sábado, 20 de junho de 2020

Jacques Prévert (França: 1900 – 1977)




O Tempo Perdido


Defronte a porta da fábrica
o operário de súbito para
o bom tempo pelo casaco o puxara
e quando ele se volta
e o sol avista
tão vermelho e rotundo
sorridente em seu céu de chumbo
os olhos ele pisca
com intimidade
diz então Sol meu prezado
tu não pensas
que é uma aberração
um dia assim ser dado
a um patrão?


Le Temps Perdu


Devant la porte de l’usine
le travailleur soudain s’arrête
le beau temps l’a tiré par la veste
et comme il se retourne
et regarde le soleil
tout rouge tout rond
souriant dans son ciel de plomb
il cligne de l’œil
familièrement
Dis donc camarade Soleil
tu ne trouves pas
que c’est plutôt con
de donner une journée pareille
à un patron?



sexta-feira, 19 de junho de 2020

Jorge Luis Borges (Argentina: 1899 – 1986)




O Apaixonado (*)

Luas, marfins, instrumentária, rosas,
lâmpadas, também de Dürer o traço,
nove algarismos e o mutável zero,
devo fingir que existem essas coisas.

Devo fingir que antes existiram
Persépolis e Roma e que uma areia
etérea mensurou a sorte da ameia
que os séculos de ferro corroeram.

Devo fingir as armas e a fogueira
da epopeia e os mais tormentosos mares
que desgastaram da terra os pilares;

Devo fingir que há outros. É mentira.
Apenas tu és. Tu, mi'a desventura
e mi'a ventura, inesgotável e pura.


El Enamorado


Lunas, marfiles, instrumentos, rosas,
lámparas y la línea de Durero,
las nueve cifras y el cambiante cero,
debo fingir que existen esas cosas.

Debo fingir que en el pasado fueron
Persépolis y Roma y que una arena
sutil midió la suerte de la almena
que los siglos de hierro deshicieron.

Debo fingir las armas y la pira
de la epopeya y los pesados mares
que roen de la tierra los pilares.

Debo fingir que hay otros. Es mentira.
Sólo tú eres. Tú, mi desventura
y mi ventura, inagotable y pura.


Nota:

(*) por fidelidade a métrica e rimas, vi-me forçado (até encontrar melhor solução) a traduzir 'linha de Dürer' por 'traço de Dürer', além de inverter a ordem das palavras e introduzir um 'também' que não existe no verso original. Ler a respeito do que seja a linha de Dürer em http://100swallows.wordpress.com/2012/01/26/durers-ingenious-lines/ (em inglês)

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Jorge Luis Borges (Argentina: 1899 – 1986)




O Alquimista


Lento na aurora um jovem exaurido
Pela delongada reflexão e as avaras
Vigílias considera ensimesmado
Os insones braseiros e alquitarras. [1]

Entende que o ouro, esse Proteu, espreita [2]
Por qualquer acaso, como o destino;
Entende que está no pó do caminho,
e também no arco, no braço e na seta.

Em sua dúbia visão de um ser secreto
Que se dissimula no astro e no lodo,
Pulsa aquele outro sonho de que tudo
É água, como viu Tales de Mileto [3].

Outra visão haverá; a de um eterno
Deus cuja ubíqua face é cada coisa,
Como dirá o geômetra Espinosa [4]
Num livro mais intrincado que o Averno... [5]

Nos extensos confins orientais
Do azul empalidecem os planetas,
O alquimista considera as secretas
Leis que juntam planetas e metais.

E entrementes crê tocar exaltado
O ouro, aquele que destruirá a Morte.
Deus, que sabe de alquimia, o converte
Em pó, em ninguém, em nada e em olvido.


El Alquimista


Lento en el alba un joven que han gastado
La larga reflexión y las avaras
Vigilias considera ensimismado
Los insomnes braseros y alquitaras.

Sabe que el oro, ese Proteo, acecha
Bajo cualquier azar, como el destino;
Sabe que está en el polvo del camino,
En el arco, en el brazo y en la flecha.

En su oscura visión de un ser secreto
Que se oculta en el astro y en el lodo,
Late aquel otro sueño de que todo
Es agua, que vio Tales de Mileto.

