Averno – 9/18
Paisagem
1.
O sol está se
pondo atrás das montanhas,
a terra está
esfriando.
Um estranho
amarrou seu cavalo a uma castanheira desfolhada.
O cavalo está
quieto – volta a cabeça de repente,
ouvindo, ao
longe, o som do mar.
Aqui faço
minha cama para a noite,
estendendo
minha manta mais pesada sobre a terra úmida.
O som do mar
–
quando o
cavalo volta a cabeça, eu posso ouvi-lo,
Em um caminho
entre as castanheiras desfolhadas,
um cãozinho
segue seu dono.
O cãozinho –
ele não costumava se apressar à frente,
estirando a
trela, como se para mostrar ao dono
o que vê ao
longe, ao longe no futuro –
o futuro, o
caminho, chame-o como quiser.
Atrás das
árvores, no crepúsculo, é como se um grande fogo
estivesse
queimando entre duas montanhas
de modo que a
neve nos mais altos precipícios
parece, por
um momento, estar também queimando.
Ouça: no fim
da trilha o homem está chamando.
Sua voz
tornou-se muito estranha,
a voz de
alguém chamando o que não pode ver.
De novo e de novo ele grita entre
as castanheiras escuras.
Até que o
animal responda
debilmente,
muito ao longe,
como se essa
coisa que tememos
não fosse tão
horrível.
Crepúsculo. O
estranho desamarrou seu cavalo.
O som do mar
–
Agora apenas
lembrança.
2.
O tempo
passou, transformando tudo em gelo.
Sob o gelo, o
futuro se agitou.
Se você
caísse nele, morreria.
Era um tempo
de
expectativas, de ação suspensa.
Eu vivia no
presente, que era
aquela parte
do futuro que você podia ver.
O passado
pairava sobre minha cabeça,
como o sol e
a lua, visíveis mas nunca alcançáveis.
Era um tempo
regido por
contradições, como em
eu não sentia nada e
estava com medo.
O inverno
desfolhou as árvores, cobriu-as de neve outra vez.
Porque eu não
podia sentir, a neve sentiu, o lago congelou.
Porque eu
tinha medo, não me movi;
minha
respiração estava branca, uma descrição do silêncio.
O tempo
passou, e nele algo se transformou nisso.
E parte dele
simplesmente evaporou-se;
você podia vê-lo pairando sobre as
árvores brancas
formando
partículas de gelo.
Por toda sua
vida, você esperou pelo momento favorável.
Então o
momento favorável
revela-se
como ação conquistada.
Vi o passado
se mover, uma linha de nuvens se movendo
da esquerda
para a direita ou da direita para a esquerda,
dependendo do
vento. Em certos dias
não havia
vento. As nuvens pareciam
permanecer
onde estavam
como uma
pintura marinha, mais imóvel que real.
Em certos
dias o lago era uma lâmina de vidro.
Sob o
espelho, o futuro emitiu
sons tímidos,
convidativos:
você
precisava se retesar para não escutar.
O tempo
passou; você conseguiu ver uma parte dele.
Os anos que
levou consigo foram anos de inverno;
não seriam
esquecidos. Em certos dias
não havia
nenhuma nuvem, como se
as fontes do
passado houvessem desaparecido. O mundo
perdera a
cor, como um negativo; a luz passou
diretamente
através dele. Então
a imagem
desvaneceu.
Acima do
mundo
havia apenas
azul, azul por toda parte.
3.
No fim do
outono uma jovem ateou fogo a um campo
de trigo. O
outono
fora muito
seco. O campo
ardeu como um
graveto.
Depois não
sobrou nada.
Você caminha
por ele, não vê nada.
Não há nada
para pegar, cheirar.
Os cavalos
não compreendem –
Onde está o
campo, parecem dizer.
Assim como
você e eu diríamos
onde está o
lar.
Ninguém sabe
como lhes responder.
Nada sobrou;
você tem que
acreditar que, para o bem do fazendeiro,
o seguro irá
pagar.
é como perder
um ano de sua vida.
Pelo quê você
perderia um ano de sua vida?
Depois, você
volta ao velho lugar –
tudo o que
restou é carvão: negrume e vazio.
Você pensa:
como eu pude viver aqui?
