terça-feira, 11 de agosto de 2020

Octavio Paz (México: 1914 - 1998)

  

Pedra de Sol, tradução de Wagner Mourão Brasil e Isaias Edson Sidney (*)

 

Um chorão de cristal, um choupo d’água,       1

uma alta fonte que o vento recurva,

uma árvore firme mas dançante,

um caminhar de rio que se curva,

avança, retrocede, se desvia

e chega sempre:

um caminhar tranquilo 

de estrela ou primavera sem urgência,

água que com as pálpebras cerradas

verte por toda a noite profecias,

unânime presença em marulhada,

onda atrás de onda, até encobrir tudo,

verde soberania sem ocaso

como o deslumbramento do ruflar

das asas que no meio do céu se abrem,

 

um caminhar por entre as espessuras             15

dos dias do futuro e do agourento

fulgor da desventura como uma ave

petrificando o bosque com seu canto

e os iminentes tempos venturosos

por entre os ramos que se desvanecem,

horas de luz que os pássaros já bicam,

presságios que de nossas mãos escapam,

 

uma presença como um canto súbito,             23

como o vento cantando sobre o incêndio,

um olhar que sustém de modo instável

o mundo com seus mares e seus montes,

corpo de luz filtrado por uma ágata,

pernas de luz, ventre de luz, baías,

rocha solar, corpo da cor de nuvens,

cor de dia veloz que se arremete,

a hora resplende trêmula e tem corpo,

o mundo é já visível por teu corpo,

transparente por tua transparência,

 

ando por galerias de sons fluidos,                   34

fluindo entre presenças que ressoam,

ando entre transparências como um cego,

um reflexo me apaga, nasço em outro,

oh bosque de pilares encantados,

sob arcadas da luz vou penetrando

os corredores de um outono diáfano,

 

vou por teu corpo como pelo mundo,              41

teu ventre é uma praça ensolarada,

os teus seios igrejas onde o sangue

celebra seus mistérios paralelos,

meus olhares recobrem-te como hera,

és cidade sitiada pelo mar,

uma muralha dividida à luz

em metades da mesma cor do pêssego,

lugar de sal, de rochas e de pássaros

sob a lei de extasiado meio-dia,

 

vestida com a cor de meus desejos                 51

como meu pensamento vais desnuda,

vou por teus olhos como pela água,

os tigres bebem sonho desses olhos,

o colibri se queima nessas chamas,

vou por teu rosto como pela lua,

tal como a nuvem por teu pensamento,

vou por teu ventre como por teus sonhos,

 

tua saia de milho ondula e canta,                   59

a saia de cristal, a saia d’água,

teus lábios, teus cabelos, teus olhares,

por toda a noite choves, todo dia

abres meu peito com teus dedos d’água,

fechas meus olhos com teus lábios d’água,

sobre meus ossos choves, em meu peito

finca raízes de água árvore líquida,

 

vou por teu talhe como por um rio,                 67

vou por teu corpo como por um bosque,

como por um caminho na montanha

que em um abismo súbito termina

vou por teus pensamentos afiados

mas ao sair de tua branca fronte

minha sombra caída se destroça,

recolho meus fragmentos um a um

e prossigo sem corpo, busco às cegas,

 

corredores infindos da memória,                     76

portas abertas de um salão vazio

onde apodrecem todos os verões,

joias da sede queimam lá no fundo,

rosto desvanecido ao recordá-lo,

mão que se despedaça quando a toco,

cabeleiras de aranhas em tumulto

sobre sorrisos de tempos passados,

 

à saída de minha fronte busco,                       84

busco sem encontrar, busco um instante,

um rosto de relâmpago e tormenta

correndo por entre árvores noturnas,

rosto de chuva num jardim sombrio,

água tenaz que flui pelo meu flanco,

 

busco sem encontrar, escrevo a sós,               90

sem ninguém, caem dias, caem anos,

caio no instante e ao fundo vou caindo,

invisível caminho sobre espelhos

que repetem minha imagem partida,

piso dias, instantes caminhados,

eu piso no que pensa minha sombra,

busco um instante e piso minha sombra,

 

busco uma data viva como um pássaro,          98

procuro pelo sol das cinco à tarde

suavizado por muros de tezontle:

a hora amadurecia as florações

e ao se abrirem saíam as donzelas

de sua rósea entranha, se espalhando

pelos pátios de pedra do colégio,

esguia como o outono caminhava

envolta pela luz sob as arcadas

e o espaço ao circundá-la a recobria

de uma pele diáfana e dourada,

 

tigre da cor da luz, veado pardo                     109

vagando pela tarde quase noite,

vislumbrada donzela reclinada

nas sacadas da cor verde da chuva,

adolescente rosto inumerável,

esqueceu-me o teu nome, Melusina,

Laura, Isabel, Perséfone, Maria,

tens todos os semblantes e nenhum,

tu és todas as horas e nenhuma,

pareces árvore, pareces nuvem,

és os pássaros todos e és estrela,

tu pareces o gume de uma espada

e o cálice de sangue do verdugo,

hera que avança, envolve e desagrega

a alma ao dissociá-la de si mesma,

 

escritura de fogo sobre o jade,                       124

rainha das serpentes, fenda em rocha,

coluna de vapor, fonte na pedra,         

cratera da lua, penhasco de águias,       

grão de anis, um espinho pequenino   

e mortal que produz dor imortal,

pastora dos abismos submarinos

e a sentinela do vale dos mortos,     

cipó suspenso à beira da vertigem,

trepadeira, uma planta venenosa,

flor de ressurreição, uva de vida,

senhora do flautim e do relâmpago,

terraço do jasmim, sal na ferida,

ramo de rosas para o fuzilado,

neve em agosto, lua do patíbulo,

escritura do mar sobre o basalto,

escritura do vento no deserto,

testamento do sol, granada, espiga,

 

rosto de chamas, rosto devorado,                   142

adolescente rosto perseguido,

anos fantasmas, dias circulares

que dão ao mesmo pátio, ao mesmo muro,

abrasa o instante e são o mesmo rosto

os sucessivos rostos do desejo,

todos os nomes são o mesmo nome

todos os rostos são o mesmo rosto,

todos os séculos, um só instante,

e por todos os séculos dos séculos

fecha o passo ao futuro um par de olhos,

 

nada há diante de mim, só um instante           153

resgatado esta noite, contra um sonho

de um punhado de imagens sonhado,

duramente esculpido contra o sonho,

arrebatado ao nada desta noite,

à força levantado letra a letra,

enquanto o tempo lá fora dispara

e golpeia as defesas de minha alma

o mundo e seu horário carniceiro,

 

só naquele momento em que as cidades,         162

os homens, os sabores, o vivido,

desmoronam em minha fronte cega,

enquanto o peso e a negridão da noite

meu pensamento humilham e meu corpo,

e meu sangue circula lentamente

e se afrouxam meus dentes e os meus olhos

se toldam e os meus dias e os meus anos

seus horrores vazios acumulam,

 

