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domingo, 8 de novembro de 2020

Louise Glück (EUA, 1943 – )

Averno – 14/18

 

Averno

 

1.

Você morre quando seu espírito morre.
Caso contrário, você vive.
Você talvez não lide bem com isso, mas continua –
algo sobre o qual você não tem nenhuma escolha.

Quando digo isso a meus filhos
eles não prestam atenção.
Os velhos, pensam eles –
é isso o que sempre fazem:
falam sobre coisas que ninguém pode ver
para esconder todos os neurônios que estão perdendo.
Piscam um para o outro;
escute o velho, falando de espírito
por não mais se lembrar da palavra para cadeira.

 

É terrível estar só.

Não me refiro a viver só –

estar só, onde ninguém escuta você.

 

Lembro da palavra para cadeira.
Quero dizer – só não estou mais interessada.

 

Acordo pensando
você tem de se preparar.
Logo o espírito vai desistir –
todas as cadeiras do mundo não irão ajudá-la.

 

Sei o que dizem quando estou fora da sala.
Eu deveria procurar alguém, eu deveria estar tomando
um dos novos remédios para depressão.
Posso ouvi-los, aos sussurros, planejando como compartilhar o custo.

 

E quero gritar
vocês todos vocês estão vivendo em um sonho.

Já é ruim, pensam eles, ver-me cair aos pedaços.
Já é ruim sem esses sermões que ouvem todo dia
como se eu tivesse algum direito a essa nova informação.

 

Bem, eles têm o mesmo direito.

Estão vivendo em um sonho, e eu estou me preparando
para ser um fantasma. E quero gritar

 

a névoa se dissipou
É como uma nova vida:
você não se interessa pelo resultado;
você sabe o resultado.

 

Pense nisto: sessenta anos sentada em cadeiras. E agora o espírito mortal
buscando tão sem rodeios, tão sem receios –

 

Levantar o véu.
Ver a quê você está dizendo adeus.

 

2

Não voltei por muito tempo.
O outono havia terminado quando vi o campo outra vez.
Aqui, ele termina quase antes de começar –
os velhos nem mesmo possuem roupas de verão.

 

O campo estava coberto de neve, imaculado.
Não havia vestígio do que aconteceu aqui.
Você não sabia se o fazendeiro
havia replantado ou não.
Talvez ele tenha desistido e se mudado.

 

A polícia não prendeu a menina.
Pouco depois, disseram que ela se mudara para outro país,
algum país onde não tenham campos.

 

Um desastre como esse
não deixa marcas na terra.
E pessoas como aquelas – elas pensam que isso lhes oferece
um novo recomeço.

 

Permaneci por muito tempo, fitando o nada.
Um instante depois, percebi como escurecera, como estava frio.

Há muito tempo – não imagino desde quando.
Se a terra decide não ter memória
de certo modo o tempo parece não ter sentido.

 

Mas não para meus filhos. Andam atrás de mim
para que eu faça um testamento; estão cismados que o governo
levará tudo.

 

Deviam vir comigo um dia

ver esse campo sob a crosta de neve.

A história toda está escrita aqui.

 

Nada: não tenho nada a lhes dar.

 

Essa é a primeira parte.

A segunda é: não quero ser cremada.

 

3.

De um lado, a alma vagueia.

Do outro, seres humanos amedrontados.

Entre eles, o fosso da desesperança.

 

Algumas jovens me perguntam

se estarão seguras perto do Averno –

Estão com frio, querem seguir mais um pouco rumo ao sul.

E uma delas diz, fazendo piada, mas não muito ao sul –

 

Digo, tão seguro quanto em qualquer lugar,

o que as deixam felizes.

O que isso quer dizer é que nada é seguro.

 

Você toma um trem, você desaparece.

 

Você escreve seu nome na janela, você desaparece.

Há lugares como esses por toda parte,

lugares nos quais você entra quando é jovem

e deles nunca retorna

 

Como o campo, aquele que queimou.

Em seguida, a menina desapareceu.

Talvez ela não tenha existido,

seja como for não temos prova.

 

Tudo o que sabemos é:

o campo queimou.

Mas nós vimos aquilo.

 

Temos de acreditar na menina,

no que ela disse. De outro modo

são apenas forças que não compreendemos

governando a terra.

