segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

 Averno – 9/18

  

Paisagem

 

1.

O sol está se pondo atrás das montanhas,

a terra está esfriando.

Um estranho amarrou seu cavalo a uma castanheira desfolhada.

O cavalo está quieto – volta a cabeça de repente,

ouvindo, ao longe, o som do mar.

 

Aqui faço minha cama para a noite,

estendendo minha manta mais pesada sobre a terra úmida.

 

O som do mar –

quando o cavalo volta a cabeça, eu posso ouvi-lo,

 

Em um caminho entre as castanheiras desfolhadas,

um cãozinho segue seu dono.

 

O cãozinho – ele não costumava se apressar à frente,

estirando a trela, como se para mostrar ao dono

o que vê ao longe, ao longe no futuro –                         

 

o futuro, o caminho, chame-o como quiser.

 

Atrás das árvores, no crepúsculo, é como se um grande fogo

estivesse queimando entre duas montanhas

de modo que a neve nos mais altos precipícios

parece, por um momento, estar também queimando.

 

Ouça: no fim da trilha o homem está chamando.

Sua voz tornou-se muito estranha,

a voz de alguém chamando o que não pode ver.

 

De novo e de novo ele grita entre as castanheiras escuras.

 

Até que o animal responda

debilmente, muito ao longe,

como se essa coisa que tememos

não fosse tão horrível.

 

Crepúsculo. O estranho desamarrou seu cavalo.

 

O som do mar –

Agora apenas lembrança.

 

2.

O tempo passou, transformando tudo em gelo.

Sob o gelo, o futuro se agitou.

Se você caísse nele, morreria.

 

Era um tempo

de expectativas, de ação suspensa.

 

Eu vivia no presente, que era

aquela parte do futuro que você podia ver.

O passado pairava sobre minha cabeça,

como o sol e a lua, visíveis mas nunca alcançáveis.

 

Era um tempo

regido por contradições, como em

eu não sentia nada e

estava com medo.

 

O inverno desfolhou as árvores, cobriu-as de neve outra vez.

Porque eu não podia sentir, a neve sentiu, o lago congelou.

Porque eu tinha medo, não me movi;

minha respiração estava branca, uma descrição do silêncio.

 

O tempo passou, e nele algo se transformou nisso.

E parte dele simplesmente evaporou-se;

você podia vê-lo pairando sobre as árvores brancas

formando partículas de gelo.

 

Por toda sua vida, você esperou pelo momento favorável.

Então o momento favorável

revela-se como ação conquistada.

 

Vi o passado se mover, uma linha de nuvens se movendo

da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,

dependendo do vento. Em certos dias

 

não havia vento. As nuvens pareciam

permanecer onde estavam

como uma pintura marinha, mais imóvel que real.

 

Em certos dias o lago era uma lâmina de vidro.

Sob o espelho, o futuro emitiu

sons tímidos, convidativos:

você precisava se retesar para não escutar.

 

O tempo passou; você conseguiu ver uma parte dele.

Os anos que levou consigo foram anos de inverno;

não seriam esquecidos. Em certos dias

 

não havia nenhuma nuvem, como se

as fontes do passado houvessem desaparecido. O mundo

 

perdera a cor, como um negativo; a luz passou

diretamente através dele. Então

a imagem desvaneceu.

 

Acima do mundo

havia apenas azul, azul por toda parte.

 

3.

No fim do outono uma jovem ateou fogo a um campo

de trigo. O outono

fora muito seco. O campo

ardeu como um graveto.

 

Depois não sobrou nada.

Você caminha por ele, não vê nada.

 

Não há nada para pegar, cheirar.

Os cavalos não compreendem –

 

Onde está o campo, parecem dizer.

Assim como você e eu diríamos

onde está o lar.

 

Ninguém sabe como lhes responder.

Nada sobrou;

você tem que acreditar que, para o bem do fazendeiro,

o seguro irá pagar.

 

é como perder um ano de sua vida.

Pelo quê você perderia um ano de sua vida?

 

Depois, você volta ao velho lugar –

tudo o que restou é carvão: negrume e vazio.

 

Você pensa: como eu pude viver aqui?

 

Mas na época era diferente,

mesmo no verão passado. A terra se comportava

como se nada pudesse acontecer de errado com ela.

 

Um fósforo foi o que bastou.

Mas no momento certo – teria que ser no momento certo. 

 

O campo ressequido, seco –

a indiferença já em seu lugar

por assim dizer.

 

4.

Adormeci em um rio, acordei em um rio,

sobre meu misterioso

fracasso ao tentar morrer não posso dizer

nada, nem

sobre quem me salvou nem por que motivo –

 

Havia um imenso silêncio.

Nenhum vento. Nenhum som humano.

