sábado, 29 de fevereiro de 2020

Raymond Queneau (França: 1903 – 1976)




Noite


Noite: duas sílabas
Muros: fechados como os hexágonos
Noite: duas sílabas
Outono: exaurido e lasso de esperar
pelas abelhas no coração assaz apaixonado...
Noite: serpente escavada de anelados raios do arco-íris
os deuses entrelaçados fazem dançar os arcos
das cartas esquecidas entre muito vagas mudas palavras
A noite produz fogo e mata o mundo
A noite produz fogo e transforma o mundo
A noite produz fogo e o mundo desmorona
Tudo parece esvair-se mesmo as montanhas ágeis
Noite


Nuit


Nuit: une syllabe
Murs: clos comme des hexagones
Nuit: une syllabe
Automne: essoufflées et lasses d’attendre
les abeilles au coeur trop tendre…
Nuit: serpent troué d’anneaux rayon de l’arc-en-ciel
les dieux entrecroisés font danser les arceaux
des lettres oubliées parmi moult mols muets mots
La nuit fait feu et tue le monde
La nuit fait feu et mue le monde
La nuit fait feu et le monde rue
Tout semble s’évanouir même les montagnes agiles
Nuit




sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Roque Dalton García (São Salvador: 1935 - 1975)




Poema de Amor


Os que alargaram o Canal do Panamá
(e foram classificados como silver roll e não como golden roll), [1]
os que repararam a frota do Pacífico
nas bases navais da Califórnia,
os que apodreceram nos cárceres da Guatemala,
México, Honduras, Nicarágua
como ladrões, como contrabandistas, como caloteiros,
como esfomeados
os sempre suspeitos de tudo
("permito-me remetê-lo ao que morre violentamente
por frequentar esquina suspeitosa
e pelo agravante de ser salvadorenho"),
as que lotam os bares e bordeis
de todos os portos e todas as capitais da zona [2]
(La gruta azul, El Calzoncito, Happyland),
os plantadores de milho em plena selva estrangeira,
os reis da página que verte sangue, [3]
os que nunca sabem de onde são,
os melhores artesãos do mundo,
os que foram costurados à bala ao cruzar a fronteira,
os que morrem de malária,
ou das picadas do escorpião ou da barba amarela [4]
no inferno das bananeras [5]
os que choraram embriagados pelo hino nacional
sob o ciclone do Pacífico ou sob a neve do norte,
os parasitas, os mendigos, os puxadores de fumo,
os guanacos filhos da grande puta, [6]
os que a duras penas puderam regressar,
os que tiveram um pouco mais de sorte,
os eternos ilegais,
os faz-tudo, vende-tudo e come-tudo,
os primeiros a desembainhar a faca,
os tristes mais tristes do mundo,
meus compatriotas,
meus irmãos.


Poema de Amor


Los que ampliaron el Canal de Panamá
(y fueron clasificados como "silver roll" y no como "golden roll"),
los que repararon la flota del Pacífico
en las bases de California,
los que se pudrieron en las cárceles de Guatemala,
México, Honduras, Nicaragua
por ladrones, por contrabandistas, por estafadores,
por hambrientos
los siempre sospechosos de todo
("me permito remitirle al interfecto
por esquinero sospechoso
y con el agravante de ser salvadoreño"),
las que llenaron los bares y los burdeles
de todos los puertos y las capitales de la zona
(La gruta azul, El Calzoncito, Happyland),
los sembradores de maíz en plena selva extranjera,
los reyes de la página roja,
los que nunca sabe nadie de dónde son,
los mejores artesanos del mundo,
los que fueron cosidos a balazos al cruzar la frontera,
los que murieron de paludismo
o de las picadas del escorpión o la barba amarilla
en el infierno de las bananeras,
los que lloraran borrachos por el himno nacional
bajo el ciclón del Pacífico o la nieve del norte,
los arrimados, los mendigos, los marihuaneros,
los guanacos hijos de la gran puta,
los que apenitas pudieron regresar,
los que tuvieron un poco más de suerte,
los eternos indocumentados,
los hacelotodo, los vendelotodo, los comelotodo,
los primeros en sacar el cuchillo,
los tristes más tristes del mundo,
mis compatriotas,
mis hermamos.


