Averno – 2/18
(Ao ler a tradução da primeira parte deste
poema subdividido em seis, leitoras e leitores descobrirão a presença de um
solitário ponto de interrogação após o último deles. Por que ele está ali?
Simplesmente porque quase todos os versos que o precedem estão na
forma interrogativa, o que é facilmente perceptível em inglês, mas não em
português. Sem delongas, quero apenas dizer que, por mais que se queira, na
tradução, buscar por artifícios que venham a contornar esse problema, sem
quebrar o sentido explícito dos versos, isso redundaria em fracasso,
restando-me tão somente chamar-lhes a atenção para o fato.)
Outubro
1.
É inverno de novo, faz frio de novo,
Frank
escorregou há pouco no gelo,
ele não se curou, não se plantaram as
sementes da primavera
não se findou a noite,
o gelo derretido
não inundou os sulcos estreitos
meu corpo não foi
resgatado, ele não estava protegido
não se formou a cicatriz, invisível
sobre a lesão
terror e frio,
já não
se foram, o jardim dos fundos
não foi limpo e plantado –
lembro de como a terra se sentiu, densa e
rubra,
em rijas carreiras, as sementes não foram
plantadas,
as videiras não subiram pelo muro sul
não posso ouvir sua voz
o vento uiva, assobiando sobre o solo árido
não mais me importa
o som que ele faz
quando fui calada, quando foi que de início
pareceu
sem sentido descrever aquele som
como ele soa não altera o que ele
é –
não se findou a noite, a terra não estava
a salvo quando foi plantada
não plantamos as sementes,
não éramos úteis à terra,
as videiras, elas foram colhidas?
2.
Verão após verão se passou,
bálsamo depois da violência:
não me faz bem nenhum
tratar-me bem
agora;
a violência me modificou.
Romper do dia. As colinas baixas brilham
ocre e fogo, mesmo os campos brilham.
sei o que vejo; o sol que poderia ser
o sol de agosto, devolvendo
tudo o que foi levado –
Ouve essa voz? É a voz de minha mente;
você não pode tocar meu corpo agora.
Por uma vez ele mudou, se enrijeceu,
não lhe peça para reagir de novo.
Um dia como um dia de verão.
Excepcionalmente parado. As longas sombras
dos carvalhos
quase malva sobre as trilhas de cascalho.
E no entardecer, calor. Noite como as noites
de verão.
Isso não me faz nenhum bem; a violência me
modificou.
Meu corpo ficou frio como os campos
desnudados;
agora só existe minha mente, cautelosa e
prudente,
e a sensação de que ela está sendo testada.
Por mais uma vez, o sol nasceu como nasceu no
verão;
dádiva, bálsamo após a violência.
Bálsamo após a muda das folhas, após os
campos
haverem sido colhidos e revolvidos.
Diga-me que esse é o futuro,
não acreditarei.
Diga-me que estou viva,
não acreditarei.
3.
A neve caíra. Lembro
de música vindo pela janela aberta.
Venha a mim, disse o mundo.
Isso não quer dizer
que ele usou frases exatas
mas que notei beleza no seu modo de dizer.
Nascer do sol. Fina camada de umidade
sobre cada coisa viva. Poças de fria luz
formadas nos sulcos.
Eu estava de pé
junto à porta,
ridícula como agora me parece.
O que outros viram na arte,
eu vi na natureza. O que outros viram
no amor humano, eu vi na natureza.
Muito simples. Mas lá não havia nenhuma voz.
O inverno terminara. Na terra descongelada,
vestígios de verde surgiam.
Venha a mim, disse o mundo. Com meu casaco de lã
eu estava de pé junto a um tipo de portal
reluzente –
por fim posso dizer
há muito
tempo; o que me dá imensa alegria. Um
encanto
a curadora, a professora –
a morte não pode ferir-me
mais do que você feriu-me,
minha vida querida.
4.
A luz mudou;
agora o dó natural está com afinação mais
escura.
E as canções matinais soam
sobre-ensaiadas.
Esta é a luz do outono, não a luz da
primavera.