O século amargo

 

chegara ao fim,

o glorioso foi-se, o duradouro foi-se,

 

o sol frio

persistindo como uma espécie de curiosidade, uma recordação,

o tempo afluindo atrás –

 

O céu parecia muito claro,

como é no inverno,

o solo seco, não cultivado,

 

a luz oficial se propagando

sem pressa por uma passagem de ar

 

digna, complacente,

desfazendo esperanças,

sujeitando as imagens do futuro a sinais da morte do futuro –

 

Penso que devo ter caído.

Quando tentei me levantar, tive de me esforçar,

estando desacostumada à dor física –

 

Esquecera

de quão duras são tais condições:

 

a terra ainda produtiva

mas quieta, o rio frio, raso –

 

De meu sono, não lembro

nada. Quando gritei,

minha voz me acalmou de repente.

 

No silêncio da consciência me perguntei

por que rejeitei minha vida? E respondi

Die Erde überwältigt mich.

a terra me derrota.

 

Tentei ser precisa nesta descrição

caso alguém me seguisse. Posso atestar

que ao se pôr no inverno o sol é

incomparavelmente belo e a lembrança disso

perdura por muito tempo. Penso que isso quer dizer

 

que não houve noite.

A noite estava em minha cabeça.

 

5.

Depois do pôr do sol

cavalgamos depressa, na esperança de encontrar

abrigo antes da escuridão.

 

Eu já conseguia ver as estrelas,

de início no céu a leste:

 

cavalgamos, assim,

afastando-nos da luz

e em direção ao mar, pois

eu ouvira falar de um vilarejo lá.

 

Passado um tempo, a neve começou.

A princípio não muito densa, depois

constante até que a terra

fosse coberta por uma fina camada branca.

 

O modo como viajamos se revelou

nitidamente quando voltei a cabeça –

em pouco tempo fora feita

uma sombria trajetória pela terra –

 

A neve estava espessa, o caminho desapareceu.

O cavalo estava cansado e faminto;

ele não mais conseguia encontrar

apoio firme em nenhum lugar. Disse a mim mesma:

 

Já me perdi antes, já passei frio antes.

A noite veio a meu encontro

exatamente assim, como uma premonição –

 

E pensei: se me pedem

para voltar aqui, eu gostaria de voltar

como um ser humano, e que meu cavalo

 

permanecesse ele mesmo. Caso contrário

eu não saberia como recomeçar.

 

  

Landscape

 

1.

The sun is setting behind the mountains,

the earth is cooling.

A stranger has tied his horse to a bare chestnut tree.

The horse is quiet – he turns his head suddenly,

hearing, in the distance, the sound of the sea.

 

I make my bed for the night here,

spreading my heaviest quilt over the damp earth.

 

The sound of the sea –

when the horse turns its head, I can hear it.

 

On a path through the bare chestnut trees,

a little dog trails its master.

 

The little dog – didn’t he used to rush ahead,

straining the leash, as though to show his master

what he sees there, there in the future –

 

the future, the path, call it what you will.

 

Behind the trees, at sunset, it is as though a great fire

is burning between two mountains

so that the snow on the highest precipice

seems, for a moment, to be burning also.

 

Listen: at the path’s end the man is calling out.

His voice has become very strange now,

the voice of a person calling to what he can’t see.

 

Over and over he calls out among the dark chestnut trees.

Until the animal responds

faintly, from a great distance,

as though this thing we fear

 were not so terrible.

 

Twilight: the stranger has untied his horse.

 

The sound of the sea –

just memory now.

 

2.

Time passed, turning everything to ice.

Under the ice, the future stirred.

 If you fell into it, you died.

 

It was a time

of waiting, of suspended action.

 

I lived in the present, which was

that part of the future you could see.

The past floated above my head,

like the sun and moon, visible but never reachable.

 

It was a time

governed by contradictions, as in

I felt nothing and

I was afraid.

 

Winter emptied the trees, filled them again with snow.

Because I couldn’t feel, snow fell, the lake froze over.

Because I was afraid, I didn’t move;

my breath was white, a description of silence.

 

Time passed, and some of it became this.

And some of it simply evaporated;

you could see it float above the white trees

forming particles of ice.

 

All your life, you wait for the propitious time.

Then the propitious time

reveals itself as action taken.

 

I watched the past move, a line of clouds moving

from left to right or right to left,

depending on the wind. Some days

 

there was no wind. The clouds seemed

to stay where they were,

like a painting of the sea, more still than real.

 

Some days the lake was a sheet of glass.

Under the glass, the future made

demure, inviting sounds:

you had to tense yourself so as not to listen.

 

Time passed; you got to see a piece of it.

The years it took with it were years of winter;

 they would not be missed. Some days

 

there were no clouds, as though

the sources of the past had vanished. The world

 

was bleached, like a negative; the light passed

directly through it. Then

the image faded.