 

As jovens estão felizes, pensando em suas férias.

Não tomem o trem, eu digo.

 

Escrevem seus nomes no vidro enevoado do trem.

Quero lhes dizer, vocês são boas garotas,

tentando deixar seus nomes para trás.

 

4.

Passamos o dia todo

navegando pelo arquipélago,

as minúsculas ilhas que faziam

parte da península

 

até que se despedaçaram

nos fragmentos que você vê agora

flutuando na água do mar do norte.

 

Elas me pareciam seguras,

penso que em razão de ninguém poder viver lá.

Mais tarde nos sentamos na cozinha

observando o início do anoitecer e depois a neve.

Primeiro uma, depois a outra.

 

Permanecemos em silêncio, hipnotizadas pela neve

como se uma espécie de turbulência

que antes estivera oculta

se tornasse visível,

 

algo dentro da noite

exposto agora –

 

Em nosso silêncio, estamos nos fazendo

aquelas perguntas que amigos que confiam um no outro

fazem após grande fadiga,

um esperando que o outro saiba mais.

 

E quando assim não é, esperando

que as impressões partilhadas levem a uma súbita compreensão.

 

Há algum proveito em impormos a nós mesmos

a percepção de que devemos morrer?

É possível deixar passar a oportunidade de nossa vida?

 

Perguntas como essa.

 

A neve caía pesada. A noite escura

transmutada em agitado ar esbranquiçado.

 

Algo que não víramos se revelou.

Porém o significado não foi desvelado.

 

5.

Após o primeiro inverno, o campo começou a germinar.

No entanto, não mais havia sulcos alinhados.

A cheiro do trigo persistia, uma espécie de aroma aleatório

mesclado com ervas variadas, para as quais

nada de útil aos humanos fora até então encontrado.

 

Foi intrigante – ninguém sabia

para aonde o fazendeiro fora.

Alguns pensaram que morrera.

Alguém disse que ele possuía uma filha na Nova Zelândia,

para aonde fora criar

netos em vez trigo.

 

A natureza, diga-se, não é como nós;

ela não possui um armazém de lembranças.

O campo não passa a ter medo de fósforos,

de jovens. Muito menos se lembra

de sulcos. Ele é aniquilado, queimado,

e depois de um ano está novamente vivo

como se nada invulgar houvesse acontecido.

 

Da janela o fazendeiro fixa a distância.

Talvez na Nova Zelândia, talvez em outro lugar.

E pensa: minha vida está acabada.

Sua vida se expressou naquele campo;

ele não mais acredita em poder extrair algo

da terra. A terra, ele pensa,

derrotou-me.

 

Lembra-se do dia em que o campo queimou,

não por acaso, ele pensa.

 

Algo em seu íntimo profundo disse: posso conviver com isso,

Posso enfrentar isso depois de um tempo.

 

O momento terrível foi a primavera depois do trabalho perdido,

quando compreendeu que a terra

não sabia como se lamentar, que em vez disso ela mudaria.

E seguiria existindo sem ele.

 

Averno

 

 

1.
You die when your spirit dies.
Otherwise, you live.
You may not do a good job of it, but you go on —
something you have no choice about.


When I tell this to my children
they pay no attention.
The old people, they think —
this is what they always do:
talk about things no one can see
to cover up all the brain cells they’re losing.
They wink at each other;
listen to the old one, talking about the spirit
because he can’t remember anymore the word for chair.


It is terrible to be alone.
I don’t mean to live alone —
to be alone, where no one hears you.


I remember the word for chair.
I want to say — I’m just not interested anymore.


I wake up thinking
you have to prepare.
Soon the spirit will give up —
all the chairs in the world won’t help you.


I know what they say when I’m out of the room.
Should I be seeing someone, should I be taking
one of the new drugs for depression.
I can hear them, in whispers, planning how to divide the cost.


And I want to scream out
you’re all of you living in a dream.
Bad enough, they think, to watch me fall apart.
Bad enough without this lecturing they get these days
as though I had any right to this new information.


Well, they have the same right.
They’re living in a dream, and I’m preparing
to be a ghost. I want to shout out


the mist has cleared
It’s like some new life:
you have no stake in the outcome;
you know the outcome.


