sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Álvaro Miranda Buranelli (Uruguai: 1948 – )




Ária

de repente, no meio da apresentação, cantou
ninguém o havia convidado, era uma peça enfadonha
mas a voz começou a sair sozinha e teve que parar
e cantou, ainda que não soubesse cantar, e os cicios iam e vinham
para fazê-lo calar-se, que não cantasse, foi um instante 
crítico
na parte principal do conflito dramático, o clímax, a maior
tensão,
ele não queria cantar, era um uruguaio típico e educado por
costume
não queria ser ponto fora da norma, ser o diferente
a quem apontavam com o dedo: ai, ai, esse, esse...
foi sua culpa se a voz saiu por si só e começou a crescer?
havia uma longa história de repressão em todas as suas vidas,
nessas vida que assistiam à apresentação
por que havia de romper a monótona harmonia dos
tempos?
essa atitude rangente? não cantaria melhor, só, no banheiro?
por que começou a cantar no meio da apresentação?
os outros haviam pago para ver a apresentação, nunca
para ouvi-lo,
os outros haviam destinado parte de seu valioso tempo para ver
a apresentação,
não haviam se vestido tão bem para ouvi-lo cantar
não estavam para cantos e – era o canto de quem? –
sim. – quem cantava? – que se calara, que deixara avançar
a apresentação
até o desenlace, queriam saber quem era o assassino
ou rir, rir de quem era o assassino
a quem importava que ele cantasse?
mas a voz saiu, débil e estranha a princípio
misteriosa depois, como um fio sublime que passara
por todas as costas,
a voz foi, no meio da apresentação, e os outros
sons se apagaram


Aria


de pronto, en medio de la representación, cantó
nadie lo había invitado, no era una pieza aburrida
pero empezó a salirle sola la voz y tuvo que pararse
y cantó, aunque no sabía cantar, y los siseos iban y venían
para hacerle callar, que no cantara, fue en un instante
crítico
en el nudo del conflicto dramático, el clímax, la mayor
tensión,
él no quería cantar, era un uruguayo típico y educado por
la costumbre
no quería irse fuera de la norma, ser el diferente
que lo señalaran con el dedo: ahí, ahí, ése, ése…
¿fue su culpa si la voz salió sola y empezó a crecer?
había una larga historia de represión en todas sus vidas,
en esas vidas que miraban la representación
¿por qué tenía que romper la monótona armonía de los
tiempos?
¿esa actitud rechinante? ¿no cantaría mejor, solo, en el baño?
¿por qué empezó a cantar en medio de la representación?
los otros habían pagado para ver la representación, nunca
para oírlo,
los otros habían destinado parte de su valioso tiempo a ver
la representación,
no se habían vestido tan bien para oirlo cantar
no estaban para cantos y ¿era el canto de quién?
sí. ¿quién cantaba?, que se callara, que dejara avanzar
la representación
hacia el desenlace, querían saber quién era el asesino
o reírse, reírse de quien era el asesino
¿a quién le importaba que él cantara?
pero la voz le salió, débil y extraña al principio
misteriosa después, como un hilo sublime que recorriera
todas las espaldas,
la voz fue, en medio de la representación, y los otros
sonidos se apagaron.




quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Saúl Ibargoyen (Uruguai: 1930 – 2019)




Praça de Maio, dezembro de 2001


Quem porá a roupa retirada dos mortos?
Quem colocará suas carnais caminhadas
no interior de tantos sapatos perdidos?
Quem fixará sua sombra cotidiana:
esse negro fulgor de fadiga e de insônia
nas inúteis lajotas acinzentadas da Praça de Maio?
Quem perguntará pelo dono do suor
daquela camisa rasgada?
Quem pelo nome ou sobrenome que não está
nas vozes mundiais
nos documentos totalizados
nas telas ecumênicas
nos jornais globalizados
nas cruzes decompostas?
Quem vestirá o jugo natural
dessas calcinhas desfeitas?
Quem tirará as balas
de seu nicho coagulado:
quem de cada pulmão
a peçonha do ar
e de cada pele
as águas profanadas?
Quem comerá da fome acumulando-se
em bocas paralíticas e ventres partidos?
Quais vestirão gementes vestidos de meninas
meias envelhecidas
sutiãs apertados
calças esfarrapadas
anáguas danificadas
lenços doloridamente brancos?
Quais usarão as frescas caveiras
despojadas do sangue e o ultraje:
separadas da sujeira e o engano:
alçadas como um azul de fogo
nestes dias desnudados
que também se levantam?
  

