Averno – 04/18
Prisma
1.
Quem pode
dizer o que é o mundo? O mundo
é um fluxo,
portanto
indecifrável,
os ventos se deslocando,
as grandes
placas se deslocando e se alterando, invisíveis –
2.
Sujeira.
Fragmentos
de rocha
porosa. Nelas
o vulnerável
coração constrói
uma casa,
memória: os jardins
funcionais,
de pequena escala, as camas
úmidas à
beira mar –
3.
Assim como
acolhemos
um inimigo,
por estas janelas
acolhemos
o mundo:
aqui está a cozinha, aqui está o estúdio
assombreado.
Significando:
aqui o dono sou eu.
4.
Quando você
se apaixona, diz minha irmã,
é como se
fosse atingida por um raio.
Ela falava
esperançosamente,
para atrair a
atenção do raio.
Lembrei-lhe
que ela estava repetindo a mesma
receita de
nossa mãe, sobre a qual ela e eu
discutíamos
na infância, quando sentíamos
que aquilo
que observávamos nos adultos
eram os
efeitos não de um raio
mas de uma
cadeira elétrica.
5.
Enigma:
Por que minha
mãe era feliz?
Resposta:
Ela casou com
meu pai.
6.
“Vocês
meninas”, disse minha mãe, “deveriam casar
com alguém
como seu pai.”
Era um
comentário. Outro era,
“Não há
ninguém como seu pai.”
7.
Vindas das
nuvens perfuradas, contínuas linhas prateadas.
Inverossímil
amarelo da
hamamélis, veias
de mercúrio
que eram os cursos dos rios –
Depois a
chuva de novo, apagando
as pegadas na
terra umedecida.
8.
A sugestão
era, tem-se que abandonar
a infância. A
palavra “casar” era um sinal.
Você também
poderia considerá-la como conselho estético;
a voz da
criança era desagradável,
sem nenhum
registro baixo.
A palavra era
um código, misterioso, como a pedra de Roseta.
Era também
uma placa de estrada, um alerta.
Você poderia
levar algumas poucas coisas como um dote.
Você poderia
levar a parte de você que pensa.
“Casar”
significava você deve manter essa parte calada.
9.
Uma noite de
verão. Lá fora,
sons de uma
tempestade de verão. Depois o céu clareando.
Na janela,
constelações de verão.
Estou na
cama. Esse homem e eu,
estamos
suspensos na estranha calma
a que em
geral o sexo induz. Mais sexo induz.
Nostalgia, o
que é isso? Desejo, o que é isso?
Na janela,
constelações de verão.
Outrora, eu
conseguia nomeá-las.
10.
Formas
abstratas,
padrões.
A luz da
mente. O frio, exigindo
fogos de
equidade, curiosamente
bloqueados
pela terra, coesos, reluzindo
no ar e na
água,
os elaborados
sinais que
diziam agora plante, agora colha –
eu conseguia
nomeá-los, tinha nomes para eles:
duas coisas
diferentes.
11.
Coisas
fabulosas, estrelas.
Quando era criança,
eu sofria de insônia.
Em noites de
verão, meus pais me deixavam sentar junto ao lago;
levava o
cachorro como companhia.
Eu disse
“sofria”? Essa era a maneira de meus pais explicarem
o que lhes
parecia
inexplicável:
melhor “sofria” que “preferia viver com o cachorro”.
Escuridão.
Silêncio que anulava a condição de ser mortal.
Os barcos
amarrados subindo e descendo.
Com a lua
cheia, por vezes eu podia ler os nomes das garotas
pintados nas
laterais dos barcos:
Ruth Ann, Sweet Izzy, Peggy My Darling –
Não iriam a
lugar nenhum, aquelas garotas.
Não havia
nada a se aprender com elas.
Estendi minha
jaqueta na areia úmida,
O cachorro se
enroscou ao meu lado.
Meus pais não
conseguiam ver a vida em minha cabeça;
quando eu a
transcrevi, eles corrigiram a grafia.