Otra visión habrá; la de un eterno
Dios cuya ubicua faz es cada cosa,
Que explicará el geométrico Spinoza
En un libro más arduo que el Averno...

En los vastos confines orientales
Del azul palidecen los planetas,
El alquimista piensa en las secretas
Leyes que unen planetas y metales.

Y mientras cree tocar enardecido
El oro aquél que matará la Muerte.
Dios, que sabe de alquimia, lo convierte
En polvo, en nadie, en nada y en olvido.


Notas:

[1] Aparelho de destilação sem serpentina.
[2] Na mitologia, deus marinho, filho de Poseidon e Tétis. Dotado do poder da premonição, era conhecedor dos caprichos do destino, mas não gostava de revelá-los aos humanos.
[3] Tales de Mileto: primeiro filósofo e matemático grego de que se tem notícia, para quem a água estava na origem de todas as coisas.
[4] Baruck de Espinosa, filósofo holandês, autor de "Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras".
[5] Averno, lago vulcânico próximo a Nápoles. Na mitologia, é a entrada para o mundo subterrâneo, governado por Plutão (Hades, na mitologia grega).



quarta-feira, 17 de junho de 2020

Aurélio Arturo (Colômbia: 1906 – 1974)




Clima


Este verde poema, folha por folha,
o agita um vento fértil, sudoeste;
este poema é um país que sonha,
nuvem de luz e brisa de folhas verdes.

Retumbos da água, pedras, nuvens, folhas
e um sopro ágil em tudo, são o canto.
Palmeiras havia, palmeiras e as brisas
e uma luz semelhante a espadas pelo recinto.

O vento fiel que agita meu poema,
o vento fiel que a canção impele,
folhas agitou, nuvens agitou, contente
por agitar nuvens brancas e folhas verdes.

Eu sou a voz que ao vento confiou canções
puras no oeste de minhas nuvens;
meu coração em toda palmeira, roto
datil, uniu os horizontes múltiplos.

E em meu país apascentando nuvens,
pus no sul meu coração, e ao norte,
qual duas aves de rapina, perseguiram
meu olhos, o rebanho de horizontes.

A vida é bela, dura mão, dedos
tímidos ao dar forma ao frágil vaso
de tua canção, o cumulas de teu gozo
ou de disfarçados méis de teu pranto.

Este verde poema, folha por folha
o agita um vento fértil, um esbelto
vento que amou do sul ervas e céus,
este poema é o país do vento.

Sob um céu de espadas, terra escura,
árvores verdes, verde algaravia
das folhas miúdas e o moroso
vento move as folhas e os dias.

Dance o vento e as verdes lonjuras
Chamem-me com recônditos rumores:
dócil mulher, de mel turgido o seio,
amou sob as palmeiras minhas canções.


Clima


Este verde poema, hoja por hoja,
lo mece un viento fértil, suroeste;
este poema es un país que sueña,
nube de luz y brisa de hojas verdes.

Tumbos del agua, piedras, nubes, hojas
y un soplo ágil en todo, son el canto.
Palmas había, palmas y las brisas
y una luz como espadas por el ámbito.

El viento fiel que mece mi poema,
el viento fiel que la canción impele,
hojas meció, nubes meció, contento
de mecer nubes blancas y hojas verdes.

Yo soy la voz que al viento dio canciones
puras en el oeste de mis nubes;
mi corazón en toda palma, roto
dátil, unió los horizontes múltiples.

Y en mi país apacentando nubes,
puse en el sur mi corazón, y al norte,
cual dos aves rapaces, persiguieron
mis ojos, el rebaño de horizontes

La vida es bella, dura mano, dedos
tímidos al formar el frágil vaso
de tu canción, lo colmes de tu gozo
o de escondidas mieles de tu llanto.

Este verde poema, hoja por hoja
lo mece un viento fértil, un esbelto
viento que amó del sur hierbas y cielos,
este poema es el país del viento.

Bajo un cielo de espadas, tierra oscura,
árboles verdes, verde algarabía
de las hojas menudas y el moroso
viento mueve las hojas y los días.

Dance el viento y las verdes lontananzas
me llamen con recónditos rumores:
dócil mujer, de miel henchido el seno,
amó bajo las palmas mis canciones.



terça-feira, 16 de junho de 2020

Aurélio Arturo (Colômbia: 1906 – 1974)




Morada no Sul


E aqui principia, neste tronco de árvore,
neste umbral polido por tantos passos mortos,
a casa grande entre seus frescos ramos.
Em seus recantos anjos de sombra e de segredo.