(Do livro Historias Prohibidas de Pulgarcito (1974) - Histórias Proibidas do Pequeno Polegar (do conto dos Irmãos Grimm). El Salvador foi batizado como Pulgarcito pela embaixadora e poeta chilena Gabriela Mistral, por ser um país muito pequeno.)

 Notas: 

[1] Rol prateado, rol dourado: Planilhas de trabalhadores adotadas por empresas norte-americanas da Zona do Canal do Panamá. Os brancos eram listados nas golden rolls; os antilhanos, nas silver rolls, caracterizadas pelas condições inferiores de emprego e salário.
[2] Zona do Canal
[3] Pagina roja (página vermelha): página de jornal em que são noticiados crimes sangrentos.
[4] Conhecida no Brasil como Jararaca do Norte (Bothrops atrox). Cobra venenosa comum na América Latina.
[5] Bananeras: empresas que plantavam e comercializavam bananas na América Latina. A mais conhecida foi a mal afamada United Fruit Company, multinacional estadunidense conhecida como La Frutera na América Latina. Por ter parte de suas terras nacionalizadas pelo governo, para distribuição aos camponeses gualtemalteco, La Frutera foi a motivadora da primeira invasão e derrubada, pelos Estados Unidos, em 1954, do governo do presidente eleito Jacobo Arbenz Gusmán, da Guatemala, devido à presença de alguns “comunistas” em seus ministérios.
[6] Guanaco (animal de carga, parecido com o lhama): gentílico depreciativo para salvadorenho.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Pablo Neruda (Chile: 1904 – 1973)




Não dizer nada


Agora contaremos até doze
e permaneceremos todos quietos.

Por uma vez sobre a terra
não falemos em nenhum idioma,
por um segundo detenhamo-nos,
não movamos tanto os braços.

Seria um minuto odorífero,
sem pressa, sem locomotivas,
todos estaríamos juntos
em uma quietude instantânea.

Os pescadores do mar frio
não causariam dano às baleias
e o trabalhador das salinas
olhariam suas mãos rotas.

Aqueles que planejam guerras verdes,
guerras de gás, guerras de fogo
vitórias sem sobreviventes,
vestiriam roupas puras
e andariam com seus irmãos
pela sombra, sem fazer coisa nenhuma.

Não se confunda o que quero
com a inércia definitiva:
A vida é apenas o que se faz,
não quero nada com a morte.

Se não pudermos ser unânimes
movendo tanto nossas vidas,
talvez não fazer nada por uma vez,
talvez um grande silêncio possa
interromper esta tristeza,
este não nos entendermos jamais
e ameaçar-nos com a morte,
talvez a terra nos ensine
quando tudo parece morto
e depois tudo estava vivo.

Agora contarei até doze
e tu te calas e me vou.


A Callarse


Ahora contaremos doce
y nos quedamos todos quietos.

Por una vez sobre la tierra
no hablemos en ningún idioma,
por un segundo detengámonos,
no movamos tanto los brazos.

Seria un minuto fragante,
sin prisa, sin locomotoras,
todos estaríamos juntos
en una inquietud instantánea.

Los pescadores del mar frío
no harían daño a las ballenas
y el trabajador de la sal
miraría sus manos rotas.

Los que preparan guerras verdes,
guerras de gas, guerras de fuego,
victorias sin sobrevivientes,
se pondrían un traje puro
y andarían con sus hermanos
por la sombra, sin hacer nada.

No se confunda lo que quiero
con la inacción definitiva:
la vida es solo lo que se hace,
no quiero nada con la muerte.

Si no pudimos ser unánimes
moviendo tanto nuestras vidas,
tal vez no hacer nada una vez,
tal vez un gran silencio pueda
interrumpir esta tristeza,
este no entendernos jamás
y amenazarnos con la muerte,
tal vez la tierra nos enseñe
cuando todo parece muerto
y luego todo estaba vivo.

