terça-feira, 3 de novembro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

 

Averno – 10/18

  

Um mito da inocência

 

Certo verão ela entra no campo como de costume

detendo-se brevemente junto ao lago onde por vezes

olha a si mesma, vendo

se percebe alguma diferença. Vê

a mesma pessoa, o horrível manto

filial ainda agarrado a ela.

 

No espelho d’água, o sol parece muito próximo.

É meu tio me espionando, pensa –

tudo na natureza é de algum modo seu parente.

Nunca estou sozinha, pensa,

transformando o pensamento em oração.

A morte surge, como resposta a uma oração.

 

Ninguém pode mais entender

como foi bela. Mas Perséfone se lembra.

Também que ele a abraçou, bem ali,

com seu tio observando. Lembra

da luz do sol fulgindo em seus braços nus.

 

Esse é o último instante de que se lembra com clareza.

Depois o deus sombrio a levou.

 

Lembra também, com menor clareza,

da fria percepção de que

não mais poderia viver longe dele outra vez.

 

A menina que desaparece do lago

nunca voltará. Uma mulher voltará,

à procura da menina que foi.

 

Ela permanece junto ao lago, por vezes dizendo,

Fui raptada, o que lhe soa

equivocado, nada como o que sentiu.

 

Diz, não fui raptada.

Diz, ofereci-me, eu queria

fugir de meu corpo. Por vezes, até mesmo

desejei isso. Mas a ignorância

 

não consegue desejar conhecimento. A ignorância

deseja algo imaginado, que acredita existir.

 

Todos os muitos substantivos –

Ela os diz em ciclos.

Morte, marido, deus, estranho.

Tudo soa tão singelo, tão convencional.

Eu devo ter sido, pensa, uma menina singela.

 

Não consegue se lembrar de si mesma como pessoa

mas continua pensando que o lago se lembrará

e lhe explicará o significado de sua oração

para que ela possa compreender

se foi ou não atendida.

  

The Myth of Innocence

 

One summer she goes into the field as usual

stopping for a bit at the pool where she often

looks at herself, to see

if she detects any changes. She sees

the same person, the horrible mantle

of daughterliness still clinging to her.

 

The sun seems, in the water, very close.

That's my uncle spying again, she thinks –

everything in nature is in some way her relative.

I am never alone, she thinks,

turning the thought into a prayer.

Then death appears, like the answer to a prayer.

 

No one understands anymore

how beautiful he was. But Persephone remembers.

Also that he embraced her, right there,

with her uncle watching. She remembers

sunlight flashing on his bare arms.

 

This is the last moment she remembers clearly.

Then the dark god bore her away.

 

She also remembers, less clearly,

the chilling insight that from this moment

she couldn't live without him again.

 

The girl who disappears from the pool

will never return. A woman will return,

looking for the girl she was.

 

She stands by the pool saying, from time to time,

I was abducted, but it sounds

wrong to her, nothing like what she felt.

Then she says, I was not abducted.

Then she says, I offered myself, I wanted

to escape my body. Even, sometimes,

I willed this. But ignorance

 

cannot will knowledge. Ignorance

wills something imagined, which it believes exists.

 

All the different nouns –

she says them in rotation.

Death, husband, god, stranger.

Everything sounds so simple, so conventional.

I must have been, she thinks, a simple girl.

 

She can't remember herself as that person

but she keeps thinking the pool will remember

and explain to her the meaning of her prayer

so she can understand

whether it was answered or not.


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