Entre essas câmaras eu vi a face da luz pura.
Mas quando as sombras as povoaram de musgos,
ali, mimosa e cauta, punha entre minhas mãos,
suas luas mais formosas a noite das fábulas.

Entre anos, entre árvores, circundada
por um voo de pássaros, grinalda caprichosa,
casa grande, branco muro, pedra e ricas madeiras,
à margem deste verde retumbo, deste marulho poderoso.

No umbral de carvalho permanecia,
fazia já muito tempo, muito tempo sem vida,
o eminente grupo de homens entre sombras oblíquas,
permanecia entre a fumaça vagarosa iluminada de
recordações:

Oh, vozes manchadas da tenaz paisagem, plenas
do ruido de tão formosos cavalos que galopam
sob espantosas ramagens.
Eu subi até as montanhas, também feitas de sonhos,
eu ascendi, eu subi até as montanhas onde um grito
persiste entre as asas de pombas selvagens.

Falo-te de dias circundados pelas mais finas árvores:
Falo-te das vastas noites iluminadas
por uma estrela de menta que acende todo o sangue:

Falo-te do sangue que canta como uma gota solitária
que cai eternamente na sombra, acesa:

Falo-te de um bosque extasiado que existe
apenas para o ouvido, e que no fundo das noites pulsa
violas, harpas, alaúdes e chuvas sempiternas

Falo-te também: entre madeiras, entre resinas,
entre milhares de folhas inquietas, de uma só folha:
pequena mancha verde, de louçania, de graça,
folha única em que vibram os ventos que correram
pelos belos países onde o verde é de todas as cores,
os ventos que cantaram pelos países da Colômbia.

Falo-te de noites doces, junto aos mananciais, junto aos céus,
que estremecem temerosos entre asas azuis:

Falo-te de uma voz que é para mim brisa constante,
em minha canção agitando toda palavra minha,
como esse sopro que a toda folha agita no sul, tão docemente,
toda folha, noite e dia, suavemente no sul.


Morada Al Sur


Y aquí principia, en este torso de árbol,
en este umbral pulido por tantos pasos muertos,
la casa grande entre sus frescos ramos.
En sus rincones ángeles de sombra y de secreto.

En esas cámaras yo vi la faz de la luz pura.
Pero cuando las sombras las poblaban de musgos,
allí, mimosa y cauta, ponía entre mis manos,
sus lunas más hermosas la noche de las fábulas.

Entre años, entre árboles, circuida
por un vuelo de pájaros, guirnalda cuidadosa,
casa grande, blanco muro, piedra y ricas maderas,
a la orilla de este verde tumbo, de este oleaje poderoso.

En el umbral de roble demoraba,
hacía ya mucho tiempo, mucho tiempo marchito,
el alto grupo de hombres entre sombras oblicuas,
demoraba entre el humo lento alumbrado de
remembranzas:

Oh voces manchadas del tenaz paisaje, llenas
del ruido de tan hermosos caballos que galopan
bajo asombrosas ramas.
Yo subí a las montañas, también hechas de sueños,
yo ascendí, yo subí a las montañas donde un grito
persiste entre las alas de palomas salvajes.

Te hablo de días circuidos por los más finos árboles:
te hablo de las vastas noches alumbradas
por una estrella de menta que enciende toda sangre:

te hablo de la sangre que canta como una gota solitaria
que cae eternamente en la sombra, encendida:

te hablo de un bosque extasiado que existe
sólo para el oído, y que en el fondo de las noches pulsa
violas, arpas, laúdes y lluvias sempiternas.

Te hablo también: entre maderas, entre resinas,
entre millares de hojas inquietas, de una sola hoja:
pequeña mancha verde, de lozanía, de gracia,
hoja sola en que vibran los vientos que corrieron
por los bellos países donde el verde es de todos los colores,
los vientos que cantaron por los países de Colombia.

