domingo, 25 de outubro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

 


 

Averno – 2/18

 

(Ao ler a tradução da primeira parte deste poema subdividido em seis, leitoras e leitores descobrirão a presença de um solitário ponto de interrogação após o último deles. Por que ele está ali? Simplesmente porque quase todos os versos que o precedem estão na forma interrogativa, o que é facilmente perceptível em inglês, mas não em português. Sem delongas, quero apenas dizer que, por mais que se queira, na tradução, buscar por artifícios que venham a contornar esse problema, sem quebrar o sentido explícito dos versos, isso redundaria em fracasso, restando-me tão somente chamar-lhes a atenção para o fato.) 

 

Outubro

 

1.

É inverno de novo, faz frio de novo,

Frank  escorregou há pouco no gelo,

ele não se curou, não se plantaram as sementes da primavera

 

não se findou a noite,

o gelo derretido

não inundou os sulcos estreitos

 

meu corpo não foi

resgatado, ele não estava protegido

 

não se formou a cicatriz, invisível

sobre a lesão

 

terror e frio,

 já não se foram, o jardim dos fundos

não foi limpo e plantado –

 

lembro de como a terra se sentiu, densa e rubra,

em rijas carreiras, as sementes não foram plantadas,

as videiras não subiram pelo muro sul

 

não posso ouvir sua voz

o vento uiva, assobiando sobre o solo árido

 

não mais me importa

o som que ele faz

 

quando fui calada, quando foi que de início pareceu

sem sentido descrever aquele som

 

como ele soa não altera o que ele é –

não se findou a noite, a terra não estava

a salvo quando foi plantada

 

não plantamos as sementes,

não éramos úteis à terra,

 

as videiras, elas foram colhidas?

 

2.

Verão após verão se passou,

bálsamo depois da violência:

não me faz bem nenhum

tratar-me bem agora;              

a violência me modificou. 

 

Romper do dia. As colinas baixas brilham

ocre e fogo, mesmo os campos brilham.

sei o que vejo; o sol que poderia ser

o sol de agosto, devolvendo

tudo o que foi levado –

 

Ouve essa voz? É a voz de minha mente;

você não pode tocar meu corpo agora.

Por uma vez ele mudou, se enrijeceu,

não lhe peça para reagir de novo.

 

Um dia como um dia de verão.

Excepcionalmente parado. As longas sombras dos carvalhos

quase malva sobre as trilhas de cascalho.

E no entardecer, calor. Noite como as noites de verão.

 

Isso não me faz nenhum bem; a violência me modificou.

Meu corpo ficou frio como os campos desnudados;

agora só existe minha mente, cautelosa e prudente,

e a sensação de que ela está sendo testada.

 

Por mais uma vez, o sol nasceu como nasceu no verão;

dádiva, bálsamo após a violência.

Bálsamo após a muda das folhas, após os campos

haverem sido colhidos e revolvidos.

 

Diga-me que esse é o futuro,

não acreditarei.

Diga-me que estou viva,

não acreditarei.

 

3.

A neve caíra. Lembro

de música vindo pela janela aberta.

 

Venha a mim, disse o mundo.

Isso não quer dizer

que ele usou frases exatas

mas que notei beleza no seu modo de dizer.

 

Nascer do sol. Fina camada de umidade

sobre cada coisa viva. Poças de fria luz

formadas nos sulcos.

 

Eu estava de pé

junto à porta,

ridícula como agora me parece.

 

O que outros viram na arte,

eu vi na natureza. O que outros viram

no amor humano, eu vi na natureza.

Muito simples. Mas lá não havia nenhuma voz.

 

O inverno terminara. Na terra descongelada,

vestígios de verde surgiam.

Venha a mim, disse o mundo. Com meu casaco de lã

eu estava de pé junto a um tipo de portal reluzente –

por fim posso dizer

há muito tempo; o que me dá imensa alegria. Um encanto

a curadora, a professora –

 

a morte não pode ferir-me

mais do que você feriu-me,

minha vida querida.