A luz do outono: você não será poupada.
As canções mudaram; o inexplicável
inseriu-se nelas.
Esta é a luz do outono, não a luz que diz
eu renasci.
Não a aurora da primavera: eu me esforcei, sofri, fui dada à luz.
Este é o presente, uma alegoria do
desperdício.
Tanta coisa mudou. E ainda assim, você é
feliz:
o ideal arde em você como uma febre.
se não como febre, como um segundo coração.
As canções mudaram, mas são de fato ainda
muito lindas.
Foram concentradas em um espaço menor, o
espaço da mente.
São agora escuras, plenas de desolação e
angústia.
E ainda assim as notas se repetem.
Pairam misteriosas
em antecipação ao silêncio.
O ouvido se amolda a elas.
O olho se amolda a desaparecimentos.
Você não será
poupada, nem o que você ama será poupado.
Um vento veio e foi-se, desarrumando a mente;
deixou em sua esteira uma lucidez estranha.
Quão privilegiada é você, estar apaixonamente
apegada ao que ama;
perder a esperança não a destruiu.
Maestoso,
doloroso:
Eis a luz do outono; ela voltou-se contra
nós.
Por certo é um privilégio estar chegando ao
fim
ainda acreditando em algo.
5.
É verdade que não existe beleza suficiente no
mundo.
É também verdade que não sou capaz de
restaurá-la.
Também não há candura, e aqui eu posso ser de
alguma serventia.
Estou
ocupada, ainda que em silêncio.
A tediosa
miséria do mundo
constrange-nos de ambos os lados, um beco
ladeado de árvores; aqui somos
companheiros, sem nos falarmos,
cada qual com seus próprios pensamentos;
atrás das árvores, portões
de ferro das casas particulares,
os cômodos indevassáveis
de certo modo desertos, abandonados,
como se fosse dever
do artista criar
esperança, mas a partir do quê? o quê?
a palavra em si
falsa, uma invenção para refutar
a percepção – no cruzamento,
luzes ornamentais da estação.
Aqui eu
fui jovem. Indo
de metrô com meu pequeno livro
como se para me proteger do
mesmo mundo:
você não está só,
disse o poema,
no túnel escuro.
6.
A claridade do dia se converte
em claridade da noite;
o fogo se converte em espelho.
Minha amiga terra é amarga; penso
que a luz do sol a decepcionou.
Amarga ou exaurida, é difícil dizer.
Entre ela mesma e o sol,
algo se perdeu.
Agora ela quer ser deixada em paz;
penso que devemos desistir
de recorrer a ela para confirmação.
Sobre os campos,
sobre os telhados das casas do vilarejo,
o esplendor que tornou possível toda forma de
vida
reduz-se a frias estrelas.
permaneça quieta e veja:
eles não dão nada mas não pedem nada.
Do interior da
desgraça
amarga da terra, frieza e esterilidade
minha amiga lua nasce:
ela está linda esta noite, mas
quando ela não é linda?
1.
Is it winter again, is it cold again, didn't
Frank just slip on the ice,
didn't he heal, weren't the spring seeds
planted
didn't the night end,
didn't the melting ice
flood the narrow gutters
wasn't my body
rescued, wasn't it safe
didn't the scar form, invisible
above the injury
terror and cold,
didn't they just end, wasn't the back garden
harrowed and planted –
I remember how the earth felt, red and dense,
in stiff rows, weren't the seeds planted,
didn't vines climb the south wall
I can't hear your voice
for the wind's cries, whistling over the bare
ground
I no longer care
what sound it makes
when was I silenced, when did it first seem
pointless to describe that sound
what it sounds like can't change what it is –
didn't the night end, wasn't the earth
safe when it was planted
didn't we plant the seeds,
weren't we necessary to the earth,
the vines, were they harvested?
as videiras, elas não foram colhidas?
2.
Summer after summer has ended,
balm after violence:
it does me no good
to be good to me now;
violence has changed me.
Daybreak. The low hills shine
ochre and fire, even the fields shine.
