlaçaste a dor, te agarraste ao desejo.

Derrubou-te a tristeza, tudo em ti foi naufrágio!

 

Fiz recuar a muralha de sombra.

Andei até mais além do desejo e do ato.

 

Oh carne, carne minha, mulher que amei e perdi,

a ti nesta hora úmida, evoco e entoo cantos.

 

Como um copo albergaste a infinita ternura,

e o infinito esquecimento triturou-te como a um copo.

 

Era a negra, a negra solidão das ilhas,

e ali, mulher de amor, me acolheram teus braços.

 

Era a sede e a fome, e tu foste a fruta.

Era a dor e as ruínas, e tu foste o milagre.

 

Ah mulher, não sei como pudeste abrigar-me

na terra de tua alma, e na cruz de teus braços!

 

Meu desejo de ti foi o mais terrível e breve,

o mais tumultuoso e ébrio, o mais tenso e ávido.

 

Cemitério de beijos, ainda há fogo em tuas tumbas,

ainda os cachos ardem, bicados pelos pássaros.

 

Oh a boca mordida, oh os beijados membros,

oh os famintos dentes, oh os corpos entrelaçados.

 

Oh a cópula louca de esperança e esforço

em que nos unimos e nos desesperamos.

 

E a ternura, leve como a água e a farinha.

E a palavra mal começada nos lábios.

 

Esse foi meu destino e nele viajou meu anseio,

e nele caiu meu anseio, tudo em ti foi naufrágio!

 

Oh porão de escombros, em ti tudo caía,

que dor não exprimiste, que ondas não te afogaram.

 

De tombo em tombo ainda chamejaste e cantaste

de pé como um marinheiro na proa de um navio.

 

Ainda floresceste em cantos, ainda brotaste em correntes.

Oh porão de escombros, poço aberto e amargo.

 

Pálido mergulhador cego, desventurado fundeiro.

 

O cinturão ruidoso do mar cinge a costa.

Surgem frias estrelas, migram negros pássaros.

 

Abandonado como os cais na alvorada.

Apenas a sombra trêmula se retorce em minhas mãos.

Ah até mais além de tudo. Ah até mais além de tudo.

 

É hora de partir. Oh abandonado.

 

La canción desesperada

 

Emerge tu recuerdo de la noche en que estoy.

El río anuda al mar su lamento obstinado.

 

Abandonado como los muelles en el alba.

Es la hora de partir, oh abandonado!

 

Sobre mi corazón llueven frías corolas.

Oh sentina de escombros, feroz cueva de náufragos!

En ti se acumularon las guerras y los vuelos.

 

De ti alzaron las alas los pájaros del canto.

Todo te lo tragaste, como la lejanía.

Como el mar, como el tiempo. Todo en ti fue naufragio!

 

Era la alegre hora del asalto y el beso.

La hora del estupor que ardía como un faro.

 

Ansiedad de piloto, furia de buzo ciego,

turbia embriaguez de amor, todo en ti fue naufragio!

 

En la infancia de niebla mi alma alada y herida.

Descubridor perdido, todo en ti fue naufragio!

 

Te ceñiste al dolor, te agarraste al deseo.

Te tumbó la tristeza, todo en ti fue naufragio!

 

Hice retroceder la muralla de sombra.

anduve más allá del deseo y del acto.

 

Oh carne, carne mía, mujer que amé y perdí,

a ti en esta hora húmeda, evoco y hago canto.

 

Como un vaso albergaste la infinita ternura,

y el infinito olvido te trizó como a un vaso.

 

Era la negra, negra soledad de las islas,

y allí, mujer de amor, me acogieron tus brazos.

 

Era la sed y el hambre, y tú fuiste la fruta.

Era el duelo y las ruinas, y tú fuiste el milagro.

 

Ah mujer, no sé cómo pudiste contenerme

en la tierra de tu alma, y en la cruz de tus brazos!

 

Mi deseo de ti fue el más terrible y corto,

el más revuelto y ebrio, el más tirante y ávido.

 

Cementerio de besos, aún hay fuego en tus tumbas,

aún los racimos arden picoteados de pájaros.

 

Oh la boca mordida, oh los besados miembros,

oh los hambrientos dientes, oh los cuerpos trenzados.

 

Oh la cópula loca de esperanza y esfuerzo

en que nos anudamos y nos desesperamos.

 

Y la ternura, leve como el agua y la harina.

Y la palabra apenas comenzada en los labios.

 

Ese fue mi destino y en él viajó mi anhelo,

y en el cayó mi anhelo, todo en ti fue naufragio!

 

Oh sentina de escombros, en ti todo caía,

qué dolor no exprimiste, qué olas no te ahogaron.

 

De tumbo en tumbo aún llameaste y cantaste

de pie como un marino en la proa de un barco.

 

Aún floreciste en cantos, aún rompiste en corrientes.

Oh sentina de escombros, pozo abierto y amargo.

 

Pálido buzo ciego, desventurado hondero,

descubridor perdido, todo en ti fue naufragio!

 

Es la hora de partir, la dura y fría hora

que la noche sujeta a todo horario.

 

El cinturón ruidoso del mar ciñe la costa.

Surgen frías estrellas, emigran negros pájaros.

 

Abandonado como los muelles en el alba.

Sólo la sombra trémula se retuerce en mis manos.

Ah más allá de todo. Ah más allá de todo.

 

Es la hora de partir. Oh abandonado.

 


[*] A palavra Sentina, que traduzi por “porão”, é empregada por Neruda, suponho eu e creio que acertadamente, com a acepção de “porão das galés”, mais uma de suas tantas metáforas marinhas presentes neste poema e em tantos outros do autor.

Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

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