segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

Averno – 3/18

 

Perséfone, a errante

 

Na primeira versão, Perséfone

é levada de sua mãe

e a deusa da terra

castiga a terra – o que é

coerente com o que sabemos da conduta humana,

 

que os seres humanos sentem profunda satisfação

em praticar o mal, em particular

o mal inconsciente:

 

chamemos a isso

criação negativa

 

A primeira estadia de

Perséfone no inferno continua a ser

escarafunchada por acadêmicos que debatem

as sensações da virgem:

 

será que ela facilitou seu estupro,

ou foi drogada, violada contra sua vontade,

como quase sempre acontece a jovens de hoje.

 

Como bem sabido, a volta da amada

não repara

a perda da amada: Perséfone

 

volta para casa

manchada de seiva vermelha como

uma personagem de Hawthorn –

 

Não estou certa se

guardarei esta palavra: a terra

é uma “casa” para Perséfone? É concebível ela que esteja em casa,

na cama do deus? Em nenhum lugar

ela se sente em casa? Será que ela

é uma errante nata, em outra palavras

uma réplica

existencial de sua própria mãe, menos

tolhida por ideias de causalidade?

 

Você é livre para não

gostar de ninguém, você sabe. Personagens

não são pessoas.

São aspectos de um dilema ou conflito.

 

Três partes: assim como a alma é dividida,

ego, superego, id. Da mesma forma

 

os três níveis do mundo conhecido,

uma espécie de esquema que separa

o céu da terra do inferno.

 

Você deve se perguntar:

onde está nevando?

 

Branco de esquecimento,

de profanação –

 

Está nevando sobre a terra; o vento frio diz

 

Perséfone está fazendo sexo no inferno.

Ao contrário de nós, ela não sabe

o que é inverno, apenas que

ela é quem o causa.

 

Está deitada na cama de Hades,

O que se passa em sua mente?

Está com medo? Alguma coisa

apagou a ideia

de mente?

 

Por certo ela sabe que a terra

é administrada por mães, isso é mais

que seguro. Ela também sabe

que não é mais o que se chama

menina. Quanto

ao confinamento, ela acredita

 

que é prisioneira desde que é filha.

 

Os terríveis reencontros que aguardam por ela

se prolongarão pelo resto de sua vida.

Quando a paixão pela expiação

é crônica, feroz, você não escolhe

o modo de viver. Você não vive;

você não tem licença para morrer.

 

Você vaga entre a terra e a morte

que guardam entre si, afinal,

estranha semelhança. Os estudiosos dizem

 

que não faz sentido saber o que você quer

quando as forças que em você contendem

poderiam matá-lo.

 

Branco de esquecimento,

branco de segurança –

 

Dizem

que há uma fenda na alma humana

que ela não foi criada para pertencer

inteiramente à vida. A terra

 

pede-nos para negar essa fenda, uma ameaça

disfarçada de sugestão –

 

como vimos

na fábula de Perséfone

que deveria ser lida

 

como uma discussão entre a mãe e o amante –

a filha é apenas carne.

 

Até que a morte a confronta, ela nunca

vira o campo sem as margaridas.

De repente ela não mais canta

a beleza e a fecundidade

de sua mãe. Onde

a fenda se encontra, a fratura está.

 

Canção da terra,

canção da visão mítica da vida eterna –

 

Minha alma

despedaçada pelo esforço

de tentar ser parte da terra –

 

O que você fará

quando no campo for sua vez com o deus?

 

 

Persephone the Wanderer

 

 

In the first version, Persephone

is taken from her mother

and the goddess of the earth

punishes the earth—this is

consistent with what we know of human behavior,

 

that human beings take profound satisfaction

in doing harm, particularly

unconscious harm:

 

we may call this

negative creation.

 

Persephone's initial

sojourn in hell continues to be

pawed over by scholars who dispute

the sensations of the virgin:

 

did she cooperate in her rape,

or was she drugged, violated against her will,

as happens so often now to modern girls.

 

As is well known, the return of the beloved

does not correct

the loss of the beloved: Persephone

 

returns home

stained with red juice like

a character in Hawthorne –

 

I am not certain I will

keep this word: is earth

"home" to Persephone? Is she at home, conceivably,

in the bed of the god? Is she

at home nowhere? Is she

a born wanderer, in other words

an existential

replica of her own mother, less

hamstrung by ideas of causality?

 

You are allowed to like

no one, you know. The characters

are not people.

They are aspects of a dilemma or conflict.

 

Three parts: just as the soul is divided,

ego, superego, id. Likewise

 

the three levels of the known world,

a kind of diagram that separates

heaven from earth from hell.

 

You must ask yourself:

where is it snowing?

 

White of forgetfulness,

of desecration –

 

It is snowing on earth; the cold wind says

 

Persephone is having sex in hell.

Unlike the rest of us, she doesn't know

what winter is, only that

she is what causes it.

 

She is lying in the bed of Hades.

What is in her mind?

Is she afraid? Has something

blotted out the idea

of mind?

 

She does know the earth

is run by mothers, this much

is certain. She also knows

she is not what is called

a girl any longer. Regarding

incarceration, she believes

 

she has been a prisoner since she has been a daughter.

 

The terrible reunions in store for her

will take up the rest of her life.

When the passion for expiation

is chronic, fierce, you do not choose

the way you live. You do not live;

you are not allowed to die.

 

You drift between earth and death

which seem, finally,

strangely alike. Scholars tell us

 

that there is no point in knowing what you want

when the forces contending over you

could kill you.

 

White of forgetfulness,

white of safety –

 

They say

there is a rift in the human soul

which was not constructed to belong

entirely to life. Earth

 

asks us to deny this rift, a threat

disguised as suggestion—

as we have seen

in the tale of Persephone

which should be read

 

as an argument between the mother and the lover—

the daughter is just meat.

 

When death confronts her, she has never seen

the meadow without the daisies.

Suddenly she is no longer

singing her maidenly songs

about her mother's

beauty and fecundity. Where

the rift is, the break is.

 

Song of the earth,

song of the mythic vision of eternal life—

 

My soul

shattered with the strain

of trying to belong to earth—

 

What will you do,

when it is your turn in the field with the god?

 

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