à medida que o tempo fecha o leque               171

e não há nada atrás de seus reflexos,

o instante vai ao fundo e volta à tona

rodeado de morte, ameaçado

pela noite e seu lúgubre bocejo,

ameaçado pela gritaria

da morte duradoura e mascarada

o instante se perturba e se penetra,

o instante aprofunda-se e penetra-se,

como um punho se fecha, como um fruto

que madura até dentro dele mesmo

e a si mesmo bebe-se e derrama-se

o translúcido instante se enclausura

e madura por dentro, se enraíza,

cresce dentro de mim, toma-me todo,

sua folhagem que delira expulsa-me,

meus pensamentos são só os seus pássaros,

seu mercúrio circula em minhas veias,

planta mental, frutos sabor de tempo,

 

oh vida por viver e já vivida,                          189

tempo que volta em uma onda do mar,

e se retira sem voltar o rosto,

o que passou não foi mas está sendo

e silenciosamente desemboca

em outro instante que desaparece:

 

diante da tarde de salitre e pedra                   195

armada de navalhas invisíveis

uma vermelha escrita indecifrável

em minha pele escreves e as feridas

como um traje de chamas me recobrem,

ardo sem consumir-me, busco a água,

não há água em teus olhos, são de pedra,

e teus seios, teu ventre, teus quadris

são de pedra, e sabe a pó tua boca,

boca que sabe a tempo envenenado,

teu corpo sabe a poço sem saída,

um corredor de espelhos que repetem

os olhos do sedento, corredor

que volta sempre ao ponto de partida,

e tu me levas cego pela mão

por essas galerias obstinadas

para o centro do círculo e te elevas

como um fulgor que se congela em tocha

como luz que me queima, fascinante

como ao sentenciado o cadafalso,

flexível como o látego e elegante

como uma arma que é gêmea da lua,

tuas palavras afiadas cavam

meu peito e despovoam-me e esvaziam-me,

uma a uma me despojas das lembranças,

esqueceu-me o meu nome, meus amigos

grunhem entre os suínos ou apodrecem

comidos pelo sol em um barranco,

 

há em mim só essa ferida imensa,                  223

um vazio que já ninguém percorre,

presente sem janelas, pensamento

que volta, se repete, se reflete

e esvai-se em sua própria transparência,

consciência traspassada por um olho

que se olha a olhar-se até ser inundado

de resplendor:

vi tua atroz escama,

Melusina, teu brilho verde na alba,

dormias enroscada entre lençóis

e ao despertar gritaste como um pássaro

e caíste sem fim, quebrada e branca,

nada restou de ti senão teu grito,

e descubro-me ao término dos séculos

com tosse e vista fraca, embaralhando

velhas fotos:

não há nem és ninguém,

uma porção de cinza e uma vassoura,

uma faca afiada e o espanador,

um couro pendurado em alguns ossos,

um racemo já seco, um poço negro,

e no fundo do poço estão dois olhos

da menina afogada faz mil anos,

 

olhares sepultados em um poço,                     245

olhares que nos veem desde sempre,

na mãe já velha o olhar de uma menina

que vê no filho grande o jovem pai,

olhar materno da menina só

que vê no pai adulto uma criança,

olhares que nos olham desde o fundo

da vida e são cavilações da morte

ou é o contrário: cair nesses olhos

é retornar à vida verdadeira?

 

cair, voltar, sonhar-me e que me sonhem        255

outros olhos futuros, outra vida,

outras nuvens, morrer uma outra morte!

– esta noite me basta, e este momento

não acaba de abrir-se e revelar-me

onde estive, quem fui, como te chamas,

como chamam a mim:


fazia planos

para o verão – e todos os verões –

já faz dez anos, na Christopher Street,

com Filis, as covinhas nas bochechas

onde bebiam luz os colibris?,

sobre a Reforma me dizia Carmem

“o ar não pesa, aqui é sempre outubro”

ou o disse a outra pessoa que não lembro

ou invento isso e ninguém nunca me disse?,

caminhei pela noite de Oaxaca,

imensa e verde escura como uma árvore,

falando apenas como o vento louco

e ao chegar ao meu quarto – sempre um quarto –

não me reconheceram os espelhos?,

do hotel Vernet nós vimos a alvorada

bailar nos castanheiros – “já é tarde”

tu me dizias ao pentear-se e eu via,

sem dizer nada, manchas na parede?,

subimos juntos a alta torre, vimos

cair a tarde ao irmos ao arrecife?

comemos uvas em Bidart? compramos

gardênias em Perote?


nomes, sítios,

ruas e ruas, rostos, praças, ruas,

estações, parques, quartos solitários,

as manchas na parede, alguém penteia-se,

alguém canta ao meu lado, alguém se veste,

quartos, lugares, ruas, nomes, quartos,

 

Madri, 1937,                                                 288

as mulheres cosiam e cantavam

com os seus filhos na Plaza del Ángel

depois ouviu-se o alarme e houve alguns gritos,

casas ajoelhadas na poeira,

torres partidas, prédios esculpidos

e os motores e seu barulho, observo:

os dois se desnudaram e se amaram

para defender nossa porção eterna,

nossa ração de tempo e paraíso,

tocar nossa raiz e recobrar-nos,

recobrar nossa herança arrebatada

por larápios de vida faz mil séculos,

os dois se desnudaram e beijaram-se

porque os desnudamentos enlaçados

saltam no tempo e são invulneráveis,

nada os toca, retornam ao princípio,

não há tu ou eu, amanhã, ontem, nem nomes,

a verdade de dois num só corpo e alma,

oh ser completo...