Sons vindos
do lago. Os sons consoladores, inumanos
sons de água
lambendo o cais, o cachorro escavando longe
nas ervas
daninhas –
12.
A missão era
se apaixonar.
Os detalhes
corriam por sua conta.
A segunda
parte era
incluir no
poema certas palavras,
palavras
extraídas de um texto específico
sobre outro
assunto em geral.
13.
Chuva
primaveril, depois uma noite de verão.
Uma voz de
homem, depois uma voz de mulher.
Você cresceu,
foi atingida por um raio.
Ao abrir os
olhos, viu-se para sempre atada ao seu grande amor.
Isso só
aconteceu uma vez. Depois você foi cuidada,
sua história
estava terminada.
Aconteceu uma
só vez. Ser atingida por um raio foi como ser vacinada;
pelo resto de
sua vida você estaria imune,
você estaria aquecida
e seca.
A não ser que
o choque não fosse bastante profundo.
Então você
não estaria vacinada, você estaria viciada.
14.
A missão era
se apaixonar.
O autor era
feminino.
O ego deveria
ser chamado de alma.
A ação
acontecia no corpo.
As estrelas
representavam tudo o mais: sonhos, a mente etc.
O bem-amado
foi identificado
com o eu em
narcisista projeção.
A mente era a
subtrama. Seguia-se uma tagarelice interminável.
O tempo era
experimentado
menos como
narrativa que ritual.
O que era
repetido tinha peso.
Certos finais
eram trágicos, portanto aceitáveis.
Tudo o mais
era fracasso.
15.
Engano.
Mentiras. Adornos a que chamamos
hipóteses –
Havia
demasiadas estradas, demasiadas versões.
Havia
demasiadas estradas, nenhum caminho –
E ao término?
16.
Liste as
implicações de “encruzilhadas”.
Resposta: uma
história com moral.
Dê um
contraexemplo:
17.
O eu se
findou e o mundo começou.
Eram de igual
tamanho,
proporcionais,
um espelhou o
outro.
18.
Esta era a
charada: por que não poderíamos viver na mente.
A resposta
era esta: a barreira da terra se intrometeu.
19.
O quarto
estava silencioso.
Isto é, o
quarto estava silencioso, mas os amantes estavam respirando.
Do mesmo
modo, a noite estava escura.
Ela estava
escura, mas as estrelas brilhavam.
O homem na
cama era um de vários homens
a quem doei
meu coração. A dádiva do eu,
isso não tem
limite.
Sem limite,
ainda que recorrente.
O quarto
estava silencioso. Era um absoluto,
como a noite
escura.
20.
Uma noite no
verão. Sons de um temporal de verão.
As grandes
placas se deslocando e se modificando, invisíveis –
E no quarto
escuro, os amantes dormindo nos braços um do outro.
Nós somos,
cada um de nós, aquele que acorda primeiro,
Que se agita
e vê, lá na primeira alvorada,
o estranho.
Prism
1.
Who can say what the world is? The world
is in flux, therefore
unreadable, the winds shifting,
the great plates invisibly shifting and changing –
2.
Dirt. Fragments
of blistered rock. On which
the exposed heart constructs
a house, memory: the gardens
manageable, small in scale, the beds
damp at the sea’s edge –
3.
As one takes in
an enemy, through these windows
one takes in
the world:
here is the
kitchen, here is the darkened study.
Meaning: I am
master here.
4.
When you fall in love, my sister said,
it’s like being struck by lightning.
She was speaking
hopefully,
to draw the attention of the lightning.
I reminded her
that she was repeating exactly
our mother’s formula, which she and I
had discussed in
childhood, because we both felt
that what we were looking at in the adults
were the effects
not of lightning
but of the electric chair.
5.
Riddle:
Why was my mother happy?
Answer:
She married my father.
6.
“You girls,” my mother said, “should marry
someone like your father.”
That was one
remark. Another was,
“There is no one like your father.”
7.
From the pierced clouds, steady lines of silver.
