domingo, 14 de junho de 2020

Walt Whitman (Estados Unidos: 1819 – 1892)




O Trompetista Místico


OUVI! um certo trompetista impetuoso - certo músico singular
No ar pairando incógnito, faz vibrar na noite imprevisíveis melodias.

Ouço-te, trompetista - concentrado e atento, capto tuas notas,
Que ora fluem, voluteiam como uma tempestade ao meu redor,
Ora são graves, suavizadas - ora ao longe se perdem.

Aproxima-te, ser incorpóreo - por sorte em ti ressoa
algum compositor já morto - por sorte tua existência meditativa
Foi contemplada com elevadas inspirações - ideais incompletos,
Ondas, músicas oceânicas, que se avolumam caoticamente,
E agora, estática aparição que ao meu lado se inclina, tua corneta ecoando,
repicando,
É para os meus ouvidos e os de mais ninguém – gratuita para os meus,
Para que eu possa traduzir-te.

Soa trompetista, livremente e com clareza – acompanho-te,
Enquanto em teu liquefeito prelúdio, feliz, sereno,
O mundo inquieto, as ruas, as horas ruidosas do dia retrocedem.
Uma sagrada tranquilidade sobre mim descende como o orvalho.
Percorro, numa noite calma e refrescante, a senda do Paraíso,
Sinto o cheiro da grama, a umidade do ar e das rosas;
Tua canção consome o meu espírito entorpecido e desarticulado - tu me libertas, transportas-me,
Para o lago do Céu em que flutuo e me deleito.

Soa de novo, trompetista e aos meus olhos sensuais
Apresenta os antigos cortejos suntuosos – apresenta o mundo feudal.

Quanto encantamento tua música produz! – fizeste com que desfilassem a minha frente,
Damas e fidalgos há muito falecidos - barões nos salões dos seus castelos – os trovadores estão cantando;
Cavaleiros armados partem para reparar malefícios - alguns em busca do Santo Graal:
Assisto à contenda - vejo os contendores, encasulados em pesadas armaduras, acomodados sobre cavalos imponentes, fogosos;
Ouço os gritos - os sons dos golpes e os embates dos aços:
Vejo os tumultuosos exércitos dos Cruzados - Ouvi! como os címbalos soam!
Atenta! os monges caminham à frente, erguendo a cruz!

Soa de novo, trompetista! e como tema,
Toma agora o mais perfeito tema de encerramento - o que elimina e ajusta;
O amor, que é o pulsar de tudo – o sustento e a dor repentina;
O coração de todo homem e toda mulher, tudo pelo amor;
Nenhum outro tema exceto o amor – entretecido, envolvente, o todo-difusível amor.

Oh, como os imortais fantasmas aglomeram-se a minha volta!
Vejo o vasto alambique sempre em atividade – vejo e conheço as chamas que aquecem o mundo;
O brilho, o rubor, os corações palpitantes dos amantes,
Tão bem-aventurados alguns – e alguns tão calados, sombrios, avizinhados da morte;
O amor, para os amantes ele é tudo na terra – O amor, ele é sol e lua e estrelas;
Não mais outras palavras, mas palavras de amor – nenhum outro pensamento exceto Amor.

Soa de novo, trompetista – conjura das guerras os clamores.
Ágil em seu fascínio, um estremecido estrondo de trovão ressoa;
Atenta! onde homens armados se apressam – Atenta! por entre nuvens de pó, as cintilações das baionetas;
Vejo os artilheiros de faces imundas – assinalo o rosáceo lampejo em meio à fumaça – Ouço o estrépito das armas:
- Nem só da guerra – tua temerosa canção musical, executante impetuoso, traz todas as visões do medo,
Os feitos de brutais salteadores – rapina, morte – ouço os gritos de socorro!
Vejo navios indo a pique no mar – contemplo no convés, e abaixo dele, as cenas terríveis.

Oh, trompetista! penso que sou, eu próprio, o instrumento que tocas!
Tu derreteste o meu coração, o meu cérebro – tu a eles comoveste, desentranhaste, transformaste à vontade:
Tu extinguiste toda a luz do encorajamento – toda a esperança:
Vejo o escravizado, o derrotado, o ferido, o oprimido de toda a terra;
Sinto a vergonha imensurável e a humilhação da minha raça – ela fez-se minha;
Minhas também as vinganças da humanidade – os malefícios das eras – perplexas inimizades inveteradas e ódios;
Sinto o peso da derrota total – tudo perdido! triunfante o inimigo!
(Ainda assim, o Orgulho colossal entre ruínas mantém-se impávido, inabalável até o fim,
Resistência, firmeza, até o fim!)

Agora, trompetista, como fechamento,
Concede um esforço mais alto que qualquer outro ainda;
Canta para a minh' alma – renova a fé e a esperança que enlanguescem;
Inflama minha crença derrotada – dá-me alguma visão do futuro;
Dá-me, por uma única vez, sua profecia e alegria.