 

Above the world

 there was only blue, blue everywhere.

 

3.

In late autumn a young girl set fire to a field

of wheat. The autumn

 

had been very dry; the field

went up like tinder.

 

Afterward there was nothing left.

You walk through it, you see nothing.

 

There’s nothing to pick up, to smell.

The horses don’t understand it –

 

Where is the field, they seem to say.

The way you and I would say

where is home.

 

No one knows how to answer them.

There is nothing left;

you have to hope, for the farmer’s sake,

the insurance will pay.

 

It is like losing a year of your life.

To what would you lose a year of your life?

 

Afterward, you go back to the old place–

all that remains is char: blackness and emptiness.

 

You think: how could I live here?

 

But it was different then,

even last summer. The earth behaved

as though nothing could go wrong with it.

 

One match was all it took.

But at the right time – it had to be the right time.

 

The field parched, dry –

the deadness in place already

so to speak.

 

4.

I feel asleep in a river, I woke in a river,

of my mysterious

failure to die I can tell you

nothing, neither

who saved me nor for what cause –

 

There was immense silence.

No wind. No human sound.

The bitter century

 

was ended,

the glorious gone, the abiding gone,

 

the cold sun

persisting as a kind of curiosity, a memento,

time streaming behind it –

 

The sky seemed very clear,

as it is in winter,

the soil dry, uncultivated,

 

the official light calmly

moving through a slot of air

 

dignified, complacent,

dissolving hope,

subordinating images of the future to signs of the future’s passing–

 

I think I must have fallen.

When I tried to stand, I had to force myself,

being unused to physical pain–

 

I had forgotten

how harsh these conditions are:

 

the earth not obsolete

but still, the river cold, shallow –

 

Of my sleep, I remember

nothing. When I cried out,

my voice soothed me unexpectedly.

 

In the silence of consciousness I asked myself:

why did I reject my life? And I answer

Die Erde überwältigt mich:

the earth defeats me.

 

I have tried to be accurate in this description

in case someone else should follow me. I can verify

 that when the sun sets in winter it is

incomparably beautiful and the memory of it

lasts a long time. I think this means

 

there was no night.

The night was in my head.

 

5.

After the sun set

we rode quickly, in the hope of finding

shelter before darkness.

 

I could see the stars already,

first in the eastern sky:

 

we rode, therefore,

away from the light

and toward the sea, since

I had heard of a village there.

 

After some time, the snow began.

 Not thickly at first, then

steadily until the earth

was covered with a white film.

 

The way we traveled showed

clearly when I turned my head –

for a short while it made

a dark trajectory across the earth –

 

Then the snow was thick, the path vanished.

The horse was tired and hungry;

he could no longer find

sure footing anywhere. I told myself:

 

I have been lost before, I have been cold before.

The night has come to me

exactly this way, as a premonition –

 

And I thought: if I am asked

to return here, I would like to come back

as a human being, and my horse

 

to remain himself. Otherwise

I would not know how to begin again.

 

 

Nota:

[1] Os versos entre travessões compõem uma frase interrogativa, ainda que sem ponto de interrogação para indicá-lo, o que é bem perceptível em inglês, mas não em português – algo característico na autora.

sábado, 31 de outubro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

 

Averno – 8/18

 

Estrela vespertina

 

Nesta noite, pela primeira vez após muitos anos,

veio a mim de novo

uma visão do esplendor da terra:

 

no céu do anoitecer

a primeira estrela pareceu

crescer em brilho

enquanto a terra escurecia

 

até não poder mais tornar-se escura.

E a luz, que era a luz da morte,

pareceu restituir à terra

 

seu poder de consolação. Não havia

outras estrelas. Apenas aquela

cujo nome eu conhecia

 

pois em minha outra vida eu a

feri: Vênus,

estrela do anoitecer,

 

a você dedico

minha visão, pois sobre esta superfície vazia

 

você lançou luz suficiente

para tornar meu pensamento

outra vez visível.

 

 

 

The Evening Star

 

 

Tonight, for the first time in many years,

there appeared to me again

a vision of the earth’s splendor:

 

 

in the evening sky

the first star seemed

to increase in brilliance

as the earth darkened

 

 

until at last it could grow no darker.

And the light, which was the light of death,

seemed to restore to earth

 

 

its power to console. There were

no other stars. Only the one

whose name I knew

 

 

as in my other life I did her

injury: Venus,

star of the early evening,

 

 

to you I dedicate

my vision, since on this blank surface

 

 

you have cast enough light

to make my thought

visible again.

 

 

Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

  Argonautas   E se a alma deve conhecer-se a si mesma ela deve voltar os olhos para outra alma: * o estrangeiro e inimigo, vim...