Mas na época
era diferente,
mesmo no
verão passado. A terra se comportava
como se nada
pudesse acontecer de errado com ela.
Um fósforo
foi o que bastou.
Mas no momento
certo – teria que ser no momento certo.
O campo
ressequido, seco –
a indiferença
já em seu lugar
por assim
dizer.
4.
Adormeci em
um rio, acordei em um rio,
sobre meu
misterioso
fracasso ao
tentar morrer não posso dizer
nada, nem
sobre quem me
salvou nem por que motivo –
Havia um
imenso silêncio.
Nenhum vento.
Nenhum som humano.
O século
amargo
chegara ao
fim,
o glorioso
foi-se, o duradouro foi-se,
o sol frio
persistindo
como uma espécie de curiosidade, uma recordação,
o tempo
afluindo atrás –
O céu parecia
muito claro,
como é no
inverno,
o solo seco,
não cultivado,
a luz oficial
se propagando
sem pressa
por uma passagem de ar
digna,
complacente,
desfazendo
esperanças,
sujeitando as
imagens do futuro a sinais da morte do futuro –
Penso que
devo ter caído.
Quando tentei
me levantar, tive de me esforçar,
estando
desacostumada à dor física –
Esquecera
de quão duras
são tais condições:
a terra ainda
produtiva
mas quieta, o
rio frio, raso –
De meu sono,
não lembro
nada. Quando
gritei,
minha voz me
acalmou de repente.
No silêncio
da consciência me perguntei
por que
rejeitei minha vida? E respondi
Die Erde überwältigt mich.
a terra me
derrota.
Tentei ser
precisa nesta descrição
caso alguém
me seguisse. Posso atestar
que ao se pôr
no inverno o sol é
incomparavelmente
belo e a lembrança disso
perdura por
muito tempo. Penso que isso quer dizer
que não houve
noite.
A noite
estava em minha cabeça.
5.
Depois do pôr
do sol
cavalgamos
depressa, na esperança de encontrar
abrigo antes
da escuridão.
Eu já
conseguia ver as estrelas,
de início no
céu a leste:
cavalgamos,
assim,
afastando-nos
da luz
e em direção
ao mar, pois
eu ouvira
falar de um vilarejo lá.
Passado um
tempo, a neve começou.
A princípio
não muito densa, depois
constante até
que a terra
fosse coberta
por uma fina camada branca.
O modo como
viajamos se revelou
nitidamente
quando voltei a cabeça –
em pouco
tempo fora feita
uma sombria
trajetória pela terra –
A neve estava
espessa, o caminho desapareceu.
O cavalo
estava cansado e faminto;
ele não mais
conseguia encontrar
apoio firme
em nenhum lugar. Disse a mim mesma:
Já me perdi
antes, já passei frio antes.
A noite veio
a meu encontro
exatamente
assim, como uma premonição –
E pensei: se
me pedem
para voltar
aqui, eu gostaria de voltar
como um ser
humano, e que meu cavalo
permanecesse
ele mesmo. Caso contrário
eu não saberia como recomeçar.
Landscape
1.
The sun is setting behind the mountains,
the earth is cooling.
A stranger has tied his horse to a bare
chestnut tree.
The horse is quiet – he turns his head
suddenly,
hearing, in the distance, the sound of the sea.
I make my bed for the night here,
spreading my heaviest quilt over the damp
earth.
The sound of the sea –
when the horse turns its head, I can hear it.
On a path through the bare chestnut trees,
a little dog trails its master.
The little dog – didn’t he used to rush ahead,
straining the leash, as though to show his
master
what he sees there, there in the future –
the future, the path, call it what you will.
Behind the trees, at sunset, it is as though a
great fire
is burning between two mountains
so that the snow on the highest precipice
seems, for a moment, to be burning also.
Listen: at the path’s end the man is calling
out.
His voice has become very strange now,
the voice of a person calling to what he can’t
see.
Over and over he calls out among the dark
chestnut trees.
Until the animal responds
faintly, from a great distance,
as though this thing we fear
were not
so terrible.
Twilight: the stranger has untied his horse.
The sound of the sea –
just memory now.
2.
Time passed, turning everything to ice.
Under the ice, the future stirred.
