quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Pablo Neruda (Chile: 1904 – 1973)

 A morta

 

Se de repente não existes,

se de repente não vives,

eu seguirei vivendo.

 

Não me atrevo,

não me atrevo a escrever,

se tu morres.

 

Eu seguirei vivendo.

 

Porque onde não tem voz um homem

ali, minha voz.

 

Onde os negros sejam espancados,

eu não posso estar morto.

Quando entram no cárcere meus irmãos

entrarei eu com eles.

 

Quando a vitória,

não minha vitória,

senão a grande vitória

chegar,

ainda que esteja mudo devo falar:

eu a verei chegar ainda que esteja cego.

 

Não, perdoa-me.

Se tu não vives,

se tu, querida, meu amor,

se tu

estiveres morta,

todas as horas cairão em meu peito,

choverá sobre minha alma noite e dia,

a neve queimará meu coração,

 

andarei com frio e fogo e morte e neve,

 

meus pés quererão caminhar até onde tu

dormes,

mas

seguirei vivo,

porque tu me quiseste sobre todas as coisas

indomável,

e, amor, porque tu sabes que não sou só

um homem

mas todos os homens.

  

La Muerta

 

Si de pronto no existes,

si de pronto no vives,

yo seguiré vivendo.

 

No me atrevo,

no me atrevo a escribirlo,

se te mueres.

 

Yo seguiré vivendo.

 

Porque donde no tiene voz un hombre

allí, mi voz.

 

Donde los negros sean apaleados,

yo no puedo estar muerto.

Cuando entren en la cárcel mis hermanos

entraré yo con ellos.

 

Cuando la victoria,

no mi victoria,

sino la gran victoria

llegue,

aunque esté mudo debo hablar:

yo la veré llegar aunque esté ciego.

 

No, perdóname.

Si tú no vives,

si tú, querida, amor mio,

si tú

te has muerto,

todas las hojas caerán en mi pecho,

lloverá sobre mi alma noche y día,

la nieve quemará mi corazón,

 

andaré con frío y fuego y muerte y nieve,

 

mis pies querrán marchar hacia donde tú

duermes,

pero

seguiré vivo,

porque tú me quisiste sobre todas las cosas

indomable,

y, amor, porque tú sabes que soy no sólo un

un hombre

sino todos los hombres.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Mary Oliver (EUA: 1935 – 2019)

 

Quando a morte chegar

 

Quando a morte chegar

como um urso esfomeado no outono;

quando a morte chegar e tirar da bolsa suas moedas brilhantes

 

para me comprar, e fechá-la bruscamente;

quando a morte chegar

como a varíola;

 

quero sair à porta com enorme curiosidade, perguntando-me:

a que se assemelhará, esse chalé de trevas na praia?

 

E logo enxergo tudo

como congregações de irmãos e irmãs,

e vejo o tempo como uma simples ideia,

e considero a eternidade como outra possibilidade,

 

e imagino cada vida como uma flor, tão trivial

como um campo de margaridas, e igualmente singular,

 

e cada nome uma agradável música na boca,

propensa, como toda música, ao silêncio,

 

e cada corpo um leão de coragem, e algo

precioso à terra.

 

Quando tudo terminar, irei dizer: em toda a minha vida

fui a noiva casada com o assombro.

Fui o noivo, tomando o mundo em meu braços.

 

Quando tudo terminar, não quero indagar

se fiz de minha vida algo particular, e real.

Não quero ver a mim mesma arfante e amedrontada,

ou plena de argumentos.

 

Não quero acabar depois de simplesmente visitar o mundo.

 

 

When Death Comes

 

When death comes

like the hungry bear in autumn;

when death comes and takes all the bright coins from his purse

 

to buy me, and snaps the purse shut;

when death comes

like the measle-pox;

 

when death comes

like an iceberg between the shoulder blades,

 

I want to step through the door full of curiosity, wondering:

what is it going to be like, that cottage of darkness?

 

And therefore I look upon everything

as a brotherhood and a sisterhood,

and I look upon time as no more than an idea,

and I consider eternity as another possibility,

 

and I think of each life as a flower, as common

as a field daisy, and as singular,

 

and each name a comfortable music in the mouth,

tending, as all music does, toward silence,

 

and each body a lion of courage, and something

precious to the earth.

