terça-feira, 22 de novembro de 2022

Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

 


Argonautas

 

E se a alma

deve conhecer-se a si mesma

ela deve voltar os olhos para outra alma: *

o estrangeiro e inimigo, vimo-lo no espelho.

Estavam bem, meus companheiros, nunca se queixavam

do trabalho ou da sede ou da geada,

possuíam o porte das árvores e das ondas

que aceitam o vento e a chuva

aceitam a noite e o sol

sem que se alterem em meio ao que se altera.

Estavam bem, por dias inteiros

de olhos baixos eles suaram defronte aos remos

respirando em cadência       

e seu sangue tornava rubra uma pele submissa.

 

Por vezes cantavam, de olhos baixos

enquanto passávamos pela ilha seca e seus figos

rumo ao ocidente, para além do cabo

dos cães que ladram.

Se é para conhecer-se a si mesmo, diziam

deve-se olhar no fundo da alma, diziam

e os remos batiam no ouro dos mares

ao pôr do sol.

 

Passamos por muitos cabos muitas ilhas o mar

levando a outro mar, gaivotas e focas.

Por vezes mulheres desafortunadas choravam

lamentando seus filhos perdidos

e outras enfurecidas procuravam por Alexandre o Grande

e glorias sepultadas no coração da Ásia.

 

Atracamos em praias repletas de fragâncias noturnas

e gorjeios de pássaros, águas que deixavam nas mãos

a memória de grandes venturas.

Mas a viagem não terminou.

Suas almas se confundiam com os remos e as toleteiras

com a solene face da proa

com a vigília dos lemes

com a água que estilhaçava suas imagens.

Os companheiros morreram um a um,

de olhos baixos. Seus remos

assinalam o local onde adormecem à beira-mar. **

Ninguém se lembra deles.  Justiça!



Argonauts


And if the soul
is to know itself
it must look into a soul:*
the stranger and enemy, we've seen him in the mirror.

 

They were fine, my companions, they never complained
about the work or the thirst or the frost,
they had the bearing of trees and waves
that accept the wind and the rain
accept the night and the sun
without changing in the midst of change.
They were fine, whole days
they sweated at the oars with lowered eyes
breathing in rhythm
and their blood reddened a submissive skin.

 

Sometimes they sang, with lowered eyes
as we were passing the dry island with the Barbary figs
to the west, beyond the cape
of the barking dogs.
If it is to know itself, they said
it must look into a soul, they said
and the oars struck the sea's gold
in the sunset.

We went past many capes many islands the sea
leading to another sea, gulls and seals.
Sometimes unfortunate women wept
lamenting their lost children
and others raging sought Alexander the Great
and glories buried in the heart of Asia.

 

We moored on shores full of night-scents
with birds singing, waters that left on the hands
the memory of great happiness.
But the voyages did not end.
Their souls became one with the oars and the oarlocks
with the solemn face of the prow
with the rudder's wake
with the water that shattered their image.
The companions died one by one,
with lowered eyes. Their oars
mark the place where they sleep on the shore.**

No one remembers them. Justice!

 

 Notas:

(*) Referência a Alcebíades, de Platão. Em nota, Seferis nos diz que essas palavras, ditas por Sócrates à Alcibíades, produziram nele uma sensação aparentada à outra, evocada pelos versos seguintes do poema “A morte dos amantes”, de Baudelaire, aqui, na tradução de Ivan Junqueira:

 

Nos deux coeurs seront deux vastes flambeaux,
Qui réfléchiront leurs doubles lumières
Dan nos deux esprits, ces miroirs jumeaux.

 

Meu coração e o teu, flamas sensuais,

Refletirão em dobro as suas cores

Em nossas almas, dois gêmeos cristais.

 

(**) Referência à Odisseia de Homero, na qual a sombra de Elpenor, o mais jovem dos companheiros de Odisseu, pede-lhe que seu remo seja plantado em sua sepultura à beira-mar, para perpetuar sua memória.

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Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

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