Unlikely
yellow of the witch hazel, veins
of mercury that were the paths of the rivers –
Then the rain
again, erasing
footprints in the damp earth.
8.
The implication was, it was necessary to abandon
childhood. The word “marry” was a signal.
You could also treat it as aesthetic advice;
the voice of the child was tiresome,
it had no lower register.
The word was a code, mysterious, like the Rosetta stone.
It was also a roadsign, a warning.
You could take a few things with you like a dowry.
You could take the part of you that thought.
“Marry” meant you should keep that part quiet.
9.
A night in summer. Outside,
sounds of a summer storm. Then the sky clearing.
In the window, constellations of summer.
I’m in a bed. This
man and I,
we are suspended in the strange calm
sex often induces. Most sex induces.
Longing, what is that? Desire, what is that?
In the window,
constellations of summer.
Once, I could name them.
10.
Abstracted
shapes, patterns.
The light of the mind. The cold, exacting
fires of disinterestedness, curiously
blocked by earth,
coherent, glittering
in air and water,
the elaborate
signs that said now plant, now harvest–
I could name them,
I had names for them:
two different things.
11.
Fabulous things, stars.
When I was a
child, I suffered from insomnia.
Summer nights, my parents permitted me to sit by the lake;
I took the dog for company.
Did I say
“suffered”? That was my parents’ way of explaining
tastes that seemed to them
inexplicable: better “suffered” than “preferred to live with the dog.”
Darkness. Silence
that annulled mortality.
The tethered boats rising and falling.
When the moon was full, I could sometimes read the girls’ names
painted to the sides of the boats:
Ruth Ann, Sweet Izzy, Peggy My Darling—
They were going
nowhere, those girls.
There was nothing to be learned from them.
I spread my jacket
in the damp sand,
The dog curled up beside me.
My parents couldn’t see the life in my head;
when I wrote it down, they fixed the spelling.
Sounds of the
lake. The soothing, inhuman
sounds of water lapping the dock, the dog scuffing somewhere
in the weeds–
12.
The assignment was to fall in love.
The details were up to you.
The second part was
to include in the poem certain words,
words drawn from a specific text
on another subject altogether.
13.
Spring rain, then a night in summer.
A man’s voice, then a woman’s voice.
You grew up, you
were struck by lightning.
When you opened your eyes, you were wired forever to your true love.
It only happened
once. Then you were taken care of,
your story was finished.
It happened once.
Being struck by lightning was like being vaccinated;
the rest of your life you were immune,
you were warm and dry.
Unless the shock
wasn’t deep enough.
Then you weren’t vaccinated, you were addicted.
14.
The assignment was to fall in love.
The author was female.
The ego had to be called the soul.
The action took
place in the body.
Stars represented everything else: dreams, the mind, etc.
The beloved was
identified
with the self in a narcissistic projection.
The mind was the subplot. It went nattering on.
Time was
experienced
less as narrative than ritual.
What was repeated had weight.
Certain endings
were tragic, thus acceptable.
Everything else was failure.
15.
Deceit. Lies. Embellishments we call
hypotheses–
There were too
many roads, to many versions.
There were too many roads, not one path–
And at the end?
16.
List the implications of “crossroads.”
Answer: a story
that will have a moral.
Give a
counter-example:
17.
The self ended and the world began.
They were of equal size,
commensurate,
one mirrored the other.
18.
The riddle was: why couldn’t we live in the mind.
The answer was:
the barrier of the earth intervened.
19.
The room was quiet.
That is, the room was quiet, but the lovers were breathing.
In the same way,
the night was dark.
It was dark, but the stars shone.
The man in bed was
one of several men
to whom I gave my heart. The gift of the self,
that is without limit.
Without limit, though it recurs.
The room was
quiet. It was an absolute,
like the black night.
20.
A night in summer. Sounds of a summer storm.
The great plates invisibly shifting and changing–
And in the dark
room, the lovers sleeping in each other’s arms.
We are, each of
us, the one who wakens first,
who stirs first and sees, there in the first dawn,
the stranger.
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