Ahora contare hasta doce
y tu te callas y me voy.



quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Alberto Blanco (México: 1951 – )


Teoria quântica


O calor irradiado - mesmo se por um fogaréu campestre
ou pelas explosões atômicas no núcleo do sol –
não gera um fluxo contínuo:
mais se assemelha ao pulsar do coração
que ao lento rolar de um rio,
pois a radiação dá-se por saltos quânticos.

Talvez nosso conhecimento
avance da mesma forma.
Que no campo da física
tenham-se atribuído números inteiros
a cada um desses saltos,
e que nas distintas tradições
existam rituais de iniciação para cada passagem,
em nada altera o fenômeno fundamental.

Os círculos na água clara
dispersam-se a partir da pedra que cai
mas a profundidade do reservatório permanece inalterada.

O coração pulsa aos saltos
mas a circulação do sangue
é uma só e contínua realidade.

Em tempos passados pensou-se que os elétrons
eram como planetas girando ao redor de um núcleo
– um sol central – e que ao seu movimento e à sua velocidade
correspondia uma órbita, naturalmente.

Mesmo assim – para nossa grande surpresa –
a teoria quântica propôs que os elétrons
– apesar de terem movimento, velocidade, etc. –
não têm órbita! Como é isso possível?

Se observarmos ao microscópio eletrônico
um átomo de hidrogênio (o mais sensato de todos)
veremos que a própria luz do instrumento
faz com que seu único elétron absorva energia,
se excite, e saia de sua órbita...
e essa outra órbita nunca a conheceremos.

A teoria quântica nos propõe
– diferentemente da mecânica clássica –
que pode existir movimento
sem trajetória, sem percurso e sem órbita.

Pelo menos, sem um caminho conhecido,
e – o que é mais importante –
sem um caminho que se possa conhecer.

Não é isso a poesia?


Teoría Quántica


El calor irradiado – lo mismo por una fogata campestre
que por las explosiones atómicas al centro del sol –
no forma un flujo continuo:
se parece más al latir del corazón
que al pausado tránsito de un río,
porque la radiación procede por saltos cuánticos.

Tal vez nuestro conocimiento
proceda de la misma forma.
Que en el campo de la física
se haya asignado números enteros
a cada uno de estos saltos,
y que en las distintas tradiciones
existan rituales de iniciación para cada pasaje,
en nada altera el fenómeno fundamental.

Los círculos en el agua clara
se desplazan a partir de la piedra que cae
pero la profundidad del estanque permanece inalterada.

El corazón pulsa por saltos
pero la circulación de la sangre
es una sola y continua realidad.

En un tiempo se pensó que los electrones
eran como planetas girando alrededor de un núcleo
-un sol central- y que a su movimiento y a su velocidad
correspondía una órbita, naturalmente.

Sin embargo – para nuestra gran sorpresa –
la teoría cuántica propuso que los electrones
– a pesar de tener movimiento, velocidad, etc. –
¡no tienen órbita! ¿Cómo es esto posible?

Si observamos al microscopio electrónico
un átomo de hidrógeno (el más sencillo de todos
veremos que la luz misma del instrumento
provoca que su único electrón absorba energía,
se excite, y se salga de su órbita...
y esa otra órbita nunca la conoceremos.

La teoría cuántica nos propone
-a diferencia de la mecánica clásica-
que puede existir movimiento
sin trayectoria, sin recorrido y sin órbita.

Al menos, sin un camino conocido,
y -lo que es más importante-
sin un camino que se pueda conocer.

¿No es esto la poesía?



terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Vicente Huidobro (Chile: 1893 – 1948)





Triângulo harmônico


Thesa
A mui bela
Gentil princesa
É uma branca estrela
É uma estrela japonesa.
Thesa é a mais divina flor de Kioto
E quando passa triunfante em seu palanquim
Assemelha-se um tenro lírio, a uma pálida lótus
Arrancada em uma tarde de estio do imperial jardim.
Todos a adoram como a uma deusa, todos até o Mikado
No entanto ela atravessa por entre todos indiferente
De ninguém sabe-se que seu amor haja conquistado
E sempre está alegre, está sorridente.
É uma Ofélia japonesa
Que às flores amante
Louca e travessa
Triunfante
Beija.