 

4.

A luz mudou;

agora o dó natural está com afinação mais escura.

E as canções matinais soam sobre-ensaiadas. 

 

Esta é a luz do outono, não a luz da primavera.

A luz do outono: você não será poupada.

 

As canções mudaram; o inexplicável

inseriu-se nelas.

 

Esta é a luz do outono, não a luz que diz

eu renasci.

 

Não a aurora da primavera: eu me esforcei, sofri, fui dada à luz.

Este é o presente, uma alegoria do desperdício.

 

Tanta coisa mudou. E ainda assim, você é feliz:

o ideal arde em você como uma febre.

se não como febre, como um segundo coração.

 

As canções mudaram, mas são de fato ainda muito lindas.

Foram concentradas em um espaço menor, o espaço da mente.

São agora escuras, plenas de desolação e angústia.

 

E ainda assim as notas se repetem. Pairam misteriosas

em antecipação ao silêncio.

O ouvido se amolda a elas.

O olho se amolda a desaparecimentos.

 

Você não será poupada, nem o que você ama será poupado.

Um vento veio e foi-se, desarrumando a mente;

deixou em sua esteira uma lucidez estranha.

 

Quão privilegiada é você, estar apaixonamente

apegada ao que ama;

perder a esperança não a destruiu.

 

Maestoso, doloroso:

 

Eis a luz do outono; ela voltou-se contra nós.

Por certo é um privilégio estar chegando ao fim

ainda acreditando em algo.

 

5.

É verdade que não existe beleza suficiente no mundo.

É também verdade que não sou capaz de restaurá-la.

Também não há candura, e aqui eu posso ser de alguma serventia.

 

Estou

ocupada, ainda que em silêncio.

 

A tediosa

 

miséria do mundo

constrange-nos de ambos os lados, um beco

 

ladeado de árvores; aqui somos

 

companheiros, sem nos falarmos,

cada qual com seus próprios pensamentos;

 

atrás das árvores, portões

de ferro das casas particulares,

os cômodos indevassáveis

 

de certo modo desertos, abandonados,

 

como se fosse dever

do artista criar

esperança, mas a partir do quê? o quê?

 

a palavra em si

falsa, uma invenção para refutar

a percepção – no cruzamento,

 

luzes ornamentais da estação.

 

Aqui eu  fui jovem. Indo

de metrô com meu pequeno livro

como se para me proteger do

 

mesmo mundo:

 

você não está só,

disse o poema,

no túnel escuro.

 

6.

A claridade do dia se converte

em claridade da noite;

o fogo se converte em espelho.

 

Minha amiga terra é amarga; penso

que a luz do sol a decepcionou.

Amarga ou exaurida, é difícil dizer.

 

Entre ela mesma e o sol,

algo se perdeu.

Agora ela quer ser deixada em paz;

penso que devemos desistir

de recorrer a ela para confirmação.

 

Sobre os campos,

sobre os telhados das casas do vilarejo,

o esplendor que tornou possível toda forma de vida

reduz-se a frias estrelas.

 

permaneça quieta e veja:

eles não dão nada mas não pedem nada.

 

Do interior da desgraça                     

amarga da terra, frieza e esterilidade

 

minha amiga lua nasce:

ela está linda esta noite, mas quando ela não é linda?

 

 October

 

1.

Is it winter again, is it cold again, didn't

Frank just slip on the ice,

didn't he heal, weren't the spring seeds planted

 

didn't the night end,

didn't the melting ice

flood the narrow gutters

 

wasn't my body

rescued, wasn't it safe

 

didn't the scar form, invisible

above the injury

 

terror and cold,

didn't they just end, wasn't the back garden

harrowed and planted –

 

I remember how the earth felt, red and dense,

in stiff rows, weren't the seeds planted,

didn't vines climb the south wall

 

I can't hear your voice

for the wind's cries, whistling over the bare ground

 

I no longer care

what sound it makes

 

when was I silenced, when did it first seem

pointless to describe that sound

 

what it sounds like can't change what it is –

 

didn't the night end, wasn't the earth

safe when it was planted

 

didn't we plant the seeds,

weren't we necessary to the earth,

 

the vines, were they harvested?