Plaza de Mayo, diciembre 2001


¿Quién se pondrá la ropa rajada de los muertos?
¿Quién meterá sus carnales andaduras
en lo adentro de tanto zapatal descaminado?
¿Quién fijará su sombra cotidiana:
ese negro fulgor de fatiga y de insomnio
en las baldosas encenizadas de Plaza de Mayo?
¿Quién preguntará por el dueño del sudor
de aquella camisa desfondada?
¿Quién por el nombre o sobrenombre que no está
en las voces mundiales
en los documentos totalizados
en las pantallas ecuménicas
en los periódicos globalizables
en las cruces descompuestas?

¿Quién vestirá el jugo natural
de esos calzones deshechos?
¿Quién quitará las balas
de su nicho coagulado:
quién de cada pulmón
la ponzoña del aire
y de cada pelo
las aguas profanadas?
¿Quién comerá del hambre acumulándose
en bocas paralíticas y panzas partidas?
¿Quiénes vestirán gimientes faldas de infantas
calcetines jubilados
pantalones en derrumbe
enaguas masticadas
pañuelos dolidamente blancos?
¿Quiénes usarán las frescas calaveras
despojadas de la sangre y el ultraje:
separadas de la mugre y el engaño:
alzadas como un azul de fuego
en estos días desnudos
que también se levantan?


(Colaboração na tradução de Isaias Edson Sidney)






quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Saúl Ibargoyen (Uruguai: 1930 – 2019)




Lapsit Exilla

Sobre estas pedras
retiradas de qualquer rua
haverão de abrir-se
os passos estrangeiros.
Em cada sola destes
esses aqueles pés
se acumulam sedimentos
de tosses perdidas
e baba de pardais enfermos
e lágrimas de caracóis condenados
e as migalhas de um rosto
que não poderemos contemplar
sob nenhuma chuva.
Sobre cada pedaço de pó
acumulando-se nestas pedras
daremos fundamento
às letras e signos
e datas e números que serão
a subtração e a soma
de um silêncio de dentes sem viço
de uma só e ausente figura
cheirando sua sombra
entre as velhas praias.
Breve é cada cinza
que forma os íntimos tecidos
da fêmea da pedra.
O sapato estrangeiro
começa a quebrar-se
enquanto abandona seus passos
nos cheiros
das mesmas ruas sem memória.


Lapsit Exilla

(para Julio Ricci, in memoriam)

Sobre estas piedras
tomadas de cualquier calle
habrán de abrirse
los pasos extranjeros.
En cada suela de estos
esos aquellos pies
se acumulan sedimentos
de toses perdidas
y babas de gorriones enfermos
y lágrimas de caracoles condenados
y las migajas de un rostro
que no podremos contemplar
bajo ninguna lluvia.
Sobre cada pedazo de polvo
asentándose en estas piedras
daremos fundamento
a las letras y signos
y fechas y números que serán
la resta y la suma
de un silencio de dientes marchitos
de una sola y faltante figura
oliendo su sombra
entre las viejas playas.
Breve es cada ceniza
que forma los íntimos tejidos
de la hembra de la piedra.
El zapato extranjero
empieza a quebrarse
mientras abandona sus pasos
en los olores
de las mismas calles sin memoria.




terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Mario Benedetti (Uruguai: 1920 – 2009)




Se Deus fosse mulher

e se deus fosse mulher?
pergunta Juan sem alterar-se

vá vá se deus fosse mulher
é possível que agnósticos e ateus
a nós diriam não com a cabeça
e diríamos sim com as entranhas

talvez nos acercássemos de sua divina
nudez
para beijar seus pés não de bronze
seu púbis não de pedra
seus peitos não de mármore
seus lábios não de gesso

se deus fosse mulher a abraçaríamos
para arrancá-la de seu distanciamento
e não haveria que jurar
até que a morte nos separe
já que seria imortal por antonomásia
e em vez de transmitir-nos aids ou pânico
ter-nos-ia contagiado sua imortalidade

se deus fosse mulher no se instalaria
distante no reino dos céus
se não que nos aguardaria no saguão do
inferno
com seus braços não cruzados
sua rosa não de plástico
e seu amor não de anjos

ai deus meu deus meu
se para sempre e desde sempre
fosses uma mulher
que lindo escândalo seria
que venturosa esplêndida impossível
prodigiosa blasfêmia.