Triángulo armónico


Thesa
La bella
Gentil princesa
Es una blanca estrella
Es una estrella japonesa.
Thesa es la más divina flor de Kioto
Y cuando pasa triunfante en su palanquín
Parece un tierno lirio, parece un pálido loto
Arrancado una tarde de estío del imperial jardín.
Todos la adoran como a una diosa, todos hasta el Mikado
Pero ella cruza por entre todos indiferente
De nadie se sabe que haya su amor logrado
Y siempre está risueña, está sonriente.
Es una Ofelia japonesa
Que a las flores amante
Loca y traviesa
Triunfante
Besa.


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

T. S. Eliot (EUA: 1888 – 1965)





Burnt Norton (primeiros versos)


O tempo passado e o tempo presente
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo tempo é eternamente presente
Todo tempo é irredimível.
O que poderia ter sido é uma abstração
Que persiste como perpétua possibilidade
Apenas em um mundo de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Apontam para um só fim, que é sempre o presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo do caminho que não percorremos
Rumo à porta que jamais abrimos
Para o roseiral. Minhas palavras ecoam
Do mesmo modo, em sua mente.
Mas com que propósito
Perturbam elas a poeira sobre um vaso de folhas de rosa
Eu não sei.
Outros ecos
habitam o jardim. Seguiremos?


 Burnt Norton


Time present and time past
Are both perhaps present in time future,
And time future contained in time past.
If all time is eternally present
All time is unredeemable.
What might have been is an abstraction
Remaining a perpetual possibility
Only in a world of speculation.
What might have been and what has been
Point to one end, which is always present.
Footfalls echo in the memory
Down the passage which we did not take
Towards the door we never opened
Into the rose-garden. My words echo
Thus, in your mind.
But to what purpose
Disturbing the dust on a bowl of rose-leaves
I do not know.
Other echoes
Inhabit the garden. Shall we follow?




domingo, 23 de fevereiro de 2020

T. S. Eliot (Estados Unidos: 1888 – Inglaterra: 1965)




Dar nomes aos Gatos


Dar nomes aos gatos é difícil questão,
Não é um passatempo para os teus feriados;
Que sou louco chapeleiro não penses, não,
Pois os gatos SÃO COM TRÊS NOMES BATIZADOS.

Primeiro, há o nome que é usado no dia a dia
Tais como Bichano, Juvenal ou Festeiro
Tais como Victor, Jônatas ou Zé Maria,
Todos sensatos nomes corriqueiros.

Há os mais chiques se mais doces os queres ter,
Uns para damas, outros para cavalheiros:
Quais sejam, Zeus, Admeto, Electra, Deméter –
Porém, todos sensatos nomes corriqueiros.

Digo: um gato exige um nome particular,
Um nome peculiar, de alta distinção,
Se não, como põe a cauda perpendicular,
Eriça os bigodes, ou afaga a presunção?

Dos nomes dessa espécie, ofereço-te um quorum,
Tais como, Berzelius, Arrhenius, Kroto
Quais sejam, Bombalurina, ou então Jellylorum –
Nomes que por regra pertencem a um só gato.

Mas acima de tudo um nome existe ainda,
E esse é um nome que ninguém adivinhará;
Um nome que a pesquisa humana não deslinda –
Só O PRÓPRIO GATO O SABE, e não confessará.

Se vires a um gato em funda contemplação,
O motivo esclareço, pois sempre o consome:
Sua mente detém-se em total reflexão
Ao pensar, ao pensar, ao pensar em seu nome:

Seu inefável, afável
Inefanefável
Profundo, inescrutável e singular Nome.


The Naming Of Cats


The Naming of Cats is a difficult matter,
It isn't just one of your holiday games;
You may think at first I'm as mad as a hatter
When I tell you, a cat must have THREE DIFFERENT NAMES.

First of all, there's the name that the family use daily,
Such as Peter, Augustus, Alonzo or James,
Such as Victor or Jonathan, George or Bill Bailey -
All of them sensible everyday names.