 

as videiras, elas não foram colhidas?

 

2.

Summer after summer has ended,

balm after violence:

it does me no good

to be good to me now;

violence has changed me.

       

Daybreak. The low hills shine

ochre and fire, even the fields shine.

I know what I see; sun that could be

the August sun, returning

everything that was taken away –

 

You hear this voice? This is my mind’s voice;

you can’t touch my body now.

It has changed once, it has hardened,

don’t ask it to respond again.

 

A day like a day in summer.

Exceptionally still. The long shadows of the maples

nearly mauve on the gravel paths.

And in the evening, warmth. Night like a night in summer.

 

It does me no good; violence has changed me.

My body has grown cold like the stripped fields;

now there is only my mind, cautious and wary,

with the sense it is being tested.

 

Once more, the sun rises as it rose in summer;

bounty, balm after violence.

Balm after the leaves have changed, after the fields

have been harvested and turned.

 

Tell me this is the future,

I won’t believe you.

Tell me I’m living,

I won’t believe you.

 

3.

Snow had fallen. I remember

music from an open window.

Come to me, said the world.

This is not to say

it spoke in exact sentences

but that I perceived beauty in this manner.

       

Sunrise. A film of moisture

on each living thing. Pools of cold light

formed in the gutters.

 

I stood

at the doorway,

ridiculous as it now seems.

 

What others found in art,

I found in nature. What others found

in human love, I found in nature.

Very simple. But there was no voice there.

 

Winter was over. In the thawed dirt,

bits of green were showing.

 

Come to me, said the world. I was standing

in my wool coat at a kind of bright portal –

I can finally say

long ago; it gives me considerable pleasure. Beauty

the healer, the teacher—

 

death cannot harm me

more than you have harmed me,

my beloved life.

 

4.

The light has changed;

middle C is tuned darker now.

And the songs of morning sound over-rehearsed.

 

This is the light of autumn, not the light of spring.

The light of autumn: you will not be spared.

 

The songs have changed; the unspeakable

has entered them.

 

This is the light of autumn, not the light that says

I am reborn.

 

Not the spring dawn: I strained, I suffered, I was delivered.

This is the present, an allegory of waste.

 

So much has changed. And still, you are fortunate:

the ideal burns in you like a fever.

Or not like a fever, like a second heart.

 

The songs have changed, but really they are still quite beautiful.

They have been concentrated in a smaller space, the space of the mind.

They are dark, now, with desolation and anguish.

 

And yet the notes recur. They hover oddly

in anticipation of silence.

The ear gets used to them.

The eye gets used to disappearances.

 

You will not be spared, nor will what you love be spared.

A wind has come and gone, taking apart the mind;

it has left in its wake a strange lucidity.

 

How privileged you are, to be passionately

clinging to what you love;

the forfeit of hope has not destroyed you.

 

Maestoso, doloroso:

 

This is the light of autumn; it has turned on us.

Surely it is a privilege to approach the end

still believing in something.

 

5.

It is true there is not enough beauty in the world.

It is also true that I am not competent to restore it.

Neither is there candor, and here I may be of some use.

 

I am

at work, though I am silent.

 

The bland

 

misery of the world

bounds us on either side, an alley

 

lined with trees; we are

 

companions here, not speaking,

each with his own thoughts;

 

behind the trees, iron 

gates of the private houses,

the shuttered rooms

 

somehow deserted, abandoned,

 

as though it were the artist’s

duty to create

hope, but out of what? what?

 

the word itself

false, a device to refute

perception— At the intersection,

 

ornamental lights of the season.