Si Dios Fuera una Mujer

A Juan Gelman


¿y si dios fuera mujer?
pregunta Juan sin inmutarse

vaya vaya si dios fuera mujer
es posible que agnósticos y ateos
no dijéramos no con la cabeza
y dijéramos sí con las entrañas

tal vez nos acercáramos a su divina
desnudez
para besar sus pies no de bronce
su pubis no de piedra
sus pechos no de mármol
sus labios no de yeso

si dios fuera mujer la abrazaríamos
para arrancarla de su lontananza
y no habría que jurar
hasta que la muerte nos separe
ya que sería inmortal por antonomasia
y en vez de transmitirnos sida o pánico
nos contagiaría su inmortalidad

si dios fuera mujer no se instalaría
lejana en el reino de los cielos
sino que nos aguardaría en el zaguán del
infierno
con sus brazos no cerrados
su rosa no de plástico
y su amor no de ángeles

ay dios mío dios mío
si hasta siempre y desde siempre
fueras una mujer
qué lindo escándalo sería
qué venturosa espléndida imposible
prodigiosa blasfemia




segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Orfila Bardesio (Uruguai: 1922 – 2009)




O rio


ignora que leopardos ou que oliveiras
colaboraram em seu números de chamas.
Em que escuras entranhas
levantaram-se suas origens do musgo.
Em que fechamento de álamos moveram-se os lábios
de seu contínuo nascimento.
– Seu nascimento não terminou nunca. –
É estranha a suas mãos e seus ossos,
estranha às colunas de suas pernas.
– Entre elas reina a amizade de companheiros,
seu respeitoso amor as torna
cada vez mais desconhecidas –
Estranha é a andarilha que entrou em seu semblante distante.
Conduzida por guias ao mais seguro lugar
perdeu-se em uma harpa de horas.
Ignora aonde vão os carros de seu enterro
e se realmente morreu.
Se as carruagens levam seus olhos à visão
ou só o peso de desertos,
bruscamente aumentados.
Nua, nem a delgada linha de um cabelo
separa-a de remotas estrelas.
– Sua geografia constrói fronteiras com andorinhas –
Sua vigília é queimar arredores.
Seu trabalho é sair, é correr.
Sua profissão é a de um rio
que não quer consolo.
Não há tesouro que possa detê-la.


El Rio

A Jorge Luis Borges.

ignora qué leopardos o qué olivos
colaboraron en su número de llamas.
En qué oscuras entrañas
se levantaron sus orígenes del musgo.
En qué fecha de álamos se movieron los labios
de su continuo nacimiento.
–Su nacimiento no ha cesado nunca.–
Es extraña a sus manos y a sus huesos,
extraña a las columnas de sus piernas.
– Entre ellas, reina amistad de compañeros,
su respetuoso amor las vuelve
cada vez más desconocidas.–
Extraña es la viajera que entró en su rostro lejano.
Conducida por guías al más seguro sitio
se ha perdido en un arpa de hojas.
Ignora a dónde van los coches de su entierro
y si realmente ha muerto.
Si los carruajes llevan sus ojos a la visión
o solo el peso de desiertos,
bruscamente aumentados.
Desnuda, ni la delgada línea de un cabello
la separa de remotas estrellas.
– Su geografía gasta fronteras con golondrinas
Su vigilia es quemar alrededores.
Su trabajo es salir, es correr.
Su profesión es la de un río
que no quiere consuelo.
No hay tesoro que pueda detenerla.



domingo, 26 de janeiro de 2020

Orfila Bardesio (Uruguai: 1922 – 2009)




O náufrago



Cai do voo à pedra
como o silêncio sobre o grito,
como o fogo no frio.
Vai pelas mãos ao céu,
aos caminhos, pela voz.
ao trigo, por solidões.
Não deixa de ser outro,
de ser ninguém ante nenhum.
Sua família, formada pelas mortes
do universo desde o princípio
até o fim, vai chorando por ele
folhas de tinhorões, à terra.
Leva seus passos até os muros,
ciprestes, aos risos,
esquecimento, aos relógios,
como a chuva, às estiagens,
leva a luz de seus diamantes
a rios vorazes.
Não cerra os olhos quando dorme,
e os sonhos caem sobre ele, à vida.
Para chorar,
deixa a porta aberta.
Não pede auxílio.
Nem nome. Nem salvação.

Nem nada.


El Náufrago


Cae del vuelo a la piedra
como el silencio sobre el grito,
como el fuego en el frío.
Va por las manos al cielo,
a los caminos, por la voz.
al trigo, por soledades.
No deja de ser otro,
de ser nadie ante ninguno.
Su familia, formada por las muertes
del universo desde el principio
hasta el fin, le va llorando
lianas del cuello, a la tierra.
Lleva sus pasos a los muros,
cipreses, a las risas,
olvido, a los relojes,
como la lluvia, a las sequías,
lleva la luz de sus diamantes
a ríos voraces.
No cierra los ojos cuando duerme,
y se le caen los sueños, a la vida.
Para llorar,
deja la puerta abierta.
No pide auxilio.
Ni nombre. Ni salvación.
Ni nada.


(Colaboração na tradução de Isaias Edson Sidney)


Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

  Argonautas   E se a alma deve conhecer-se a si mesma ela deve voltar os olhos para outra alma: * o estrangeiro e inimigo, vim...