There are fancier names if you think they sound sweeter,
Some for the gentlemen, some for the dames:
Such as Plato, Admetus, Electra, Demeter -
But all of them sensible everyday names.

But I tell you, a cat needs a name that's particular,
A name that's peculiar, and more dignified,
Else how can he keep up his tail perpendicular,
Or spread out his whiskers, or cherish his pride?

Of names of this kind, I can give you a quorum,
Such as Munkustrap, Quaxo, or Coricopat,
Such as Bombalurina, or else Jellylorum -
Names that never belong to more than one cat.

But above and beyond there's still one name left over,
And that is the name that you never will guess;
The name that no human research can discover -
But THE CAT HIMSELF KNOWS, and will never confess.

When you notice a cat in profound meditation,
The reason, I tell you, is always the same:
His mind is engaged in a rapt contemplation
Of the thought, of the thought, of the thought of his name:

His ineffable effable
Effanineffable
Deep and inscrutable singular Name.




sábado, 22 de fevereiro de 2020

Blanca Varela (Peru: 1926 – 2009)




Ninguém sabe de minhas coisas

(dedicatória)

1
a ti capaz de desaparecer
de ser atormentado pelo fogo
luminoso opaco mau divino

a ti
fantasma de cada hora
mil vezes morto recém-nascido sempre
a ti capaz de fazer girar a chave
de inventar o sol em um quarto vazio

A ti afogado em um oceano de similaridade
náufrago de cada manhã
escravo proprietário de sapatos jornais
alguns livros
talvez pai ou filho
guardião de ressecados jardins de aves passageiras

a ti
observador do crepúsculo
infatigável leitor do relógio do sonho
da fatiga do tédio e da esposa
a ninguém senão a ti

2
(a qualquer hora do dia)

Em uma fogueira extinta
essa mulher sacrificada
cerrava os olhos e nos negava a alegria de sua agonia

3
E um cachorro uma gota de chuva uma família a passeio
Como em um quadro entravam para sempre na memória
uma volta de porca e outra e outra um degrau que estala
sempre à mesma altura da obscuridade
a alegria pode ser esta beberagem obscura o néon das cinco
da tarde a mais esplendorosa verdade
assim quase cegos encontrando como ninguém a miséria generosa
cruzando o muro invisíveis
mãos tão pálidas não existiram jamais em outras mãos
olhos contemplaram a tarde
e defronte ao mar negra ruína e portentosos círculos de
bruma
rodeando-nos
e os rubros rio cachorro mosca língua e a tarde rainha dos
desnudos
maldosos braços em sua varanda de cinza

4
(noite e desgosto)

tragada cruel canção de cego
a noite começa a respirar
tudo se afasta
tudo se perde

Cárcere cinema amarelinha lua de farmácia
às oito horas, às nove a às dez
convertido em um fantasma cruel beijas a mil mulheres
acaricias seus seios para os outros
dás-me asco
e é esta náusea o melhor de minha vida

5
(conversas insidiosas)

alguém diz teu nome
– és um livro interessante e falas de um herói –
anônimo certamente
há uma estrela azul no fundo de meu vaso
inesgotável estrela
deve brilhar em teus olhos toda vez que a olho
como deves rir para os outros
tu cordeiro disfarçado de cordeiro
tu lobo solitário
tu terrivelmente menino
– os belos pensamentos senhores
não ocultam o perfume da carne
havemos de transpirar nos museus como bestas
submissas bestas em seu recanto de veludo
– Picasso por exemplo...

6
(dizem-me a verdade)

Dize-me
durará este assombro?
esta letra carnal
louco círculo de dor atado ao lábio
esta diuturna catástrofe
esta malcheirosa dourada ruela sem começo nem fim
este mercado onde a morte enfeita as esquinas
com prataria corrompida e estéreis estrelas?