quartos à deriva

entre cidades que desaparecem,

quartos e ruas, nomes como chagas,

o quarto com janelas a outros quartos

com o mesmo papel descolorido,

um homem sem camisa lê o jornal

a mulher passa roupa: no quarto claro

no qual o pessegueiro lança os ramos;

e outro quarto: lá fora sempre chove,

oxidando em um pátio três meninos;

quartos que são navios que balançam

em um golfo de luz; ou submarinos:

o silêncio se espalha em ondas verdes,

tudo quanto tocamos fosforesce;

mausoléus luxuosos, corroídos

os retratos, puídos os tapetes;

ardis, celas, cavernas encantadas,

as gaiolas e os quartos numerados,

todos se transfiguram, todos voam,

cada moldura é nuvem, cada porta

dá para o mar, o campo, o ar, cada mesa

é um festim; fechados como conchas

o tempo inutilmente os assedia,

não há mais tempo, muro: espaço, espaço,

abre tua mão, toma esta riqueza,

reparte os frutos, goza a tua vida,

deita-te sob a árvore, bebe água!,

 

tudo se transfigura e é sagrado,                     334

é o centro do mundo cada quarto,

é primeiro dia e é primeira noite,

o mundo nasce quando dois se beijam,

gota de luz de entranhas transparentes

o quarto como um fruto se entreabre

e estala como um astro taciturno

e as leis comidas pelas ratazanas,

as grades das cadeias e dos bancos,

as grades de papel, os alambrados,

os sinetes e as puas e os ferrões,

o sermão monocórdico das armas,

o escorpião meloso e de barrete,

o tigre com cartola, presidente

da Cruz Vermelha e do Clube Vegano,

o burro pedagogo, o crocodilo

metido a redentor, padre de aldeia,

O Chefe, o tubarão, o construtor

de futuros, o porco de uniforme,

o filho prediletíssimo da Igreja

que lava a dentadura enegrecida

com água benta e toma aulas de inglês

e de democracia, as putrefatas

máscaras, as paredes invisíveis

que separam um homem de outros homens,

o homem de si mesmo,


desmoronam-se

por um instante imenso e vislumbramos

a unidade perdida, o desamparo

de ser homens, a glória de ser homens

e dividir o pão, o sol, a morte,

o já esquecido assombro de estar vivos;

 

amar é combater, se dois se beijam                365

o mundo muda, encarnam os desejos,

o pensamento encarna, brotam asas

nas costas dos escravos, este mundo

é tangível, real, o vinho é vinho,

o pão volta a ter gosto, a água é água,

amar é combater, é abrir portas,

deixar de ser fantasma com um número

condenado à prisão por toda a vida

por um amo sem rosto;


o mundo muda

se dois se reconhecem ao se olhar,

amar é despojar-se de seus nomes:

“deixa que eu seja tua puta”, diz

Heloísa, mas ele seguiu a lei,

tomou-a por esposa e como prêmio

castraram-no depois;


melhor o crime,

os amantes suicidas, esse incesto

dos dois irmãos, iguais a dois espelhos

de sua semelhança apaixonados,

melhor comer o pão envenenado,

o adultério num leito de ruínas,

os amores ferozes, o delírio,

sua hera envenenada, o sodomita

que leva como cravo na lapela

um escarro, melhor apedrejado

nas praças que girar a roda d’água

que traduz em essência a própria vida,

transforma a eternidade em horas ocas,

os minutos em cárceres, o tempo

em moedas de cobre e merda abstrata;

 

melhor a castidade, flor oculta                        394

que balança nos talos do silêncio,

o diamante insólito dos santos,

que depura os desejos, farta o tempo,

núpcias da quietude e o movimento,

canta a solidão na sua corola,

pétala de cristal é cada hora,

o mundo se despoja dos disfarces

e em seu centro, vibrante transparência,

o que chamamos Deus, o ser sem nome,

contempla-se no nada, o ser sem rosto

emerge de si mesmo, sol dos sóis,

plenitude de nomes e presenças;

 

sigo meu desvario, quartos, ruas,                   407

caminho às cegas pelos corredores

do tempo e subo e desço seus degraus

e as paredes tateio e não avanço,

volto onde comecei, busco teu rosto,

caminho pelas ruas de mim mesmo

sob um sol sem idade, e tu a meu lado

caminhas como uma árvore ou um rio,

caminhas e me falas como um rio,

cresces como uma espiga em minhas mãos,

pulsas como um esquilo em minhas mãos,

voas como mil pássaros, teu riso

de espumas me cobriu, tua cabeça

é um astro pequeno em minhas mãos,

o mundo reverdece se sorris

comendo uma laranja,


o mundo muda

se dois, numa vertigem e abraçados,

lançam-se sobre a relva: o céu desaba,

as árvores ascendem, é só luz

e quietude o espaço, só espaço

escancarado para a águia do olho,

as nuvens, como branca tribo, passam,

o corpo rompe amarras, a alma voa,

perdemos nossos nomes, flutuamos

à deriva por entre o azul e o verde,

tempo total onde não passa nada

senão seu próprio transcorrer feliz,

 

não passa nada, calas, pestanejas                  434

(silêncio: passou neste instante um anjo

enorme como a vida de cem sóis),

não passa nada, só um pestanejo?

–  e o festim, o primeiro crime, o exílio,

a queixada do burro, o som opaco

e aquele olhar incrédulo do morto

ao cair na cinzenta pradaria,

Agamenon e seu mugido imenso

e o repetido grito de Cassandra

mais poderoso que o clamor das ondas,

Sócrates na prisão (quando o sol nasce,

morrer é despertar: “Críton, um galo

a Esculápio, que estou farto da vida”)

o chacal que discursa entre as ruínas

de Nínive, o fantasma que viu Bruto 

logo antes da batalha, Montezuma

da sua insônia no leito de espinhos,

na carreta a viagem para a morte

– a viagem sem fim mas relatada

por Robespierre minuto por minuto,

a mandíbula rota em suas mãos –,

Churruca em seu barril como num trono

escarlate, as passadas já contadas

de Lincoln ao sair para o teatro,

a agonia de Trótski e seus gemidos

de javali, Madero e aquele olhar

que ninguém refutou: por que me matam?,

os caralhos, as dores, os silêncios

do criminoso, o santo, o joão ninguém,

cemitério de frases e anedotas

que os cachorros retóricos escavam,

o delírio, o relincho, o som obscuro

que ao morrermos soltamos e o ofegar

da vida que desponta e a percussão

dos ossos fragmentados no confronto

e a boca espumejada do profeta,

e o grito dele e o grito do verdugo,

e o queixume da vítima...


são chamas           

os olhos e são chamas o que veem,

é chama a orelha e o som também é chama,

brasas os lábios e um tição a língua,

o tato e o que se toca, o pensamento

e o que se pensa, chama o pensador,

tudo se queima, é o universo chama,

o mesmo nada que arde não é nada

senão pensar em chama, e ao fim fumaça:

não há algoz nem vítima...


e esse grito

na sexta-feira à tarde? e esse silêncio

que se cobre de signos, o silêncio

que fala sem dizer, não fala nada?,

nada valem os gritos dos humanos?

nada acontece quando passa o tempo?