Te hablo de noches dulces, junto a los manantiales, junto a cielos,
que tiemblan temerosos entre alas azules:

te hablo de una voz que me es brisa constante,
en mi canción moviendo toda palabra mía,
como ese aliento que toda hoja mueve en el sur, tan dulcemente,
toda hoja, noche y día, suavemente en el sur.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Aurélio Arturo (Colômbia: 1906 – 1974)




Palavra


Rodeia-nos a palavra
a ouvimos
a tocamos
seu aroma nos circunda
palavra que dizemos e modelamos com a mão
fina ou tosca
e que
forjamos
com o fogo do sangue
e a suavidade da pele de nossas amadas
palavra onipresente
conosco desde o alvorecer
ou mesmo antes
na água escura do sonho
ou na idade do que apenas salvamos
fragmentos de recordações
de espantos
de enormes ternuras
que vão conosco
monólogo mudo
diálogo
a que oferecemos a nossos amigos
a que cunhamos
para o amor o queixume
a lisonja
moeda de sol
ou de prata
ou moeda falsa
nela nos olhamos
para saber quem somos
nosso ofício
e raça
reflete
nosso eu
nossa tribo
profundo espelho
e quando é alegria e angústia
e os vastos céus e a verde folhagem
e a terra que canta
então esse voo de palavras
é a poesia
pode ser a poesia.


Palabra


nos rodea la palabra
la oímos
la tocamos
su aroma nos circunda
palabra que decimos y modelamos con la mano
fina o tosca
y que
forjamos
con el fuego de la sangre
y la suavidad de la piel de nuestras amadas
palabra omnipresente
con nosotros desde el alba
o aun antes
en el agua oscura del sueño
o en la edad de la que apenas salvamos
retazos de recuerdos
de espantos
de terribles ternuras
que va con nosotros
monólogo mudo
diálogo
la que ofrecemos a nuestros amigos
la que acuñamos
para el amor la queja
la lisonja
moneda de sol
o de plata
o moneda falsa
en ella nos miramos
para saber quiénes somos
nuestro oficio
y raza
refleja
nuestro yo
nuestra tribu
profundo espejo
y cuando es alegría y angustia
y los vastos cielos y el verde follaje
y la tierra que canta
entonces ese vuelo de palabras
es la poesía
puede ser la poesía



domingo, 14 de junho de 2020

Walt Whitman (Estados Unidos: 1819 – 1892)




O Trompetista Místico


OUVI! um certo trompetista impetuoso - certo músico singular
No ar pairando incógnito, faz vibrar na noite imprevisíveis melodias.

Ouço-te, trompetista - concentrado e atento, capto tuas notas,
Que ora fluem, voluteiam como uma tempestade ao meu redor,
Ora são graves, suavizadas - ora ao longe se perdem.

Aproxima-te, ser incorpóreo - por sorte em ti ressoa
algum compositor já morto - por sorte tua existência meditativa
Foi contemplada com elevadas inspirações - ideais incompletos,
Ondas, músicas oceânicas, que se avolumam caoticamente,
E agora, estática aparição que ao meu lado se inclina, tua corneta ecoando,
repicando,
É para os meus ouvidos e os de mais ninguém – gratuita para os meus,
Para que eu possa traduzir-te.

Soa trompetista, livremente e com clareza – acompanho-te,
Enquanto em teu liquefeito prelúdio, feliz, sereno,
O mundo inquieto, as ruas, as horas ruidosas do dia retrocedem.
Uma sagrada tranquilidade sobre mim descende como o orvalho.
Percorro, numa noite calma e refrescante, a senda do Paraíso,
Sinto o cheiro da grama, a umidade do ar e das rosas;
Tua canção consome o meu espírito entorpecido e desarticulado - tu me libertas, transportas-me,
Para o lago do Céu em que flutuo e me deleito.

Soa de novo, trompetista e aos meus olhos sensuais
Apresenta os antigos cortejos suntuosos – apresenta o mundo feudal.

Quanto encantamento tua música produz! – fizeste com que desfilassem a minha frente,
Damas e fidalgos há muito falecidos - barões nos salões dos seus castelos – os trovadores estão cantando;
Cavaleiros armados partem para reparar malefícios - alguns em busca do Santo Graal:
Assisto à contenda - vejo os contendores, encasulados em pesadas armaduras, acomodados sobre cavalos imponentes, fogosos;
Ouço os gritos - os sons dos golpes e os embates dos aços:
Vejo os tumultuosos exércitos dos Cruzados - Ouvi! como os címbalos soam!
Atenta! os monges caminham à frente, erguendo a cruz!