 

I was young here. Riding

the subway with my small book

as though to defend myself against

 

the same world:

 

you are not alone,

the poem said,

in the dark tunnel.

 

6.

The brightness of the day becomes

the brightness of the night;

the fire becomes the mirror.

 

My friend the earth is bitter; I think

sunlight has failed her.

Bitter or weary, it is hard to say.

 

Between herself and the sun,

something has ended.

She wants, now, to be left alone;

I think we must give up

turning to her for affirmation.

 

Above the fields,

above the roofs of the village houses,

the brilliance that made all life possible

becomes the cold stars.

 

Lie still and watch:

they give nothing but ask nothing.

 

From within the earth’s

bitter disgrace, coldness and barrenness

 

my friend the moon rises:

she is beautiful tonight, but when is she not beautiful?

 

Nota:

 

[1] Ocre e fogo, elementos utilizados na cremação de corpos desde os primórdios da raça humana, fato comprovado em escavações arqueológicas.

sábado, 24 de outubro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

 

Averno – 1/18

 

As migrações noturnas

 

Este é o momento em que você vê de novo

As frutas vermelhas das cerejeiras [1]

E no céu escuro

As migrações noturnas dos pássaros.

 

Dói-me pensar

que os mortos não as verão

essas coisas de que dependemos,

elas desaparecem.

 

E o que fará a alma para se consolar?

Digo a mim mesma que talvez ela não

mais precisará de tais prazeres;

talvez apenas não ser já lhe baste,

igualmente penoso é imaginar.

 


The Night Migrations

 

This is the moment when you see again

the red berries of the mountain ash

and in the dark sky

the bird’s night migrations.

 

It grieves me to think

the dead won’t see them

these things we depend on,

they disappear.

 

What will the soul do for solace then?

I tell myself maybe it won’t need

these pleasures anymore;

maybe just not being is simply enough,

hard as that is to imagine.



Nota:

[1] “Mountain ash” em português pode ser traduzida por “sorveira”, “cumã”, “cumaí”, “cumameri”; e “berry”, dentre outras possíveis acepções, por “baga” – palavras que por certo não fazem bonito em um verso poético. Por tais motivos, optei por “frutas vermelhas das cerejeiras”, que se assemelham às berries vermelhas da mountain ash. [N. T.]

 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Rosario Ferré (Porto Rico: 1938 – 2016)

  

O sonho da palavra

 

Este, pois, triste som intermitente

da assombrada multidão temerosa,

bem menos a atenção solicitava

que ao sonho persuadia.

 

Sóror Juana Inés de La Cruz

 

Negarão a mim o sonho, o epitáfio

dessa noite geométrica que se eleva

aos quatro pontos cardinais do nada

por entre obeliscos e pirâmides,

mas não poderão negar-me a palavra.

Esconderão de mim o claro espelho que deambula

por um universo sem Deus e ardendo em chamas

assim como a idêntica escada

pela qual tem acesso o corpo fermentado e múltiplo

ao diáfano mistério do Unânime,

mas não poderão esconder-me a palavra.

Silenciarão o canto da noturna Nictimene

companheira de voo da vigília

que imita o melancólico traço de meus versos

atrás dos batentes lacerados desta página,

mas não poderão silenciar-me a palavra.

Negarão a mim o consolo da douta Aspásia

separada dos ossos de sua carne

pelas arestas nacaradas das ostras

que brandiram contra ela os frades sanguinários,

mas não poderão me negar a palavra.

Banirão de minha cela Homero e Platão,

Safo, Píndaro e até o doce Ovídio

que chora sobre minha face nas trevas

a timidez feliz de seu martírio,

mas não poderão banir a palavra.

Usurparão de mim o astrolábio e o compasso

o esquadro musamétrico de Kircher

a argola que aprisiona em breve cárcere

a face amada que diante de mim aparece

amoldando-me por uma vez mais à esperança

como vínculo terrível,

mas não poderão usurpar-me a palavra.