 

– nada acontece, só um pestanejo                  487

do sol, um movimento apenas, nada,

não há perdão, não volta atrás o tempo,

estão os mortos para sempre mortos

e não podem morrer uma outra morte,

intocáveis, pregados em seu gesto,

desde quando morreram, solitários,

sem remédio nos olham sem olhar-nos,

de sua vida a morte é já estátua,

um sempre já ser nada para sempre,

cada minuto é nada para sempre,

um rei fantasma rege a pulsação

e teu gesto final, a dura máscara

cinzela esse teu rosto cambiante:

somos o monumento de uma vida

alheia e não vivida, apenas nossa,

 

– a vida, quando foi realmente nossa?            503

quando realmente somos o que somos?

pensando bem não somos, nunca estamos

sozinhos mas vertigem e vazio,

esgares num espelho, horror e vômito,

jamais a vida é nossa, ela é dos outros,

não pertence a ninguém a vida, somos

a vida – pão de sol só para os outros,

todos os outros que nós mesmos somos –,

sou outro quando sou, meus atos todos

são mais meus quando são também de todos,

para que possa ser hei de ser outro,

sair de mim, buscar-me junto aos outros,

os outros que não são se eu não existo,

os outros que me dão plena existência,

não sou, não há eu, sempre somos nós,

é outra a vida, sempre lá, mais longe,

fora de ti, de mim, sempre horizonte,

vida que nos desvive e nos afasta,

que nos inventa um rosto e logo o gasta,

fome de ser, oh morte, pão de todos,

 

Heloísa, Perséfone, Maria,                              524

mostra teu rosto enfim para que eu veja

meu rosto verdadeiro, a cara do outro,

meu rosto para sempre de nós todos,

rosto de confeiteiro e de uma árvore,

um rosto de árvore e de confeiteiro,

de motorista, nuvem, marinheiro,

rosto de sol e arroio e Pedro e Paulo,

rosto de solitário coletivo,

desperta-me, já nasço:


vida e morte

pactuam em ti, senhora da noite,

torre de luz, rainha da alvorada,

virgem lunar, e mãe da água mãe,

corpo do mundo, morada da morte,

caio sem parar desde que nasci,

caio em mim mesmo sem tocar meu fundo,

recolhe-me em teus olhos, junta o pó

disperso e concilia minhas cinzas,

ata meus ossos divididos, sopra

sobre meu ser, em tua terra enterra-me,

teu silêncio dê paz ao pensamento

contra si mesmo irado;


abre essa mão,

senhora de sementes que são dias,

imortal é o dia, ascende, cresce,

acaba de nascer e nunca acaba,

cada dia é nascer, um nascimento

é cada amanhecer quando amanheço,

amanhecemos todos, amanhece

o sol cara de sol, João amanhece

com a cara de João cara de todos,

 

porta do ser, desperta-me, amanhece,            553

deixa-me ver o rosto deste dia,

deixa-me ver o rosto desta noite,

tudo se comunica e se transforma,

arco de sangue, ponte de latejos,

leva-me ao outro lado desta noite,

aonde eu sou tu e nós somos nós,

ao reino de pronomes enlaçados,

 

porta do ser: abre teu ser, desperta,              561

aprende a ser também, lavra teu rosto,

trabalha tuas faces, tens um rosto

para fitar meu rosto e que te encare,

para fitar a vida até a morte,

rosto de mar, de pão, de rocha e fonte,

nascente que dissolve nossos rostos

em um rosto sem nome, o ser sem rosto,

indizível presença de presenças...

 

quero seguir, ir mais longe, e não posso:        570

precipitou-se o instante em outro e outro,

dormi sonos de pedra que não sonha

e ao término dos anos como pedras

ouvi cantar meu sangue encarcerado,

com um rumor de luz o mar cantava,

uma a uma desabavam as muralhas,

todas as portas se desmoronavam

e o sol entrava à força em minha fronte,

abria minhas pálpebras cerradas,

desprendia meu ser de seu invólucro,

me arrancava de mim, me separava

de um bruto e secular sono de pedra,

da magia de espelhos renascia

e a magia de espelhos revivia

 

um chorão de cristal, um choupo d’água,        585

uma alta fonte que o vento recurva,

uma árvore firme mas dançante,

um caminhar de rio que se curva,

avança, retrocede, se desvia

e chega sempre.

 

 

 

Piedra de Sol

 

Un sauce de cristal, un chopo de agua,          1

un alto surtidor que el viento arquea,

un árbol bien plantado mas danzante,

un caminar de río que se curva,

avanza, retrocede, da un rodeo

y llega siempre:

                      un caminar tranquilo

de estrella o primavera sin premura,

agua que con los párpados cerrados

mana toda la noche profecías,

unánime presencia en oleaje,

ola tras ola hasta cubrirlo todo,

verde soberanía sin ocaso

como el deslumbramiento de las alas

cuando se abren en mitad del cielo,

 

un caminar entre las espesuras                      15

de los días futuros y el aciago

fulgor de la desdicha como un ave

petrificando el bosque con su canto

y las felicidades inminentes

entre las ramas que se desvanecen,

horas de luz que pican ya los pájaros,

presagios que se escapan de la mano,

 

una presencia como un canto súbito,              23

como el viento cantando en el incendio,

una mirada que sostiene en vilo

al mundo con sus mares y sus montes,

cuerpo de luz filtrado por un ágata,

piernas de luz, vientre de luz, bahías,

roca solar, cuerpo color de nube,

color de día rápido que salta,

la hora centellea y tiene cuerpo,

el mundo ya es visible por tu cuerpo,

es transparente por tu transparencia,

 

voy entre galerías de sonidos,                        34

fluyo entre las presencias resonantes,

voy por las transparencias como un ciego,

un reflejo me borra, nazco en otro,

oh bosque de pilares encantados,

bajo los arcos de la luz penetro

los corredores de un otoño diáfano,

 

voy por tu cuerpo como por el mundo,            41

tu vientre es una plaza soleada,

tus pechos dos iglesias donde oficia

la sangre sus misterios paralelos,

mis miradas te cubren como yedra,

eres una ciudad que el mar asedia,

una muralla que la luz divide

en dos mitades de color durazno,

un paraje de sal, rocas y pájaros

bajo la ley del mediodía absorto,

 

vestida del color de mis deseos                      51

como mi pensamiento vas desnuda,

voy por tus ojos como por el agua,

los tigres beben sueño de esos ojos,

el colibrí se quema en esas llamas,

voy por tu frente como por la luna,

como la nube por tu pensamiento,

voy por tu vientre como por tus sueños,

 