Soa de novo, trompetista! e como tema,
Toma agora o mais perfeito tema de encerramento - o que elimina e ajusta;
O amor, que é o pulsar de tudo – o sustento e a dor repentina;
O coração de todo homem e toda mulher, tudo pelo amor;
Nenhum outro tema exceto o amor – entretecido, envolvente, o todo-difusível amor.

Oh, como os imortais fantasmas aglomeram-se a minha volta!
Vejo o vasto alambique sempre em atividade – vejo e conheço as chamas que aquecem o mundo;
O brilho, o rubor, os corações palpitantes dos amantes,
Tão bem-aventurados alguns – e alguns tão calados, sombrios, avizinhados da morte;
O amor, para os amantes ele é tudo na terra – O amor, ele é sol e lua e estrelas;
Não mais outras palavras, mas palavras de amor – nenhum outro pensamento exceto Amor.

Soa de novo, trompetista – conjura das guerras os clamores.
Ágil em seu fascínio, um estremecido estrondo de trovão ressoa;
Atenta! onde homens armados se apressam – Atenta! por entre nuvens de pó, as cintilações das baionetas;
Vejo os artilheiros de faces imundas – assinalo o rosáceo lampejo em meio à fumaça – Ouço o estrépito das armas:
- Nem só da guerra – tua temerosa canção musical, executante impetuoso, traz todas as visões do medo,
Os feitos de brutais salteadores – rapina, morte – ouço os gritos de socorro!
Vejo navios indo a pique no mar – contemplo no convés, e abaixo dele, as cenas terríveis.

Oh, trompetista! penso que sou, eu próprio, o instrumento que tocas!
Tu derreteste o meu coração, o meu cérebro – tu a eles comoveste, desentranhaste, transformaste à vontade:
Tu extinguiste toda a luz do encorajamento – toda a esperança:
Vejo o escravizado, o derrotado, o ferido, o oprimido de toda a terra;
Sinto a vergonha imensurável e a humilhação da minha raça – ela fez-se minha;
Minhas também as vinganças da humanidade – os malefícios das eras – perplexas inimizades inveteradas e ódios;
Sinto o peso da derrota total – tudo perdido! triunfante o inimigo!
(Ainda assim, o Orgulho colossal entre ruínas mantém-se impávido, inabalável até o fim,
Resistência, firmeza, até o fim!)

Agora, trompetista, como fechamento,
Concede um esforço mais alto que qualquer outro ainda;
Canta para a minh' alma – renova a fé e a esperança que enlanguescem;
Inflama minha crença derrotada – dá-me alguma visão do futuro;
Dá-me, por uma única vez, sua profecia e alegria.

Oh, feliz, exultante, culminante canção!
Um vigor maior que o da terra soa em suas notas!
Marchas de vitória – homem desencantado – finalmente conquistador!
Hinos ao Deus universal, entoados pelo Homem universal – toda a alegria!
Arruaceiros, hilariantes bacanais, transbordantes de alegria!

Findos a guerra, a dor, o sofrimento – a malcheirosa terra purgada – exceto pela alegria, nada mais restou!
O oceano repleto de alegria, adoração, amor! Alegria no êxtase da vida!
Suficiente para apenas ser! Suficiente para respirar!
Alegria! Alegria! Alegria por toda a parte!


The Mystic Trumpeter


HARK! some wild trumpeter—some strange musician,
Hovering unseen in air, vibrates capricious tunes to-night.

I hear thee, trumpeter—listening, alert, I catch thy notes,
Now pouring, whirling like a tempest round me,
Now low, subdued—now in the distance lost.

Come nearer, bodiless one—haply, in thee resounds
Some dead composer—haply thy pensive life
Was fill’d with aspirations high—unform’d ideals,
Waves, oceans musical, chaotically surging,
That now, ecstatic ghost, close to me bending, thy cornet echoing, pealing,
Gives out to no one’s ears but mine—but freely gives to mine,
That I may thee translate.

Blow, trumpeter, free and clear—I follow thee,
While at thy liquid prelude, glad, serene,
The fretting world, the streets, the noisy hours of day, withdraw;
A holy calm descends, like dew, upon me,
I walk, in cool refreshing night, the walks of Paradise,
I scent the grass, the moist air, and the roses;
Thy song expands my numb’d, imbonded spirit—thou freest, launchest me,
Floating and basking upon Heaven’s lake.

