Averno – 7/18
Fuga
1.
Eu era o homem porque era mais alta.
Minha irmã decidiu
quando deveríamos comer.
De tempo em tempo, ela teria um bebê.
2.
Então a minha alma apareceu.
Quem é você, eu disse.
E a minha alma disse,
Sou a sua alma, a encantadora desconhecida.
3.
Nossa irmã morta
esperou, oculta na cabeça de minha mãe.
Nossa irmã morta não era nem
homem nem mulher. Era como uma alma.
4.
A minha alma foi adotada:
Uniu-se a um homem.
Não a um homem real, o homem
que eu fingia ser, brincando com a minha irmã.
5.
Ela está voltando para mim – deitar-me no
sofá
refrescou minha memória.
A minha memória é como um porão cheio de
papéis velhos:
nada nunca muda.
6.
Tive um sonho: a minha mãe caiu de
uma árvore.
Depois que ela caiu, a árvore morreu:
havia durado além de sua utilidade.
A minha mãe estava ilesa – suas flechas
desapareceram, suas asas
viraram braços. Criatura de Fogo: Sagitário.
Ela se encontra em –
um jardim suburbano. Ele está voltando para
mim.
7.
Ponho o livro de lado. O que é uma alma?
Uma bandeira esvoaçando
bem alto sobre o pólo, se você me entende.
O corpo
encolhe-se temeroso no matagal onírico.
8.
Bem, estamos
aqui para fazer algo a respeito disso.
(com sotaque alemão.)
9.
Tive um sonho: estamos em guerra.
A minha mãe deixa a sua besta sobre a relva
crescida.
(Sagitário, o arqueiro)
Minha infância, para sempre a mim
interditada,
ficou dourada como um jardim de outono,
adubado com uma grossa camada de feno do pântano salgado.
10.
Um arco dourado: um presente útil em tempo de
guerra.
Quão pesado ele era – nenhuma criança podia
segurá-lo.
Exceto eu: eu podia segurá-lo.
11.
Fui ferida. O arco
era agora uma harpa, suas cordas ferindo
fundo a minha palma. Em um sonho
ela produz tanto a ferida quanto a sua
cicatrização.
12.
A minha infância: a mim interditada. Ou está
ela sob o adubo – fértil.
Mas muito escura. Muito escondida.
13.
No escuro, a minha alma disse
eu sou a sua alma.
Ninguém pode me ver; apenas você –
apenas você pode me ver.
14.
E eu disse, você deve confiar em mim.
Significado: se você mexer na árvore,
você sangrará até a morte.
15.
Por que não posso gritar?
Eu deveria estar escrevendo a minha
mão está sangrando,
sentindo dor e horror – o que
senti no sonho, como uma baixa de guerra.
16.
Ela está voltando para mim.
Pereira. Macieira.
Eu costumava sentar lá
retesando arcos de meu coração.
17.
Então a minha alma apareceu. Ela disse
assim como ninguém pode me ver, ninguém
pode ver o sangue.
Também: ninguém pode ver a harpa.
Então eu disse
posso salvá-la. Querendo dizer
isso é um
teste.
18.
Quem é “você”? Como em
“Você está cansada da dor invisível?”
19.
Como um pássaro separado da luz do dia:
assim foi a minha infância.
20.
Eu era o homem porque eu era mais alta.
Mas eu não era alta –
nunca me olhei em um espelho?
21.
Silêncio no
berçário,
o jardim
consultório. Então:
O que a harpa sugere?
22.
Eu sei o que você quer –
você quer Orfeu, você quer a morte.
Orfeu que disse “Ajude-me a encontrar
Eurídice”.
Então a música começou, o lamento da alma
ao ver o corpo esvanecer.
Fugue
1.
I was the man because I was taller.
My sister decided
when we should eat.
From time to time, she’d have a baby.
2.
Then my soul appeared.
Who are you, I said.
And my soul said,
I am your soul, the winsome stranger.
3.
Our dead sister
waited, undiscovered in my mother’s head.
Our dead sister was neither
a man nor a woman. She was like a soul.
4.
My soul was taken in:
it attached itself to a man.
Not a real man, the man
I pretended to be, playing with my sister.
5.
It is coming back to me – lying on the couch
has refreshed my memory.
My memory is like a basement filled with old
papers:
nothing ever changes.
6.
I had a dream: my mother fell out of a tree.
After she fell, the tree died:
it had outlived its function.
My mother was unharmed – her arrows disappeared,
her wings
turned to arms. Fire creature: Sagittarius. She
finds herself in –
a suburban garden. It is coming back to me.
7.
I put the book aside. What is a soul?
A flag flown
too high on the pole, if you know what I mean.
The body
cowers in the dreamlike underbrush.
8.
Well, we are here to do something about that.
(In a German accent.)
9.
I had a dream: we are at war.
My mother leaves her crossbow in the high
grass.
(Sagittarius, the archer.)
My childhood, closed to me forever,
turned gold like an autumn garden,
mulched with a thick layer of salt marsh hay.
10.
A golden bow: a useful gift in wartime.
How heavy it was – no child could pick it up.
Except me: I could pick it up.
11.
Then I was wounded. The bow
was now a harp, its string cutting
deep into my palm. In the dream
it both makes the wound and seals the wound.
12.
My childhood: closed to me. Or is it
under the mulch – fertile.
But very dark. Very hidden.
13.
In the dark, my soul said
I am your soul.
No one can see me; only you –
only you can see me.
14.
And it said, you must trust me.
Meaning: if you move the harp,
you will bleed to death.
15.
Why can’t I cry out?
I should be writing my hand is bleeding,
feeling pain and terror – what
I felt in the dream, as a casualty of war.
16.
It is coming back to me.
Pear tree. Apple tree.
I used to sit there
pulling arrows out of my heart.
17.
Then my soul appeared. It said
just as no one can see me, no one
can see the blood.
Also: no one can see the harp.
Then it said
I can save you. Meaning
this is a test.
18.
Who is “you”? As in
“Are you tired of invisible pain?”
19.
Like a small bird sealed off from daylight:
that was my childhood.
20.
I was the man because I was taller.
But I wasn’t tall –
didn’t I ever look in a mirror?
21.
Silence in the nursery,
the consulting garden. Then:
What does the harp suggest?
22.
I know what you want –
you want Orpheus, you want death.
Orpheus who said “Help me find Eurydice.”
Then the music began, the lament of the soul
watching the body vanish.