tu falda de maíz ondula y canta,                     59

tu falda de cristal, tu falda de agua,

tus labios, tus cabellos, tus miradas,

toda la noche llueves, todo el día

abres mi pecho con tus dedos de agua,

cierras mis ojos con tu boca de agua,

sobre mis huesos llueves, en mi pecho

hunde raíces de agua un árbol líquido,

 

voy por tu talle como por un río,                     67

voy por tu cuerpo como por un bosque,

como por un sendero en la montaña

que en un abismo brusco se termina

voy por tus pensamientos afilados

y a la salida de tu blanca frente

mi sombra despeñada se destroza,

recojo mis fragmentos uno a uno

y prosigo sin cuerpo, busco a tientas,

 

corredores sin fin de la memoria,                    76

puertas abiertas a un salón vacío

donde se pudren todos lo veranos,

las joyas de la sed arden al fondo,

rostro desvanecido al recordarlo,

mano que se deshace si la toco,

cabelleras de arañas en tumulto

sobre sonrisas de hace muchos años,

 

a la salida de mi frente busco,                        84

busco sin encontrar, busco un instante,

un rostro de relámpago y tormenta

corriendo entre los árboles nocturnos,

rostro de lluvia en un jardín a obscuras,

agua tenaz que fluye a mi costado,

 

busco sin encontrar, escribo a solas,               90

no hay nadie, cae el día, cae el año,

caigo en el instante, caigo al fondo,

invisible camino sobre espejos

que repiten mi imagen destrozada,

piso días, instantes caminados,

piso los pensamientos de mi sombra,

piso mi sombra en busca de un instante,

 

busco una fecha viva como un pájaro,             98

busco el sol de las cinco de la tarde

templado por los muros de tezontle:

la hora maduraba sus racimos

y al abrirse salían las muchachas

de su entraña rosada y se esparcían

por los patios de piedra del colegio,

alta como el otoño caminaba

envuelta por la luz bajo la arcada

y el espacio al ceñirla la vestía

de un piel más dorada y transparente,

 

tigre color de luz, pardo venado                     109

por los alrededores de la noche,

entrevista muchacha reclinada

en los balcones verdes de la lluvia,

adolescente rostro innumerable,

he olvidado tu nombre, Melusina,

Laura, Isabel, Perséfona, María,

tienes todos los rostros y ninguno,

eres todas las horas y ninguna,

te pareces al árbol y a la nube,

eres todos los pájaros y un astro,

te pareces al filo de la espada

y a la copa de sangre del verdugo,

yedra que avanza, envuelve y desarraiga

al alma y la divide de sí misma,

 

escritura de fuego sobre el jade,                     124

grieta en la roca, reina de serpientes,

columna de vapor, fuente en la peña,

circo lunar, peñasco de las águilas,

grano de anís, espina diminuta

y mortal que da penas inmortales,

pastora de los valles submarinos

y guardiana del valle de los muertos,

liana que cuelga del cantil del vértigo,

enredadera, planta venenosa,

flor de resurrección, uva de vida,

señora de la flauta y del relámpago,

terraza del jazmín, sal en la herida,

ramo de rosas para el fusilado,

nieve en agosto, luna del patíbulo,

escritura del mar sobre el basalto,

escritura del viento en el desierto,

testamento del sol, granada, espiga,

 

rostro de llamas, rostro devorado,                  142

adolescente rostro perseguido

años fantasmas, días circulares

que dan al mismo patio, al mismo muro,

arde el instante y son un solo rostro

los sucesivos rostros de la llama,

todos los nombres son un solo nombre

todos los rostros son un solo rostro,

todos los siglos son un solo instante

y por todos los siglos de los siglos

cierra el paso al futuro un par de ojos,

 

no hay nada frente a mí, sólo un instante        153

rescatado esta noche, contra un sueño

de ayuntadas imágenes soñado,

duramente esculpido contra el sueño,

arrancado a la nada de esta noche,

a pulso levantado letra a letra,

mientras afuera el tiempo se desboca

y golpea las puertas de mi alma

el mundo con su horario carnicero,

 

sólo un instante mientras las ciudades,           162

los nombres, lo sabores, lo vivido,

se desmoronan en mi frente ciega,

mientras la pesadumbre de la noche

mi pensamiento humilla y mi esqueleto,

y mi sangre camina más despacio

y mis dientes se aflojan y mis ojos

se nublan y los días y los años

sus horrores vacíos acumulan,

 

mientras el tiempo cierra su abanico               171

y no hay nada detrás de sus imágenes

el instante se abisma y sobrenada

rodeado de muerte, amenazado

por la noche y su lúgubre bostezo,

amenazado por la algarabía

de la muerte vivaz y enmascarada

el instante se abisma y se penetra,

como un puño se cierra, como un fruto

que madura hacia dentro de sí mismo

y a sí mismo se bebe y se derrama

el instante translúcido se cierra

y madura hacia dentro, echa raíces,

crece dentro de mí, me ocupa todo,

me expulsa su follaje delirante,

mis pensamientos sólo son su pájaros,

su mercurio circula por mis venas,

árbol mental, frutos sabor de tiempo,

 

oh vida por vivir y ya vivida,                          189

tiempo que vuelve en una marejada

y se retira sin volver el rostro,

lo que pasó no fue pero está siendo

y silenciosamente desemboca

en otro instante que se desvanece:

 

frente a la tarde de salitre y piedra                 196

armada de navajas invisibles

una roja escritura indescifrable

escribes en mi piel y esas heridas

como un traje de llamas me recubren,

ardo sin consumirme, busco el agua

y en tus ojos no hay agua, son de piedra,

y tus pechos, tu vientre, tus caderas

son de piedra, tu boca sabe a polvo,

tu boca sabe a tiempo emponzoñado,

tu cuerpo sabe a pozo sin salida,

pasadizo de espejos que repiten

los ojos del sediento, pasadizo

que vuelve siempre al punto de partida,

y tú me llevas ciego de la mano

por esas galerías obstinadas

hacia el centro del círculo y te yergues

como un fulgor que se congela en hacha,

como luz que desuella, fascinante

como el cadalso para el condenado,

flexible como el látigo y esbelta

como un arma gemela de la luna,

y tus palabras afiladas cavan

mi pecho y me despueblan y vacían,

uno a uno me arrancas los recuerdos,

he olvidado mi nombre, mis amigos

gruñen entre los cerdos o se pudren

comidos por el sol en un barranco,

 