Blow again, trumpeter! and for my sensuous eyes,
Bring the old pageants—show the feudal world.

What charm thy music works!—thou makest pass before me,
Ladies and cavaliers long dead—barons are in their castle halls—the troubadours are singing;
Arm’d knights go forth to redress wrongs—some in quest of the Holy Grail:
I see the tournament—I see the contestants, encased in heavy armor, seated on stately, champing horses;
I hear the shouts—the sounds of blows and smiting steel:
I see the Crusaders’ tumultuous armies—Hark! how the cymbals clang!
Lo! where the monks walk in advance, bearing the cross on high!

Blow again, trumpeter! and for thy theme,
Take now the enclosing theme of all—the solvent and the setting;
Love, that is pulse of all—the sustenace and the pang;
The heart of man and woman all for love;
No other theme but love—knitting, enclosing, all-diffusing love.

O, how the immortal phantoms crowd around me!
I see the vast alembic ever working—I see and know the flames that heat the world;
The glow, the blush, the beating hearts of lovers,
So blissful happy some—and some so silent, dark, and nigh to death:
Love, that is all the earth to lovers—Love, that mocks time and space;
Love, that is day and night—Love, that is sun and moon and stars;
Love, that is crimson, sumptuous, sick with perfume;
No other words, but words of love—no other thought but Love.

Blow again, trumpeter—conjure war’s Wild alarums.
Swift to thy spell, a shuddering hum like distant thunder rolls;
Lo! where the arm’d men hasten—Lo! mid the clouds of dust, the glint of bayonets;
I see the grime-faced cannoniers—I mark the rosy flash amid the smoke—I hear the cracking of the guns:
—Nor war alone—thy fearful music-song, wild player, brings every sight of fear,
The deeds of ruthless brigands—rapine, murder—I hear the cries for help!
I see ships foundering at sea—I behold on deck, and below deck, the terrible tableaux.

O trumpeter! methinks I am myself the instrument thou playest!
Thou melt’st my heart, my brain—thou movest, drawest, changest them, at will:
And now thy sullen notes send darkness through me;
Thou takest away all cheering light—all hope:
I see the enslaved, the overthrown, the hurt, the opprest of the whole earth;
I feel the measureless shame and humiliation of my race—it becomes all mine;
Mine too the revenges of humanity—the wrongs of ages—baffled feuds and hatreds;
Utter defeat upon me weighs—all lost! the foe victorious!
(Yet ’mid the ruins Pride colossal stands, unshaken to the last;
Endurance, resolution, to the last.)

Now, trumpeter, for thy close,
Vouchsafe a higher strain than any yet;
Sing to my soul—renew its languishing faith and hope;
Rouse up my slow belief—give me some vision of the future;
Give me, for once, its prophecy and joy.

O glad, exulting, culminating song!
A vigor more than earth’s is in thy notes!
Marches of victory—man disenthrall’d—the conqueror at last!
Hymns to the universal God, from universal Man—all joy!
A reborn race appears—a perfect World, all joy!
Women and Men, in wisdom, innocence and health—all joy!
Riotous, laughing bacchanals, fill’d with joy!

War, sorrow, suffering gone—The rank earth purged—nothing but joy left!
The ocean fill’d with joy—the atmosphere all joy!
Joy! Joy! in freedom, worship, love! Joy in the ecstacy of life!
Enough to merely be! Enough to breathe!
Joy! Joy! all over Joy!



sábado, 13 de junho de 2020

Emily Dickinson (Estados Unidos: 1830 – 1886)



Poema 116


Eu possuía algumas coisas a que chamava minhas –
E Deus, as que chamava suas –
Até que há poucos dias uma Demanda adversária
Perturbou tais harmonias.
Da propriedade, o meu jardim,
Que semeei com cuidado,
Ele requer a melhor parte,
E envia um Magistrado. *

A posição das partes
Proíbe publicidade,
Mas a Justiça é mais sublime
Que armas ou linhagem.