Abolirão o flamejar da palavra

o crepitar da palavra o encinzar a palavra,

mas não poderão abolir a palavra.

Mutilarão os lábios avinagrados da palavra

mas não poderão roubar minha sede de palavra.

Sufocarão o silêncio da palavra

até que apenas reste a voz da palavra

clamando no deserto da palavra,

mas não poderão roubar-me a palavra.

Poderão me roubar a palavra

mas não o sonho da palavra.

O dia chegará, sem dúvida, em que a tudo roubem de mim

e só me reste a palavra.

 

 

El Sueño de la Palabra

 

Este, pues, triste son intercadente

de la asombrada turba temerosa,

menos a la atención solicitaba

que al sueño persuadía.

 

Sor Juana Inés de la Cruz

 

Me vedarán el sueño, el epitafio

de esa noche geométrica que asciende

a cuatro puntos cardinales de la nada

por entre obeliscos y pirámides,

pero no podrán vedarme la palabra.

Me ocultarán el claro espejo que deambula

por un universo sin Dios y ardiendo en llamas

así como la gemela escala

por la que accede el cuerpo fermentado y múltiple

al diáfano misterio de lo Unánime,

pero no podrán ocultarme la palabra.

Silenciarán el canto de la nocturna Nictimene

compañera de vuelo del insomnio

que imita el melancólico trazo de mis versos

tras los batientes lacerados de esta página,

pero no podrán silenciarme la palabra.

Me negarán el consuelo de la docta Hispasa

separada de los huesos de su carne

por las aristas nacaradas de las ostras

que blandieron contra ella los frailes sanguinarios,

pero no podrán negarme la palabra.

Desterrarán de mi celda a Homero y a Platón,

a Safo, a Píndaro y hasta al dulce Ovidio

que plañe sobre mi rostro en las tinieblas

la verecundia feliz de su martirio,

pero no podrán desterrar a la palabra.

Me usurparán el astrolabio y el compás

la escuadra musamétrica de Kircher

el anillo que aprisiona en breve cárcel

el rostro amado que ante mí parece

ciñéndome una vez más a la esperanza

con vínculo terrible,

pero no podrán usurparme la palabra.

Abolirán el llamear de la palabra

el crepitar de la palabra el cenizar de la palabra,

pero no podrán abolir a la palabra.

Le cercenarán los labios avinagrados a la palabra

pero no podrán quitarme la sed de la palabra.

 Sofocarán el silencio de la palabra

hasta que sólo quede la voz de la palabra

clamando en el desierto de la palabra,

pero no podrán quitarme la palabra.

Podrán quitarme la palabra

pero no el sueño de la palabra.

El día llegará, sin duda, en que todo me lo quiten

y sólo me quede la palabra.

 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Rosario Ferré (Porto Rico: 1938 – 2016)


Segundo Sonho

 

O discurso é uma espada

que se presta a dois propósitos,

dar morte por sua ponta

e proteção por seu cabo.

(Sóror Joana Inês de la Cruz)

 

“A fama de Joana Inês silva e atrita

até os alicerces do mundo”

disse com animosidade a Marquesa,

inclinando provocativa o duplo marfim dos

seios sobre o banquete irisado de faisões.

Incrédulo, o Marquês convocou à sua mesa

os quarenta sábios mais ilustres do reino

para que interroguem diante dele e publicamente

a prodigiosa cortesã de Nepantla.

Pisa a jovem com decisão o assoalho

de dourada cera, ontem lavrado pela clepsidra de seu pé,

hoje pelo estilete ágil de seu verso.

O Ouvidor lhe oferece satisfeito sua poltrona

adamascada em ouro e prata

e se acomoda a seus pés com falsa docilidade.

Joana Inês se esquiva, Ícaro invicto

entre os letrados sedentários do reino.

Ora lhes lança redondilhas e romances

brandindo a espada pela ponta,

ora alça o voo, engenho atrevido

por sobre os labirintos da física.