Think of it: sixty years sitting in chairs. And now the mortal spirit
seeking so openly, so fearlessly —


To raise the veil.
To see what you’re saying goodbye to.

 

2.
I didn’t go back for a long time.
When I saw the field again, autumn was finished.
Here, it finishes almost before it starts —
the old people don’t even own summer clothing.


The field was covered with snow, immaculate.
There wasn’t a sign of what happened here.
You didn’t know whether the farmer
had replanted or not.
Maybe he gave up and moved away.


The police didn’t catch the girl.
After awhile they said she moved to some other country,
one where they don’t have fields.


A disaster like this
leaves no mark on the earth.
And people like that — they think it gives them
a fresh start.


I stood a long time, staring at nothing.
After a bit, I noticed how dark it was, how cold.
A long time — I have no idea how long.
Once the earth decides to have no memory
time seems in a way meaningless.


But not to my children. They’re after me
to make a will; they’re worried the government
will take everything.


They should come with me sometime
to look at this field under the cover of snow.
The whole thing is written out there.


Nothing: I have nothing to give them.
That’s the first part.
The second is: I don’t want to be burned.

 

3.
On one side, the soul wanders.
On the other, human beings living in fear.
In between, the pit of disappearance.


Some young girls ask me
if they’ll be safe near Averno —
they’re cold, they want to go south a little while.
And one says, like a joke, but not too far south —


I say, as safe as anywhere,
which makes them happy.
What it means is nothing is safe.


You get on a train, you disappear.


You write your name on the window, you disappear.
There are places like this everywhere,
places you enter as a young girl
from which you never return.


Like the field, the one that burned.
Afterward, the girl was gone.
Maybe she didn’t exist,
we have no proof either way.


All we know is:
the field burned.
But we saw that.


So we have to believe in the girl,
in what she did. Otherwise
it’s just forces we don’t understand
ruling the earth.


The girls are happy, thinking of their vacation.
Don’t take a train, I say.


They write their names in mist on a train window.
I want to say, you’re good girls,
trying to leave your names behind.

 

4.
We spent the whole day
sailing the archipelago,
the tiny islands that were
part of the penisula


until they’d broken off
into the fragments you see now
floating in the northern sea water.


They seemed safe to me,
I think because no one can live there.
Later we sat in the kitchen
watching the evening start and then the snow.
First one, then the other.


We grew silent, hypnotized by the snow
as though a kind of tubulence
that had been hidden before
was becoming visible,


something within the night
exposed now —


In our silence, we were asking
those questions friends who trust each other
ask out of great fatigue,
each one hoping the other knows more


and when this isn’t so, hoping
their shared impressions will amount to insight.


Is there any benefit in forcing upon oneself
the realization that one must die?
Is it possible to miss the opportunity of one’s life?


Questions like that.


The snow was heavy. The black night
transformed into busy white air.


Something we hadn’t seen revealed.
Only the meaning wasn’t revealed.

 

5.
After the first winter, the field began to grow again.
But there were no more orderly furrows.
The smell of the wheat persisted, a kind of random aroma
intermixed with various weeds, for which
no human use has been as yet devised.


It was puzzling — no one knew
where the farmer had gone.
Some people thought he died.

Someone said he had a daughter in New Zealand,
that he went there to raise
grandchildren instead of wheat.


Nature, it turns out, isn’t like us;
it doesn’t have a warehouse of memory.
The field doesn’t become afraid of matches,
of young girls. It doesn’t remember
furrows either. It gets killed off, it gets burned,
and a year later it’s alive again
as though nothing unusual has occured.


The farmer stares out the window.
Maybe in New Zealand, maybe somewhere else.
And he thinks: my life is over.
His life expressed itself in that field;
he doesn’t believe anymore in making anything
out of earth. The earth, he thinks,
has overpowered me.


He remembers the day the field burned,
not, he thinks, by accident.
Something deep within him said: I can live with this,
I can fight it after awhile.

 

The terrible moment was the spring after his work was erased,
when he understood that the earth
didn’t know how to mourn, that it would change instead.
And then go on existing without him.

 

 

 

Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

  Argonautas   E se a alma deve conhecer-se a si mesma ela deve voltar os olhos para outra alma: * o estrangeiro e inimigo, vim...