 

When it's over, I want to say: all my life

I was a bride married to amazement.

I was the bridegroom, taking the world into my arms.

 

When it's over, I don't want to wonder

if I have made of my life something particular, and real.

I don't want to find myself sighing and frightened,

or full of argument.

 

I don't want to end up simply having visited this world.

 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Mary Oliver (EUA: 1935 – 2019)


Gansos selvagens

 

Você não precisa ser bom.

Você não precisa caminhar sobre os joelhos

por cento e sessenta e um quilômetros pelo deserto, arrependendo-se.

Apenas deixe o suave animal de seu corpo

amar o que ele ama.

Fale-me sobre desespero, o seu, e eu lhe direi sobre o meu.

Enquanto isso o mundo gira.

Enquanto isso o sol e os seixos claros da chuva

movem-se pelas paisagens,

sobre as pradarias e as árvores profundas,

as montanhas e os rios.

Seja quem você for, não importa quão solitário,

o mundo se oferece à sua imaginação,

chama por você como aos gansos selvagens, ásperos e excitantes –

incansavelmente anunciando seu lugar

na família das coisas.

 

 

Wild Geese

 

You do not have to be good.

You do not have to walk on your knees

for a hundred miles through the desert, repenting.

You only have to let the soft animal of your body

love what it loves.

Tell me about despair, yours, and I will tell you mine.

Meanwhile the world goes on.

Meanwhile the sun and the clear pebbles of the rain

are moving across the landscapes,

over the prairies and the deep trees,

the mountains and the rivers.

Meanwhile the wild geese, high in the clean blue air,

are heading home again.

Whoever you are, no matter how lonely,

the world offers itself to your imagination,

calls to you like the wild geese, harsh and exciting –

over and over announcing your place

in the family of things.

sábado, 3 de outubro de 2020

Mary Oliver (EUA: 1935 – 2019)

 


 

Um sonho com árvores

 

Há algo em mim que sonhou com árvores,

Uma casa sossegada, alguns acres verdes e modestos

Um pouco distantes de tumultuadas cidades,

Um pouco distantes de fábricas, escolas, lamentos.

Eu teria tempo, pensei, e tempo de sobra,

Tendo apenas riachos e aves por companhia,

Fazer de minha vida umas poucas estrofes selvagens.

E então pensei, assim era a morte,

Um pouco longe de qualquer lugar.

 

Há algo em mim que sonhou com árvores.

Mas deixe estar. Nostálgicos da moderação,

Metade dos artistas do mundo recua ou se perde.

Se qualquer deles encontrar a solução, que o diga.

Entrementes eu inclino o coração à lamentação

Onde, à medida que os tempos suplicam por nosso

veraz envolvimento,

As lâminas de cada crise apontam o caminho.

 

Eu gostaria que não fosse assim, mas assim é.

Quem foi que compôs música sobre um dia ameno?

 

A dream of trees

 

There is a thing in me that dreamed of trees,

A quiet house, some green and modest acres

A little way from every troubling town,

A little way from factories, schools, laments.

I would have time, I thought, and time to spare,

With only streams and birds for company,

To build out of my life a few wild stanzas.

And then it came to me, that so was death,

A little way away from everywhere.

 

There is a thing in me still dreams of trees.

But let it go. Homesick for moderation,

Half the world's artists shrink or fall away.

If any find solution, let him tell it.

Meanwhile I bend my heart toward lamentation

Where, as the times implore our true involvement,

The blades of every crisis point the way.

 

I would it were not so, but so it is.

Who ever made music of a mild day?

 

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

T. S. Eliot (Inglaterra: 1888 - 1965)

 

Uma estrofe de A Terra Desolada e sua possível interpretação

 

Ernest Shackleton, explorador inglês que fez três incursões à Antártida, escreveu um livro sobre uma delas, intitulado Sul. No livro há uma passagem na qual, após longa e extenuante caminhada por uma planície gelada da Antártica, ele e seus companheiros passaram a ter a impressão de que um estranho caminhava ao seu lado.