Instituirei uma "Ação" –
A restituição exigirei por lei –
Júpiter! Escolha seu advogado! –
O "Shaw" eu manterei. **


116


I had some things that I called mine -
And God, that he called his -
Till, recently a rival Claim
Disturbed these amities.
The property, my garden,
Which having sown with care,
He claims the pretty acre,
And sends a Bailiff there.

The station of the parties
Forbids publicity,
But Justice is sublimer
Than arms, or pedigree.

I'll institute an "Action" -
I'll vindicate the law -
Jove! Choose your counsel -
I retain "Shaw"!

Notas:

(*) Bailiff: oficial de justiça. Optei por 'magistrado' pela sonoridade.
(**) Shaw: sobrenome do jardineiro da família Dickinson



sexta-feira, 12 de junho de 2020

Emily Dickinson (Estados Unidos: 1830 – 1886)



Poema 101


Haverá de fato uma "manhã"?
Existe uma tal coisa como "Dia"?
Poderia avistá-la das montanhas
Fosse eu tão alta quanto gostaria?

Como as Vitórias-régias ela tem pés?
Tem penas tal qual uma Ave?
Foi trazida de países invulgares?
Dos quais eu nunca ouvi?

Oh qualquer Erudito! Oh qualquer Marujo!
Oh qualquer Sábio nos céus instruído!
Por favor diga a uma pequena Peregrina
Onde o lugar chamado "manhã" fica escondido!


Poem 101


Will there really be a "morning"?
Is there such a thing as "Day"?
Could I see it from the mountains
If I were as tall as they?

Has it feet like Water lilies?
Has it feathers like a Bird?
Is it brought from famous countries
Of which I have never heard?

Oh some Scholar! Oh some Sailor!
Oh some Wise Man from the skies!
Please to tell a little Pilgrim
Where the place called "morning" lies!

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Emily Dickinson (Estados Unidos: 1830 – 1886)




Poema 70


“Arcturo” é seu outro nome -
A que eu “Estrela” preferiria chamar!
É um ato mesquinho da Ciência
Interferir em todo lugar!

Esmaguei um verme noutro dia –
Um “Sabe-Tudo” que passava
Murmurou “Resurgam” – “Centopeia”! *
“Oh Deus - quão frágeis somos”!

Colho uma flor no bosque –
Um monstro com uma lupa
Avalia os estames num lampejo –
E a confina numa “Classe”! 

Enquanto que no passado
Eu apanhava uma Borboleta em meu chapéu – 
Ele senta ereto em “Gabinetes” –
Das pétalas do Trevo descuidado!

O que antes era "Céu"
Agora é "Zênite"!
O lugar a que me propus a ir
Passada a breve mascarada do Tempo
Também já está mapeado e tabulado!

E se os polos cambalhotas dessem
E de cabeça para baixo se pusessem!
Espero estar pronta para “o pior” –
Seja qual for a traquinagem!

Talvez o “Reino do Céu tenha” mudado –
Espero que as “Crianças” do lugar 
Não estejam “na última moda” quando eu chegar –
E de mim riam – e me encarem! 

Espero que o Pai dos céus
Venha a levantar sua garotinha –
Antiquada! – malcriada! – e tudo o mais! 
Sobre o mata-burro de “Pérola” da entrada!


70

"Arcturus" is his other name -
I'd rather call him "Star"!
It's very mean of Science
To go and interfere!

I slew a worm the other day,
A "Savan" passing by
Murmured "Resurgam" - "Centipede"!
"Oh Lord, how frail are we"!

I pull a flower from the woods -
A monster with a glass
Computes the stamens in a breath -
And has her in a "Class"!

Whereas I took the Butterfly
Aforetime in my hat,
He sits erect in "Cabinets" -
The Clover bells forgot!

What once was "Heaven"
Is "Zenith" now!
Where I proposed to go
When Time's brief masquerade was done
Is mapped, and charted too!

What if the "poles" should frisk about
And stand upon their heads!
I hope I'm ready for "the worst" -
Whatever prank betides!

Perhaps the "kingdom of Heaven's" changed.
I hope the "Children" there
Wont be "new fashioned" when I come -
And laugh at me - and stare!

I hope the Father in the skies
Will lift his little girl -
"Old fashioned"! - naughty! - everything!
Over the stile of "pearl"!


Nota:
(*) Resurgam: palavra latina que significa 'eu me levantarei de novo'. (Webster)



Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

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