Seus versos giram, cata-ventos de fogo

pelas calçadas em festa do México

busca-pés de rima em lícita harmonia,

femininos arcabuzes floridos

no exato limite.

Os letrados a perseguem pelo céu

como quem navega em busca de uma miragem

nublada pelo sal dos enfermos.

Pluma mortal levantada e pérfido tinteiro ao lado

caminham atrás dela alfinetando-a com perguntas:

o mistério do Haiku o diâmetro de Antares

o mundo imóvel da esfera de Parmênides

a facilidade com que oculta o colibri

o suspenso diamante no espaço,

a perturbada pupila de Górgona

contemplando enfurecida o mundo

a partir do escudo ensanguentado de Perseu,

se brota ou não dos maciços do Olimpo

a misteriosa cadência do hexâmetro.

A tudo responde Joana Inês com galhardia.

Voam a despeito dela maledicências ao seu redor,

agudos corta-fios que logo gravam

suas respostas em turvos palimpsestos

de sílex. Dá-lhes altiva o pavilhão das costas

à Farsália tingida com o sangue dos sábios

e abandona para sempre o banquete e o palácio.

Da escura cela de um convento

resgata todos os enigmas e distâncias:

entrega-se ao sonho

como um nadador a um grande rio

e mescla, às espinhas do caracol,

a plumagem incendiada de sua alma.

 

 

Segundo Sueño

 

El discurso es un acero

que sirve por ambos cabos,

de dar muerte por la punta

por el pomo de resguardo.

(Sor Juana Inés de la Cruz)

 

“La fama de Juana Inés crepita y lame

hasta los cimientos del mundo”

ha dicho con inquina la Marquesa,

inclinando provocativa el doble marfil del

pecho sobre el banquete irisado de faisanes.

El Marqués ha convocado, incrédulo, a su mesa

a los cuarenta sabios más ilustres del reino

para que interroguen ante él públicamente

al prodigio cortesano de Nepantla.

Pisa la joven con decisión el tabloncillo

de dorada cera, labrado ayer por la clepsidra de su pie,

hoy por estilete raudo de su verso.

(El Oidor le ofrece ufano su butaca

damasquinada en oro y plata

y se acomoda a sus pies con mansedumbre falsa.

Juana Inés se pasea, Ícaro invicto

por entre los letrados sedentarios del reino.

Ora les dispara redondillas y romances

blandiendo el acero por la punta,

ora remonta el vuelo, ingenio osado

por sobre los laberintos de la física.

Sus versos giran, rehiletes de fuego

por las calzadas festivas de México

siquitraques de rima en lícita armonía,

femeninos arcabuces florecidos

en el exacto linde.

Los letrados la persiguen por el cielo

como quien navega en pos de un espejismo

nublado por la sal de los enfermos.

Pluma mortal en vilo y pérfido tintero al codo

caminan tras de ella zahiriéndola a preguntas:

el misterio del Haikú el diámetro de Antares

el orbe inmóvil de la esfera de Parménides

la facilidad con que oculta el colibrí

el suspendido diamante en el espacio,

la vesánica pupila de Gorgona

contemplando enfurecida el mundo

desde el escudo ensangrentado de Perseo,

si brota o no de los macizos del Olimpo

la misteriosa cadencia del hexámetro.

A todo responde Juana Inés con gallardía.

Vuelan a pesar de ella las maledicencias en su torno,

agudos cortafríos que luego inscriben

sus respuestas en torvos palimpsestos

de sílex. Vuelve altiva el pabellón de las espaldas

a la Farsalia tinta en sangre de los sabios

y abandona para siempre el banquete y el palacio.

Desde la oscura celda de un convento

salva todos los enigmas y distancias:

se entrega al sueño

como el nadador a un gran río

y entrevera, a las espinas del caracol,

 el plumaje incendiado de su alma.

 

 

Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

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