If you
fell into it, you died.
It was a time
of waiting, of suspended action.
I lived in the present, which was
that part of the future you could see.
The past floated above my head,
like the sun and moon, visible but never
reachable.
It was a time
governed by contradictions, as in
I felt nothing and
I was afraid.
Winter emptied the trees, filled them again
with snow.
Because I couldn’t feel, snow fell, the lake
froze over.
Because I was afraid, I didn’t move;
my breath was white, a description of silence.
Time passed, and some of it became this.
And some of it simply evaporated;
you could see it float above the white trees
forming particles of ice.
All your life, you wait for the propitious
time.
Then the propitious time
reveals itself as action taken.
I watched the past move, a line of clouds
moving
from left to right or right to left,
depending on the wind. Some days
there was no wind. The clouds seemed
to stay where they were,
like a painting of the sea, more still than real.
Some days the lake was a sheet of glass.
Under the glass, the future made
demure, inviting sounds:
you had to tense yourself so as not to listen.
Time passed; you got to see a piece of it.
The years it took with it were years of winter;
they would
not be missed. Some days
there were no clouds, as though
the sources of the past had vanished. The world
was bleached, like a negative; the light passed
directly through it. Then
the image faded.
Above the world
there
was only blue, blue everywhere.
3.
In late autumn a young girl set fire to a field
of wheat. The autumn
had been very dry; the field
went up like tinder.
Afterward there was nothing left.
You walk through it, you see nothing.
There’s nothing to pick up, to smell.
The horses don’t understand it –
Where is the field, they seem to say.
The way you and I would say
where is home.
No one knows how to answer them.
There is nothing left;
you have to hope, for the farmer’s sake,
the insurance will pay.
It is like losing a year of your life.
To what would you lose a year of your life?
Afterward, you go back to the old place–
all that remains is char: blackness and
emptiness.
You think: how could I live here?
But it was different then,
even last summer. The earth behaved
as though nothing could go wrong with it.
One match was all it took.
But at the right time – it had to be the right
time.
The field parched, dry –
the deadness in place already
so to speak.
4.
I feel asleep in a river, I woke in a river,
of my mysterious
failure to die I can tell you
nothing, neither
who saved me nor for what cause –
There was immense silence.
No wind. No human sound.
The bitter century
was ended,
the glorious gone, the abiding gone,
the cold sun
persisting as a kind of curiosity, a memento,
time streaming behind it –
The sky seemed very clear,
as it is in winter,
the soil dry, uncultivated,
the official light calmly
moving through a slot of air
dignified, complacent,
dissolving hope,
subordinating images of the future to signs of
the future’s passing–
I think I must have fallen.
When I tried to stand, I had to force myself,
being unused to physical pain–
I had forgotten
how harsh these conditions are:
the earth not obsolete
but still, the river cold, shallow –
Of my sleep, I remember
nothing. When I cried out,
my voice soothed me unexpectedly.
In the silence of consciousness I asked myself:
why did I reject my life? And I answer
Die Erde überwältigt mich:
the earth defeats me.
I have tried to be accurate in this description
in case someone else should follow me. I can
verify
that
when the sun sets in winter it is
incomparably beautiful and the memory of it
lasts a long time. I think this means
there was no night.
The night was in my head.
5.
After the sun set
we rode quickly, in the hope of finding
shelter before darkness.
I could see the stars already,
first in the eastern sky:
we rode, therefore,
away from the light
and toward the sea, since
I had heard of a village there.
After some time, the snow began.
Not
thickly at first, then
steadily until the earth
was covered with a white film.
The way we traveled showed
clearly when I turned my head –
for a short while it made
a dark trajectory across the earth –
Then the snow was thick, the path vanished.
The horse was tired and hungry;
he could no longer find
sure footing anywhere. I told myself:
I have been lost before, I have been cold
before.
The night has come to me
exactly this way, as a premonition –
And I thought: if I am asked
to return here, I would like to come back
as a human being, and my horse
to remain himself. Otherwise
I would not know how to begin again.
Nota:
[1] Os versos entre travessões compõem uma
frase interrogativa, ainda que sem ponto de interrogação para indicá-lo, o que
é bem perceptível em inglês, mas não em português – algo característico na
autora.