7
de novo tece sua impossível claridade o envenenado
sorriso solar
sentes a divina cusparada sobre a besta sentes o
fedor da rosa sentes meu coração sobre o teu?
mas tarde será tarde quando a solidão substituir o melhor
novamente teus lábios teus olhos as ruínas de tuas carícias
o mar de meu peito
a solidão “estrela de minhas noites”
ninguém sabe de minhas coisas

8
(pobres matemáticas)

Quando nada sobrar de ti e de mim
haverá água e sol
e um dia que abra as portas mais secretas
mais obscuras mais tristes
e janelas vivas como grandes olhos
despertos sobre a alegria
e não terá sido em vão que tu e eu
apenas tenhamos pensado o que outros fazem
porque alguém tem que pensar a vida


Nadie sabe de mis cosas

(dedicatoria)

1
a ti capaz de desaparecer
de ser atormentado por el fuego
luminoso opaco ruin divino

a ti
fantasma de cada hora
mil veces muerto recién nacido siempre
a ti capaz de hacer girar la llave
de inventar el sol en un cuarto vacío

a ti ahogado en un océano de semejanza
náufrago de cada mañana
esclavo propietario de zapatos periódicos
algunos libros
tal vez padre o hijo
guardián de resecos jardines de aves de paso

a ti
observador de la tarde
infatigable lector del reloj del sueño
de la fatiga del tedio de la esposa
a nadie sino a ti

2
(cualquier hora del día)

en una hoguera extinguida
esa mujer sacrificada
cerraba los ojos y nos negaba la dicha de su agonía

3
y un perro una gota de lluvia una familia de paseo
como en un cuadro entraban para siempre en la memoria
una vuelta de tuerca y otra y otra un peldaño que cruje
siempre a la misma altura de la oscuridad
la dicha puede ser este brebaje oscuro el neón de las cinco
de la tarde la más esplendorosa verdad
así casi ciegos encontrando generosa como nadie la miseria
cruzando el muro invisibles
manos tan pálidas no han existido jamás en otras manos
ni tanto calor en tanto frío ni ojos tan llenos de otros
ojos contemplaron la tarde
y frente al mar negra ruina y portentosos círculos de
bruma
rodeándonos
y el rojo lengua río perro mosca y la tarde la reina de
desnudos
malvados brazos en su balcón de ceniza

4
(noche y descontento)

pitada cruel canción de ciego
la noche comienza a respirar
todo se aleja
todo se pierde

cárcel cine amarilla luna de farmacia
a las ocho a las nueve a las diez
convertido en un fantasma cruel besas a mil mujeres
acaricias sus senos para los otros
me das asco
y es esta náusea lo mejor de mi vida

5
(conversaciones insidiosas)

alguien dice tu nombre
—es un libro interesante y habla de un héroe
anónimo por cierto
hay una estrella azul al fondo de mi vaso
inagotable estrella
debe brillar en tus ojos cada vez que la miro
cómo debes reír para los otros
tú cordero disfrazado de cordero
tú lobo a solas
tú atrozmente niño
—los bellos pensamientos señores
no ocultan el perfume de la carne
hemos de transpirar en los museos como bestias
sumisas bestias en su rincón de terciopelo
—Picasso por ejemplo...

6
(tell me the truth)

dime
¿durará este asombro?
¿esta letra carnal
loco círculo de dolor atado al labio
esta diaria catástrofe
esta maloliente dorada callejuela sin comienzo ni fin
este mercado donde la muerte enjoya las esquinas
con plata corrompida y estériles estrellas?

7
hila su imposible claridad nuevamente la envenenada
sonrisa solar
¿sientes el divino salivazo sobre la bestia sientes el
hedor de la rosa sientes mi corazón sobre el tuyo?
más tarde será tarde cuando la soledad invente lo mejor
nuevamente tus labios tus ojos las ruinas de tus caricias
el mar de mi pecho
la soledad «estrella de mis noches»
nadie sabe de mis cosas

8
(pobres matemáticas)

cuando nada quede de ti y de mí
habrá agua y sol
y un día que abra las puertas más secretas
más oscuras más tristes
y ventanas vivas como grandes ojos
despiertos sobre la dicha
y no habrá sido en vano que tú y yo
sólo hayamos pensado lo que otros hacen
porque alguien tiene que pensar la vida



Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

  Argonautas   E se a alma deve conhecer-se a si mesma ela deve voltar os olhos para outra alma: * o estrangeiro e inimigo, vim...