Oh, feliz, exultante, culminante canção!
Um vigor maior que o da terra soa em suas notas!
Marchas de vitória – homem desencantado – finalmente conquistador!
Hinos ao Deus universal, entoados pelo Homem universal – toda a alegria!
Arruaceiros, hilariantes bacanais, transbordantes de alegria!

Findos a guerra, a dor, o sofrimento – a malcheirosa terra purgada – exceto pela alegria, nada mais restou!
O oceano repleto de alegria, adoração, amor! Alegria no êxtase da vida!
Suficiente para apenas ser! Suficiente para respirar!
Alegria! Alegria! Alegria por toda a parte!


The Mystic Trumpeter


HARK! some wild trumpeter—some strange musician,
Hovering unseen in air, vibrates capricious tunes to-night.

I hear thee, trumpeter—listening, alert, I catch thy notes,
Now pouring, whirling like a tempest round me,
Now low, subdued—now in the distance lost.

Come nearer, bodiless one—haply, in thee resounds
Some dead composer—haply thy pensive life
Was fill’d with aspirations high—unform’d ideals,
Waves, oceans musical, chaotically surging,
That now, ecstatic ghost, close to me bending, thy cornet echoing, pealing,
Gives out to no one’s ears but mine—but freely gives to mine,
That I may thee translate.

Blow, trumpeter, free and clear—I follow thee,
While at thy liquid prelude, glad, serene,
The fretting world, the streets, the noisy hours of day, withdraw;
A holy calm descends, like dew, upon me,
I walk, in cool refreshing night, the walks of Paradise,
I scent the grass, the moist air, and the roses;
Thy song expands my numb’d, imbonded spirit—thou freest, launchest me,
Floating and basking upon Heaven’s lake.

Blow again, trumpeter! and for my sensuous eyes,
Bring the old pageants—show the feudal world.

What charm thy music works!—thou makest pass before me,
Ladies and cavaliers long dead—barons are in their castle halls—the troubadours are singing;
Arm’d knights go forth to redress wrongs—some in quest of the Holy Grail:
I see the tournament—I see the contestants, encased in heavy armor, seated on stately, champing horses;
I hear the shouts—the sounds of blows and smiting steel:
I see the Crusaders’ tumultuous armies—Hark! how the cymbals clang!
Lo! where the monks walk in advance, bearing the cross on high!

Blow again, trumpeter! and for thy theme,
Take now the enclosing theme of all—the solvent and the setting;
Love, that is pulse of all—the sustenace and the pang;
The heart of man and woman all for love;
No other theme but love—knitting, enclosing, all-diffusing love.

O, how the immortal phantoms crowd around me!
I see the vast alembic ever working—I see and know the flames that heat the world;
The glow, the blush, the beating hearts of lovers,
So blissful happy some—and some so silent, dark, and nigh to death:
Love, that is all the earth to lovers—Love, that mocks time and space;
Love, that is day and night—Love, that is sun and moon and stars;
Love, that is crimson, sumptuous, sick with perfume;
No other words, but words of love—no other thought but Love.

Blow again, trumpeter—conjure war’s Wild alarums.
Swift to thy spell, a shuddering hum like distant thunder rolls;
Lo! where the arm’d men hasten—Lo! mid the clouds of dust, the glint of bayonets;
I see the grime-faced cannoniers—I mark the rosy flash amid the smoke—I hear the cracking of the guns:
—Nor war alone—thy fearful music-song, wild player, brings every sight of fear,
The deeds of ruthless brigands—rapine, murder—I hear the cries for help!
I see ships foundering at sea—I behold on deck, and below deck, the terrible tableaux.

O trumpeter! methinks I am myself the instrument thou playest!
Thou melt’st my heart, my brain—thou movest, drawest, changest them, at will:
And now thy sullen notes send darkness through me;
Thou takest away all cheering light—all hope:
I see the enslaved, the overthrown, the hurt, the opprest of the whole earth;
I feel the measureless shame and humiliation of my race—it becomes all mine;
Mine too the revenges of humanity—the wrongs of ages—baffled feuds and hatreds;
Utter defeat upon me weighs—all lost! the foe victorious!
(Yet ’mid the ruins Pride colossal stands, unshaken to the last;
Endurance, resolution, to the last.)

Now, trumpeter, for thy close,
Vouchsafe a higher strain than any yet;
Sing to my soul—renew its languishing faith and hope;
Rouse up my slow belief—give me some vision of the future;
Give me, for once, its prophecy and joy.

O glad, exulting, culminating song!
A vigor more than earth’s is in thy notes!
Marches of victory—man disenthrall’d—the conqueror at last!
Hymns to the universal God, from universal Man—all joy!
A reborn race appears—a perfect World, all joy!
Women and Men, in wisdom, innocence and health—all joy!
Riotous, laughing bacchanals, fill’d with joy!

War, sorrow, suffering gone—The rank earth purged—nothing but joy left!
The ocean fill’d with joy—the atmosphere all joy!
Joy! Joy! in freedom, worship, love! Joy in the ecstacy of life!
Enough to merely be! Enough to breathe!
Joy! Joy! all over Joy!



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