no hay nada en mí sino una larga herida,        223

una oquedad que ya nadie recorre,

presente sin ventanas, pensamiento

que vuelve, se repite, se refleja

y se pierde en su misma transparencia,

conciencia traspasada por un ojo

que se mira mirarse hasta anegarse

de claridad:

yo vi tu atroz escama,

Melusina, brillar verdosa al alba,

dormías enroscada entre las sábanas

y al despertar gritaste como un pájaro

y caíste sin fin, quebrada y blanca,

nada quedó de ti sino tu grito,

y al cabo de los siglos me descubro

con tos y mala vista, barajando

viejas fotos:

no hay nadie, no eres nadie,

un montón de ceniza y una escoba,

un cuchillo mellado y un plumero,

un pellejo colgado de unos huesos,

un racimo ya seco, un hoyo negro

y en el fondo del hoyo los dos ojos

de una niña ahogada hace mil años,

 

miradas enterradas en un pozo,                     245

miradas que nos ven desde el principio,

mirada niña de la madre vieja

que ve en el hijo grande un padre joven,

mirada madre de la niña sola

que ve en el padre grande un hijo niño,

miradas que nos miran desde el fondo

de la vida y son trampas de la muerte

– ¿o es al revés: caer en esos ojos

es volver a la vida verdadera?,

 

¡caer, volver, soñarme y que me sueñen         255

otros ojos futuros, otra vida,

otras nubes, morirme de otra muerte!

– esta noche me basta, y este instante

que no acaba de abrirse y revelarme

dónde estuve, quién fui, cómo te llamas,

cómo me llamo yo:


¿hacía planes

para el verano – y todos los veranos –

en Christopher Street, hace diez años,

con Filis que tenía dos hoyuelos

donde bebían luz los gorriones?,

¿por la Reforma Carmen me decía

"no pesa el aire, aquí siempre es octubre",

o se lo dijo a otro que he perdido

o yo lo invento y nadie me lo ha dicho?,

¿caminé por la noche de Oaxaca,

inmensa y verdinegra como un árbol,

hablando solo como el viento loco

y al llegar a mi cuarto – siempre un cuarto –

no me reconocieron los espejos?,

¿desde el hotel Vernet vimos al alba

bailar con los castaños – "ya es muy tarde"

decías al peinarte y yo veía

manchas en la pared, sin decir nada?,

¿subimos juntos a la torre, vimos

caer la tarde desde el arrecife?

¿comimos uvas en Bidart?, ¿compramos

gardenias en Perote?,


nombres, sitios,

calles y calles, rostros, plazas, calles,

estaciones, un parque, cuartos solos,

manchas en la pared, alguien se peina,

alguien canta a mi lado, alguien se viste,

cuartos, lugares, calles, nombres, cuartos,

 

Madrid, 1937,                                               288

en la Plaza del Ángel las mujeres

cosían y cantaban con sus hijos,

después sonó la alarma y hubo gritos,

casas arrodilladas en el polvo,

torres hendidas, frentes esculpidas

y el huracán de los motores, fijo:

los dos se desnudaron y se amaron

por defender nuestra porción eterna,

nuestra ración de tiempo y paraíso,

tocar nuestra raíz y recobrarnos,

recobrar nuestra herencia arrebatada

por ladrones de vida hace mil siglos,

los dos se desnudaron y besaron

porque las desnudeces enlazadas

saltan el tiempo y son invulnerables,

nada las toca, vuelven al principio,

no hay tú ni yo, mañana, ayer ni nombres,

verdad de dos en sólo un cuerpo y alma,

oh ser total...


cuartos a la deriva

entre ciudades que se van a pique,

cuartos y calles, nombres como heridas,

el cuarto con ventanas a otros cuartos

con el mismo papel descolorido

donde un hombre en camisa lee el periódico

o plancha una mujer; el cuarto claro

que visitan las ramas de un durazno;

el otro cuarto: afuera siempre llueve

y hay un patio y tres niños oxidados;

cuartos que son navíos que se mecen

en un golfo de luz; o submarinos:

el silencio se esparce en olas verdes,

todo lo que tocamos fosforece;

mausoleos de lujo, ya roídos

los retratos, raídos los tapetes;

trampas, celdas, cavernas encantadas,

pajareras y cuartos numerados,

todos se transfiguran, todos vuelan,

cada moldura es nube, cada puerta

da al mar, al campo, al aire, cada mesa

es un festín; cerrados como conchas

el tiempo inútilmente los asedia,

no hay tiempo ya, ni muro: ¡espacio, espacio,

abre la mano, coge esta riqueza,

corta los frutos, come de la vida,

tiéndete al pie del árbol, bebe el agua!,

 

todo se transfigura y es sagrado,                    334

es el centro del mundo cada cuarto,

es la primera noche, el primer día,

el mundo nace cuando dos se besan,

gota de luz de entrañas transparentes

el cuarto como un fruto se entreabre

o estalla como un astro taciturno

y las leyes comidas de ratones,

las rejas de los bancos y las cárceles,

las rejas de papel, las alambradas,

los timbres y las púas y los pinchos,

el sermón monocorde de las armas,

el escorpión meloso y con bonete,

el tigre con chistera, presidente

del Club Vegetariano y la Cruz Roja,

el burro pedagogo, el cocodrilo

metido a redentor, padre de pueblos,

el Jefe, el tiburón, el arquitecto

del porvenir, el cerdo uniformado,

el hijo pedilecto de la Iglesia

que se lava la negra dentadura

con el agua bendita y toma clases

de inglés y democracia, las paredes

invisibles, las máscaras podridas

que dividen al hombe de los hombres,

al hombre de sí mismo,


se derrumban

por un instante inmenso y vislumbramos

nuestra unidad perdida, el desamparo

que es ser hombres, la gloria que es ser hombres

y compartir el pan, el sol, la muerte,

el olvidado asombro de estar vivos;

 

amar es combatir, si dos se besan                  365

el mundo cambia, encarnan los deseos,

el pensamiento encarna, brotan las alas

en las espaldas del esclavo, el mundo

es real y tangible, el vino es vino,

el pan vuelve a saber, el agua es agua,

amar es combatir, es abrir puertas,

dejar de ser fantasma con un número

a perpetua cadena condenado

por un amo sin rostro;


el mundo cambia

si dos se miran y se reconocen,

amar es desnudarse de los nombres:

"déjame ser tu puta", son palabras

de Eloísa, mas él cedió a las leyes,

la tomó por esposa y como premio

lo castraron después;


mejor el crimen,

los amantes suicidas, el incesto

de los hermanos como dos espejos

enamorados de su semejanza,

mejor comer el pan envenenado,

el adulterio en lechos de ceniza,

los amores feroces, el delirio,

su yedra ponzoñosa, el sodomita

que lleva por clavel en la solapa

un gargajo, mejor ser lapidado

en las plazas que dar vuelta a la noria

que exprime la substancia de la vida,

cambia la eternidad en horas huecas,

los minutos en cárceles, el tiempo

en monedas de cobre y mierda abstracta;