Thomas Steams Eliot, mais conhecido por T. S. Eliot, foi um poeta norte-americano que viveu a maior parte de sua vida na Inglaterra. Na juventude, encontrava-se indeciso quanto a abandonar a profissão (ele era bancário) e optar pela poesia, à qual por fim se dedicou graças ao incentivo de outro poeta genial, Ezra Pound. Em decorrência disso, em 1922 ele publicou um poema que terminou por se constituir em um dos marcos da literatura moderna: A Terra Desolada, disponível na internet em belíssima e incomparável tradução de Ivan Junqueira.(*) De difícil compreensão, o poema, dividido em cinco partes, é desafio quase intransponível por quem procura entendê-lo em toda a sua complexidade, por seu simbolismo, pelas inúmeras referências a obras de outros autores, e pelos versos escritos em línguas estrangeiras  – há inúmeras análises do poema na internet, em inglês.

Coincidentemente, mas nada a ver com esta história, no mesmo ano o irlandês James Joyce publicou o seu Ulisses, também graças ao incentivo e à ajuda de Ezra Pound. Ulisses e A Terra Desolada são considerados os pilares inaugurais do modernismo na literatura.

Antes que T. S. Eliot publicasse A Terra Desolada sua mulher, Vivienne Haigh-Wood Eliot, de quem depois ele se divorciou, teve um caso com Bertand Russell, filósofo, matemático e ativista político inglês. Russell notabilizou-se não só por sua vasta cultura como também pela militância política e constante presença nas manifestações de protesto da década de 1960. Há fortes indícios de que o poeta sabia das puladas de cerca de Vivienne.

No quinto poema de A Terra Desolada – O que disse o trovão –, em uma de suas estrofes Eliot faz alusão à passagem narrada por Shackleton em “Sul”. Suponho eu – e isto é só especulação de minha parte, pois há outras interpretações para a passagem –, que Eliot se aproveitou da narrativa para mandar um recado à mulher e ao amante, pois a estrofe é de claríssima compreensão, em um poema por demais complicado. A tradução que se segue é minha, e não de Ivan Junqueira:

 

Quem é o terceiro que vai sempre ao seu lado?

Quando conto, juntos estamos só você e eu

Mas quando olho ao longe o caminho esbranquiçado

Há sempre outro caminhando ao lado seu

Seguindo envolto num manto marrom, encapuzado

Se homem ou se mulher dizer não posso eu

– Mas quem é esse que vai com você, do outro lado?

 

 

Who is the third who walks always beside you?

When I count, there are only you and I together

But when I look ahead up the white road

There is always another one walking beside you

Gliding wrapt in a brown mantle, hooded

I do not know whether a man or a woman

– But who is that on the other side of you?

 

 

(*) A Terra Desolada, na tradução de Ivan Junqueira, pode ser lido aqui: http://www.gilbertogodoy.com.br/ler-post/a-terra-desolada---t-s--eliot--1922



terça-feira, 29 de setembro de 2020

Alaide Foppa (Guatemala: 1914 – 1980)

  

Mulher

 

Um ser que ainda não

desiste de ser,

não a remota rosa

angelical,

que os poetas cantaram.

Não a maldita bruxa que

os inquisidores queimaram.

Não a temida e desejada

prostituta.

Não a mãe abençoada.

Não a murcha e ludibriada

Solteirona.

Não a obrigada a ser boa.

Não a obrigada a ser má.

Não a que vive

porque a deixam viver.

Não a que deve sempre

dizer que sim.

Um ser que cuida

de saber quem é

e que começa a existir.

 

Mujer

 

Un ser que aún no

acaba de ser,

no la remota rosa

angelical,

que los poetas cantaron.

No la maldita bruja que

los inquisidores quemaron.

No la temida y deseada

prostituta.

No la madre bendita.

No la marchita y burlada

Solterona.

No la obligada a ser buena.

No la obligada a ser mala.

No la que vive

porque la dejan vivir.

No la que debe siempre

decir que sí.

Un ser que trata

de saber quién es

y que empieza a existir.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Alaide Foppa (Guatemala: 1914 – 1980)

 

Ela se sente às vezes...

