sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

 


 

Averno – 12/18

 

 

Rotunda azul

 

Estou cansada de ter mãos

ela disse

eu quero asas –

 

Mas o que você fará sem suas mãos

para ser humana?

 

Estou cansada de ser humana

disse

quero viver no sol –

 

·                      

 

Apontando a si mesma:

 

Não aqui.

Não há bastante

calor neste lugar.

Céu azul, gelo azul

 

a rotunda azul

erguida sobre

a rua plana –

 

e depois, após breve silêncio:

 

·                      

 

Quero

meu coração de volta

quero sentir tudo de novo –

Isto é o que

o sol quis dizer: quis dizer

esturricado

 

·                      

 

Afinal não é

interessante lembrar.

O dano

 

não é interessante.

Ninguém que então me conheceu

ainda está vivo.

 

Minha mãe

foi uma bela mulher –

assim disseram todos.

 

·                      

 

Tenho de imaginar

tudo o que

ela disse

 

tenho de agir

como se na verdade houvesse

um mapa para aquele lugar:

 

quando você era criança

 

·                      

 

E depois:

 

aqui estou

porque não era verdade; eu

eu a falseei

 

·                      

 

eu quero ela disse

uma teoria que explique

tudo

 

no olho de minha mãe

a invisível

farpa de lâmina

 

o gelo azul

preso na íris –

 

·                      

 

Depois:

 

quero que isso

seja minha culpa

ela disse

para que eu possa consertar –

 

·                      

 

Céu azul, gelo azul,

a rua como um rio congelado

você está falando

de minha vida

ela disse

 

·                      

 

exceto

ela disse

que você tem de consertá-la

 

na ordem correta

sem tocar no pai

até desvendar a mãe

 

·                      

 

um espaço escuro

mostrando

onde a palavra termina

 

como uma palavra-cruzada que significa

você deveria tomar fôlego agora

 

o espaço escuro que significa

quando você era criança

 

·                      

 

E depois:

o gelo

estava lá para sua própria proteção

 

para ensiná-la

a não sentir –

 

a verdade

ela disse

 

pensei que ela seria como

um alvo, você veria

 

o centro –

 

·                      

 

Luz fria preenchendo o quarto.

 

Sei onde estamos

ela disse

aquela é a janela

de quando eu era criança

 

Aquele é meu primeiro lar, ela disse

a caixa quadrada –

vá em frente e ria.

 

Como o interior de minha cabeça:

você pode mostrar a saída

mas não pode sair –

 

·                      

 

Apenas pense que

o sol estava lá, naquele lugar vazio

 

o sol de inverno

não muito próximo para alcançar

os corações das crianças

 

a luz dizendo

você pode mostrar a saída

mas você não pode sair

Este, diz,

este é o lugar a que todas as coisas pertencem.

  

 

Blue Rotunda

 

I am tired of having hands
she said
I want wings –

 

But what will you do without your hands
to be human?

 

I am tired of human
she said
I want to live on the sun –

 

  •  

 

Pointing to herself:

 

Not here.
There is not enough
warmth in this place.
Blue sky, blue ice

 

the blue rotunda
lifted over
the flat street –

 

and then, after a silence:

 

  •  

 

I want
my heart back
I want to feel everything again –

 

That’s what
the sun meant: it meant
scorched –

 

  •  

 

It is not finally
interesting to remember.
The damage

 

is not interesting.
No one who knew me then
is still alive.

 

My mother
was a beautiful woman –
they all said so.

 

  •  

 

I have to imagine
everything
she said

 

I have to act
as though there is actually
a map to that place:

 

when you were a child –

 

  •  

 

And then:

 

I’m here
because it wasn’t true; I

 

distorted it –

 

  •  

 

I want she said
a theory that explains
everything

 

in the mother’s eye
the invisible
splinter of foil

 

the blue ice
locked in the iris –

 

  •  

 

Then:

 

I want it
to be my fault
she said
so I can fix it –

 

  •  

 

Blue sky, blue ice,
street like a frozen river

you’re talking
about my life
she said

 

  •  

 

except
she said
you have to fix it

 

in the right order
not touching the father
until you solve the mother

 

  •  

 

a black space
showing
where the word ends

 

like a crossword saying
you should take a breath now

the black space meaning
when you were a child –

 

  •  

 

And then:

the ice
was there for your own protection

 

to teach you
not to feel –

 

the truth
she said

 

I thought it would be like
a target, you would see

 

the center –

 

  •  

 

Cold light filling the room.

 

I know where we are
she said
that’s the window
when I was a child

 

That’s my first home, she said
that square box –
go ahead and laugh.

 

Like the inside of my head:
you can see out
but you can’t go out –

 

  •  

 

Just think
the sun was there, in that bare place

the winter sun
not close enough to reach
the children’s hearts

 

the light saying
you can see out
but you can’t go out

Here, it says,
here is where everything belongs.