 

mejor la castidad, flor invisible                       394

que se mece en los tallos del silencio,

el difícil diamante de los santos

que filtra los deseos, sacia al tiempo,

nupcias de la quietud y el movimiento,

canta la soledad en su corola,

pétalo de cristal en cada hora,

el mundo se despoja de sus máscaras

y en su centro, vibrante transparencia,

lo que llamamos Dios, el ser sin nombre,

se contempla en la nada, el ser sin rostro

emerge de sí mismo, sol de soles,

plenitud de presencias y de nombres;

 

sigo mi desvarío, cuartos, calles,                     407

camino a tientas por los corredores

del tiempo y subo y bajo sus peldaños

y sus paredes palpo y no me muevo,

vuelvo donde empecé, busco tu rostro,

camino por las calles de mí mismo

bajo un sol sin edad, y tú a mi lado

caminas como un árbol, como un río

caminas y me hablas como un río,

creces como una espiga entre mis manos,

lates como una ardilla entre mis manos,

vuelas como mil pájaros, tu risa

me ha cubierto de espumas, tu cabeza

es un astro pequeño entre mis manos,

el mundo reverdece si sonríes

comiendo una naranja,


el mundo cambia

si dos, vertiginosos y enlazados,

caen sobre las yerba: el cielo baja,

los árboles ascienden, el espacio

sólo es luz y silencio, sólo espacio

abierto para el águila del ojo,

pasa la blanca tribu de las nubes,

rompe amarras el cuerpo, zarpa el alma,

perdemos nuestros nombres y flotamos

a la deriva entre el azul y el verde,

tiempo total donde no pasa nada

sino su propio transcurrir dichoso,

no pasa nada, callas, parpadeas

(silencio: cruzó un ángel este instante

grande como la vida de cien soles),

 

¿no pasa nada, sólo un parpadeo?                  434

– y el festín, el destierro, el primer crimen,

la quijada del asno, el ruido opaco

y la mirada incrédula del muerto

al caer en el llano ceniciento,

Agamenón y su mugido inmenso

y el repetido grito de Casandra

más fuerte que los gritos de las olas,

Sócrates en cadenas "(el sol nace,

morir es despertar: "Critón, un gallo

a Esculapio, ya sano de la vida"),

el chacal que diserta entre las ruinas

de Nínive, la sombra que vio Bruto

antes de la batalla, Moctezuma

en el lecho de espinas de su insomnio,

el viaje en la carretera hacia la muerte

– el viaje interminable mas contado

por Robespierre minuto tras minuto,

la mandíbula rota entre las manos –,

Churruca en su barrica como un trono

escarlata, los pasos ya contados

de Lincoln al salir hacia el teatro,

el estertor de Trotsky y sus quejidos

de jabalí, Madero y su mirada

que nadie contestó: ¿por qué me matan?,

los carajos, los ayes, los silencios

del criminal, el santo, el pobre diablo,

cementerio de frases y de anécdotas

que los perros retóricos escarban,

el delirio, el relincho, el ruido obscuro

que hacemos al morir y ese jadeo

que la vida que nace y el sonido

de huesos machacadosen la riña

y la boca de espuma del profeta

y su grito y el grito del verdugo

y el grito de la víctima...


son llamas

los ojos y son llamas lo que miran,

llama la oreja y el sonido llama,

brasa los labios y tizón la lengua,

el tacto y lo que toca, el pensamiento

y lo pensado, llama el que lo piensa,

todo se quema, el universo es llama,

arde la misma nada que no es nada

sino un pensar en llamas, al fin humo:

no hay verdugo ni víctima...


¿y el grito

en la tarde del viernes?, y el silencio

que se cubre de signos, el silencio

que dice sin decir, ¿no dice nada?,

¿no son nada los gritos de los hombres?,

¿no pasa nada cuando pasa el tiempo?

 

– no pasa nada, sólo un parpadeo                  487

del sol, un movimiento apenas, nada,

no hay redención, no vuelve atrás el tiempo,

los muerto están fijos en su muerte

y no pueden morirse de otra muerte,

intocables, clavados en su gesto,

desde su soledad, desde su muerte

sin remedio nos miran sin mirarnos,

su muerte ya es la estatua de su vida,

un siempre estar ya nada para siempre,

cada minuto es nada para siempre,

un rey fantasma rige sus latidos

y tu gesto final, tu dura máscara

labra sobre tu rostro cambiante:

el monumento somos de una vida

ajena y no vivida, apenas nuestra,

 

– ¿la vida, cuándo fue de veras nuestra?,        503

¿cuándo somos de veras lo que somos?,

bien mirado no somos, nunca somos

a solas sino vértigo y vacío,

muecas en el espejo, horror y vómito,

nunca la vida es nuestra, es de los otros,

la vida no es de nadie, todos somos

la vida – pan de sol para los otros,

los otros todos que nosotros somos –,

soy otro cuando soy, los actos míos

son más míos si son también de todos,

para que pueda ser he de ser otro,

salir de mí, buscarme entre los otros,

los otros que no son si yo no existo,

los otros que me dan plena existencia,

no soy, no hay yo, siempre somos nosotros,

la vida es otra, siempre allá, más lejos,

fuera de ti, de mí, siempre horizonte,

vida que nos desvive y enajena,

que nos inventa un rostro y lo desgasta,

hambre de ser, oh muerte, pan de todos,

 

Eloísa, Perséfona, María,                                524

muestra tu rostro al fin para que vea

mi cara verdadera, la del otro,

mi cara de nosotros siempre todos,

cara de árbol y de panadero,

de chófer y de nube y de marino,

cara de sol y arroyo y Pedro y Pablo,

cara de solitario colectivo,

despiértame, ya nazco:


vida y muerte

pactan en ti, señora de la noche,

torre de claridad, reina del alba,

virgen lunar, madre del agua madre,

cuerpo del mundo, casa de la muerte,

caigo sin fin desde mi nacimiento,

caigo en mí mismo sin tocar mi fondo,

recógeme en tus ojos, junta el polvo

disperso y reconcilia mis cenizas,

ata mis huesos divididos, sopla

sobre mi ser, entiérrame en tu tierra,

tu silencio dé paz al pensamiento

contra sí mismo airado;


abre la mano,

señora de semillas que son días,

el día es inmortal, asciende, crece,

acaba de nacer y nunca acaba,

cada día es nacer, un nacimiento

es cada amanecer y yo amanezco,

amanecemos todos, amanece

el sol cara de sol, Juan amanece

con su cara de Juan cara de todos,

 

puerta del ser, despiértame, amanece,            553

déjame ver el rostro de este día,

déjame ver el rostro de esta noche,

todo se comunica y transfigura,

arco de sangre, puente de latidos,

llévame al otro lado de esta noche,

adonde yo soy tú somos nosotros,

al reino de pronombres enlazados,

 

puerta del ser: abre tu ser, despierta,             561

aprende a ser también, labra tu cara,

trabaja tus facciones, ten un rostro

para mirar mi rostro y que te mire,

para mirar la vida hasta la muerte,

rostro de mar, de pan, de roca y fuente,

manantial que disuelve nuestros rostros

en el rostro sin nombre, el ser sin rostro,

indecible presencia de presencias...