 

Ela se sente às vezes

como coisa esquecida

no canto escuro da casa

como fruto devorado por dentro

pelos pássaros rapaces,

como sombra sem rosto e sem peso.

Sua presença é apenas

vibração leve

no ar imóvel.

Sente que a transpassam os olhares

e que se torna névoa

entre os torpes braços

que intentam circundá-la.

Quisera ser ao menos

uma laranja suculenta

na mão de um menino

– não casca vazia –

uma imagem que brilha no espelho

– não sombra que se dissipa –

e uma voz clara

 – não pesado silêncio –

alguma vez ouvida.

 

Ella se siente a veces...

 

Ella se siente a veces

como cosa olvidada

en el rincón oscuro de la casa

como fruto devorado adentro

por los pájaros rapaces,

como sombra sin rostro y sin peso.

Su presencia es apenas

vibración leve

en el aire inmóvil.

Siente que la traspasan las miradas

y que se vuelve niebla

entre los torpes brazos

que intentan circundarla.

Quisiera ser siquiera

una naranja jugosa

en la mano de un niño

-no corteza vacía-

una imagen que brilla en el espejo

-no sombra que se esfuma-

y una voz clara

-no pesado silencio-

alguna vez escuchada.

domingo, 27 de setembro de 2020

Jorge Debravo (Costa Rica 1938 – 1967)

 


 

Desvestido

 

A noite, desejosa, apenumbrada,

tirou-te as sapatilhas, meio ausente...

e – por sentir-se branca e iluminada –

Desnudou os teus joelhos brancamente.

 

Logo – por diversão, sem dizer nada –

a noite carregou tua blusa larga

e arrancou-te a saia ensimesmada

como uma coisa tímida e amarga.

 

Logo após tu fizeste travessura:

desnudaste teus seios por ternura

e – falando de um amor vago, inconexo –

 

Porque sim e porque não, sem censura,

desnudaste também, já noite escura,

a noite pequenina do teu sexo.

 

Desvestido

 

La noche, deseosa, apenumbrada,

te quitó sin pensar las zapatillas...

y –por sentirse blanca y alumbrada

desnudó blancamente tus rodillas.

 

Luego – por diversión, sin decir nada –

la noche se llevó tu blusa larga

y te arrancó la falda ensimismada

como una cosa tímida y amarga.

 

Después te colocaste travesura:

desnudaste tus pechos por ternura

y –hablando de un amor vago, inconexo

 

Porque si y porque no, a medio reproche,

desnudaste también, entre la noche,

la noche pequeñita de tu sexo.

 

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Jorge Debravo (Costa Rica: 1938 – 1967)

 

Pequeno Funeral

 

Para ti e mim findaram-se os dezembros

de vento frio e de alcova só.

Tua boca já não se ajusta à minha

e afastou-se de minha pátria a tua.

 

Prendeu-nos o Destino pelos braços

E não nos permitiu a despedida.

Algum deus rancoroso partiu em quatro

pedaços nossas últimas carícias.

 

Não podemos voltar a fazer juntos

o desjejum em pratos irmanados,

nossas pernas cruzadas sob a mesa.

 

Nossas mãos já não são mais nossas mãos.

matou-nos – como um benévolo amigo –

na vasta sala da alma, o entusiasmo.

 

PEQUEÑO FUNERAL


Para ti y yo acabaron los diciembres

de viento frío y de alcoba sola.

Tu patria se ha ido lejos de mi patria

y tu boca no encaja ya en mi boca.


Nos agarró el Destino por los brazos

y no nos permitió la despedida.

Algún dios rencoroso partió en cuatro

pedazos nuestras últimas caricias.

 

No podremos volver a tomar juntos

el desayuno, en platos hermanados,

nuestras piernas en cruz bajo la mesa.

 

Nuestras manos no son ya nuestras manos.

Se nos ha muerto – como un buen amigo –

en la sala del alma, el entusiasmo.

 

 

 

Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

  Argonautas   E se a alma deve conhecer-se a si mesma ela deve voltar os olhos para outra alma: * o estrangeiro e inimigo, vim...