I know what I see; sun that could be
the August sun, returning
everything that was taken away –
You hear this voice? This is my mind’s voice;
you can’t touch my body now.
It has changed once, it has hardened,
don’t ask it to respond again.
A day like a day in summer.
Exceptionally still. The long shadows of the
maples
nearly mauve on the gravel paths.
And in the evening, warmth. Night like a night
in summer.
It does me no good; violence has changed me.
My body has grown cold like the stripped fields;
now there is only my mind, cautious and wary,
with the sense it is being tested.
Once more, the sun rises as it rose in summer;
bounty, balm after violence.
Balm after the leaves have changed, after the
fields
have been harvested and turned.
Tell me this is the future,
I won’t believe you.
Tell me I’m living,
I won’t believe you.
3.
Snow had fallen. I remember
music from an open window.
Come to me, said the world.
This is not to say
it spoke in exact sentences
but that I perceived beauty in this manner.
Sunrise. A film of moisture
on each living thing. Pools of cold light
formed in the gutters.
I stood
at the doorway,
ridiculous as it now seems.
What others found in art,
I found in nature. What others found
in human love, I found in nature.
Very simple. But there was no voice there.
Winter was over. In the thawed dirt,
bits of green were showing.
Come to me, said the world. I was standing
in my wool coat at a kind of bright portal –
I can finally say
long ago; it gives me considerable pleasure. Beauty
the healer, the teacher—
death cannot harm me
more than you have harmed me,
my beloved life.
4.
The light has changed;
middle C is tuned darker now.
And the songs of morning sound over-rehearsed.
This is the light of autumn, not the light of
spring.
The light of autumn: you will not be spared.
The songs have changed; the unspeakable
has entered them.
This is the light of autumn, not the light that
says
I am reborn.
Not the spring dawn: I strained, I suffered, I
was delivered.
This is the present, an allegory of waste.
So much has changed. And still, you are
fortunate:
the ideal burns in you like a fever.
Or not like a fever, like a second heart.
The songs have changed, but really they are
still quite beautiful.
They have been concentrated in a smaller space,
the space of the mind.
They are dark, now, with desolation and
anguish.
And yet the notes recur. They hover oddly
in anticipation of silence.
The ear gets used to them.
The eye gets used to disappearances.
You will not be spared, nor will what you love
be spared.
A wind has come and gone, taking apart the
mind;
it has left in its wake a strange lucidity.
How privileged you are, to be passionately
clinging to what you love;
the forfeit of hope has not destroyed you.
Maestoso, doloroso:
This is the light of autumn; it has turned on
us.
Surely it is a privilege to approach the end
still believing in something.
5.
It is true there is not enough beauty in the
world.
It is also true that I am not competent to
restore it.
Neither is there candor, and here I may be of
some use.
I am
at work, though I am silent.
The bland
misery of the world
bounds us on either side, an alley
lined with trees; we are
companions here, not speaking,
each with his own thoughts;
behind the trees, iron
gates of the private houses,
the shuttered rooms
somehow deserted, abandoned,
as though it were the artist’s
duty to create
hope, but out of what? what?
the word itself
false, a device to refute
perception— At the intersection,
ornamental lights of the season.
I was young here. Riding
the subway with my small book
as though to defend myself against
the same world:
you are not alone,
the poem said,
in the dark tunnel.
6.
The brightness of the day becomes
the brightness of the night;
the fire becomes the mirror.
My friend the earth is bitter; I think
sunlight has failed her.
Bitter or weary, it is hard to say.
Between herself and the sun,
something has ended.
She wants, now, to be left alone;
I think we must give up
turning to her for affirmation.
Above the fields,
above the roofs of the village houses,
the brilliance that made all life possible
becomes the cold stars.
Lie still and watch:
they give nothing but ask nothing.
From within the earth’s
bitter disgrace, coldness and barrenness
my friend the moon rises:
she is beautiful tonight, but when is she not
beautiful?
Nota:
[1] Ocre e fogo, elementos utilizados na
cremação de corpos desde os primórdios da raça humana, fato comprovado em
escavações arqueológicas.
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