 

 

 

 

 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

 

Averno – 11/18

 

Fragmento arcaico

 

Eu estava tentando amar a matéria.

Colei um lembrete no espelho:

Você não pode odiar a matéria e amar a forma.

 

Era um belo dia, ainda que frio.

Para mim, aquele foi um gesto de extravagante emoção.

 

........ seu poema:

tentei, mas não consegui.

 

Colei um lembrete sobre o primeiro lembrete:

Chore, soluce, açoite a si mesma, rasgue suas roupas –

 

Lista de coisas a amar:

sujeira, comida, conchas, cabelo humano.

 

........ disse

insípido excesso. Depois

 

rasguei os lembretes.

 

AIAIAIAI gritou

o espelho nu.

  

Archaic Fragment

 

I was trying to love matter.

I taped a sign over the mirror:

You cannot hate matter and love form.

 

It was a beautiful day, though cold.

This was, for me, an extravagantly emotional gesture.

 

....... your poem:

tried, but could not.

 

I taped a sign over the first sign:

Cryweep, thrash yourselfrend your garments

 

List of things to love:

dirt, food, shells, human hair.

 

....... said

tasteless excess. Then I

 

rent the signs.

AIAIAIAI cried

the naked mirror.

 

 

 

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

 

Averno – 10/18

  

Um mito da inocência

 

Certo verão ela entra no campo como de costume

detendo-se brevemente junto ao lago onde por vezes

olha a si mesma, vendo

se percebe alguma diferença. Vê

a mesma pessoa, o horrível manto

filial ainda agarrado a ela.

 

No espelho d’água, o sol parece muito próximo.

É meu tio me espionando, pensa –

tudo na natureza é de algum modo seu parente.

Nunca estou sozinha, pensa,

transformando o pensamento em oração.

A morte surge, como resposta a uma oração.

 

Ninguém pode mais entender

como foi bela. Mas Perséfone se lembra.

Também que ele a abraçou, bem ali,

com seu tio observando. Lembra

da luz do sol fulgindo em seus braços nus.

 

Esse é o último instante de que se lembra com clareza.

Depois o deus sombrio a levou.

 

Lembra também, com menor clareza,

da fria percepção de que

não mais poderia viver longe dele outra vez.

 

A menina que desaparece do lago

nunca voltará. Uma mulher voltará,

à procura da menina que foi.

 

Ela permanece junto ao lago, por vezes dizendo,

Fui raptada, o que lhe soa

equivocado, nada como o que sentiu.

 

Diz, não fui raptada.

Diz, ofereci-me, eu queria

fugir de meu corpo. Por vezes, até mesmo

desejei isso. Mas a ignorância

 

não consegue desejar conhecimento. A ignorância

deseja algo imaginado, que acredita existir.

 

Todos os muitos substantivos –

Ela os diz em ciclos.

Morte, marido, deus, estranho.

Tudo soa tão singelo, tão convencional.

Eu devo ter sido, pensa, uma menina singela.

 

Não consegue se lembrar de si mesma como pessoa

mas continua pensando que o lago se lembrará

e lhe explicará o significado de sua oração

para que ela possa compreender

se foi ou não atendida.

  

The Myth of Innocence

 

One summer she goes into the field as usual

stopping for a bit at the pool where she often

looks at herself, to see

if she detects any changes. She sees

the same person, the horrible mantle

of daughterliness still clinging to her.

 

The sun seems, in the water, very close.

That's my uncle spying again, she thinks –

everything in nature is in some way her relative.

I am never alone, she thinks,

turning the thought into a prayer.

Then death appears, like the answer to a prayer.

 

No one understands anymore

how beautiful he was. But Persephone remembers.

Also that he embraced her, right there,

with her uncle watching. She remembers

sunlight flashing on his bare arms.

 

This is the last moment she remembers clearly.

Then the dark god bore her away.

 

She also remembers, less clearly,

the chilling insight that from this moment

she couldn't live without him again.

 

The girl who disappears from the pool

will never return. A woman will return,

looking for the girl she was.

 

She stands by the pool saying, from time to time,

I was abducted, but it sounds

wrong to her, nothing like what she felt.

Then she says, I was not abducted.

Then she says, I offered myself, I wanted

to escape my body. Even, sometimes,

I willed this. But ignorance

 

cannot will knowledge. Ignorance

wills something imagined, which it believes exists.

 

All the different nouns –

she says them in rotation.

Death, husband, god, stranger.

Everything sounds so simple, so conventional.

I must have been, she thinks, a simple girl.

 

She can't remember herself as that person

but she keeps thinking the pool will remember

and explain to her the meaning of her prayer

so she can understand

whether it was answered or not.


Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

  Argonautas   E se a alma deve conhecer-se a si mesma ela deve voltar os olhos para outra alma: * o estrangeiro e inimigo, vim...