 

quiero seguir, ir más allá, y no puedo:            570

se despeñó el instante en otro y otro,

dormí sueños de piedra que no sueña

y al cabo de los años como piedras

oí cantar mi sangre encarcelada,

con un rumor de luz el mar cantaba,

una a una cedían las murallas,

todas las puertas se desmoronaban

y el sol entraba a saco por mi frente,

despegaba mis párpados cerrados,

desprendía mi ser de su envoltura,

me arrancaba de mí, me separaba

de mi bruto dormir siglos de piedra

y su magia de espejos revivía

 

un sauce de cristal, un chopo de agua,            585

un alto surtidor que el viento arquea,

un árbol bien plantado mas danzante,

un caminar de río que se curva,

avanza, retrocede, da un rodeo

y llega siempre.

 

México, 1957

 


 (*) O áudio em português desse poema está neste link:


 https://www.youtube.com/watch?v=dST34ht18DI&feature=youtu.be&fbclid=IwAR1zDl-7c2_5uipaciQ6DvKKdfTCTTDQZNewqIUR5ieCWuxFPetW4FJTMEE

 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

María Mercedes Carranza (Colômbia: 1945 – 2003)

 


 

A Pátria

  

Esta casa de espessas paredes coloniais

e um pátio de azaleias muito século XIX

há vários séculos vem abaixo.

Como se não fosse nada as pessoas vão e vêm

pelas casas em ruínas,

fazem amor, bailam, escrevem cartas.

Com frequência silvam balas ou talvez o vento

que silva através do teto destroçado.

Nesta casa os vivos dormem com os mortos,

imitam seus costumes, repetem seus gestos

e quando cantam, cantam seus fracassos.

 

Tudo é ruína nesta casa,

estão em ruínas o abraço e a música,

o destino, cada manhã, o riso são ruínas;

As janelas mostram paisagens destruídas,

carne e cinza se confundem nas casas,

nas bocas as palavras se revolvem com medo.

Nesta casa todos estamos enterrados vivos.

  

La Patria

  

Esta casa de espesas paredes coloniales

y un patio de azaleas muy decimonónico

hace varios siglos que se viene abajo.

Como si nada las personas van y vienen

por las habitaciones en ruina,

hacen el amor, bailan, escriben cartas.

 

A menudo silban balas o es tal vez el viento

que silba a través del techo desfondado.

En esta casa los vivos duermen con los muertos,

imitan sus costumbres, repiten sus gestos

y cuando cantan, cantan sus fracasos.

 

Todo es ruina en esta casa,

están en ruina el abrazo y la música,

el destino, cada mañana, la risa son ruina;

las lágrimas, el silencio, los sueños.

Las ventanas muestran paisajes destruidos,

carne y ceniza se confunden en las caras,

en las bocas las palabras se revuelven con miedo.

En esta casa todos estamos enterrados vivos.

 

domingo, 9 de agosto de 2020

Maria Mercedes Carranza (Colômbia: 1945 – 2003)

 

De Bocajá nos campos*

  

Ali, sentado, de pé,

a cavalo, em bronze ou mármore,

molhado graças aos pombos

e molhado também pela chuva,

em cada povoado, em toda praça,

cabido e prefeitura estás tu.

Marchas militares com coronéis

que levam e trazem flores.

Discursos, poemas,

e em teus retratos o porte de um general

que mais que dragonas

ostentava um calo em cada nádega

de tanto cavalgar por estas terras,

e mais que de um físico ao galã de Hollywood

tinha o ademã mestiço de uma batalha perdida.

Centenários de teu primeiro dente e de teu último sorriso.

Confraria de damas adoradoras

e até guerras começaram

para disputar um gesto teu.

Os meninos te imitam

com o cavalo de madeira e a espada de mentira.

Encheram-te a boca de palha, Simón,

Transformaram-te em estátua,

medalha, selos

e até cédula de banco.

Por que nem todos os rios vão dar ao mar,

alguns terminam nas academias,

nos pergaminhos, nas molduras douradas:

o que também é morrer.

Mas e se de repente, e se quiçá, e se para melhor,

e se por acaso, e se talvez nalgum dia tu sacodes a chuva,

os lauréis e tanto pó, quem impede.

  

De Bocayá em los campos*

  

Allí, sentado, de pie,

a caballo, en bronce, en mármol,

llovido por las gracias de las palomas

y llovido también por la lluvia,

en cada pueblo, en toda plaza,

cabildo y alcaldía estás tú.

Marchas militares con coroneles

que llevan y traen flores.

Discursos, poemas,

y en tus retratos el porte de un general

que más que charreteras

lucía un callo en cada nalga

de tanto cabalgar por estas tierras,

y más que un físico a lo galán de Hollywood

tenía el ademán mestizo de una batalla perdida.

Centenarios de tu primer diente y de tu última sonrisa.

Cofradías de damas adoradoras

y hasta guerras estallan

por disputarse un gesto tuyo.

Los niños te imitan

con el caballo de madera y la espada de mentira.

Te han llenado la boca de paja, Simón,

te han vuelto estatua,

medalla, estampilla

y hasta billete de banco.

Porque no todos los ríos van a dar a la mar,

algunos terminan en las academias,

en los pergaminos, en los marcos dorados:

lo que también es el morir.

Pero y si de pronto, y si quizás, y si a lo mejor,

y si acaso, y si talvez algún día te sacudes la lluvia,

los laureles y tanto polvo, quien quita.

 

 

(*) Verso da quinta estrofe do hino da Colômbia.

Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

  Argonautas   E se a alma deve conhecer-se a si mesma ela deve voltar os olhos para outra alma: * o estrangeiro e inimigo, vim...