Averno – 10/18
Um mito da inocência
Certo verão ela entra no campo como de
costume
detendo-se brevemente junto ao lago onde por
vezes
olha a si mesma, vendo
se percebe alguma diferença. Vê
a mesma pessoa, o horrível manto
filial ainda agarrado a ela.
No espelho d’água, o sol parece muito
próximo.
É meu tio me espionando, pensa –
tudo na natureza é de algum modo seu parente.
Nunca estou
sozinha, pensa,
transformando o pensamento em oração.
A morte surge, como resposta a uma oração.
Ninguém pode mais entender
como foi bela. Mas Perséfone se lembra.
Também que ele a abraçou, bem ali,
com seu tio observando. Lembra
da luz do sol fulgindo em seus braços nus.
Esse é o último instante de que se lembra com
clareza.
Depois o deus sombrio a levou.
Lembra também, com menor clareza,
da fria percepção de que
não mais poderia viver longe dele outra vez.
A menina que desaparece do lago
nunca voltará. Uma mulher voltará,
à procura da menina que foi.
Ela permanece junto ao lago, por vezes
dizendo,
Fui raptada, o que lhe soa
equivocado, nada como o que sentiu.
Diz, não
fui raptada.
Diz, ofereci-me,
eu queria
fugir de meu
corpo. Por vezes, até mesmo
desejei isso. Mas a ignorância
não consegue desejar conhecimento. A ignorância
deseja algo
imaginado, que acredita existir.
Todos os muitos substantivos –
Ela os diz em ciclos.
Morte,
marido, deus, estranho.
Tudo soa tão singelo, tão convencional.
Eu devo ter sido, pensa, uma
menina singela.
Não consegue se lembrar de si
mesma como pessoa
mas continua pensando que o lago
se lembrará
e lhe explicará o significado de
sua oração
para que ela possa compreender
se foi ou não atendida.
The Myth of Innocence
One summer she goes into the field as usual
stopping for a bit at the pool where she
often
looks at herself, to see
if she detects any changes. She sees
the same person, the horrible mantle
of daughterliness still clinging to her.
The sun seems, in the water, very close.
That's my uncle spying again, she thinks –
everything in nature is in some way her
relative.
I am never alone, she thinks,
turning the thought into a prayer.
Then death appears, like the answer to a
prayer.
No one understands anymore
how beautiful he was. But Persephone
remembers.
Also that he embraced her, right there,
with her uncle watching. She remembers
sunlight flashing on his bare arms.
This is the last moment she remembers
clearly.
Then the dark god bore her away.
She also remembers, less clearly,
the chilling insight that from this moment
she couldn't live without him again.
The girl who disappears from the pool
will never return. A woman will return,
looking for the girl she was.
She stands by the pool saying, from time to
time,
I was abducted, but it sounds
wrong to her, nothing like what she felt.
Then she says, I was not abducted.
Then she says, I offered myself, I wanted
to escape my body. Even, sometimes,
I willed this. But ignorance
cannot will knowledge. Ignorance
wills something imagined, which it believes
exists.
All the different nouns –
she says them in rotation.
Death, husband, god, stranger.
Everything sounds so simple, so conventional.
I must have been, she thinks, a simple girl.
She can't remember herself as that person
but she keeps thinking the pool will remember
and explain to her the meaning of her prayer
so she can understand
whether it was answered or not.