quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

 

Averno - 6/18

 

Ecos

 

1.

Certa vez eu pude imaginar a minha alma

pude imaginar a minha morte.

Quando imaginei a minha morte

a minha alma morreu. Lembro-me

disso claramente

 

Meu corpo persistiu.

Não viçoso, mas persistiu.

Por quê, não sei.

 

2.

Quando ainda era muito jovem

meus pais se mudaram para um pequeno vale

rodeado de montanhas

no que era chamado de distrito do lago.

De nosso jardim dos fundos

você podia avistar as montanhas,

cobertas de neve, mesmo no verão.

 

Lembro de um tipo de paz

que nunca voltei a encontrar.

 

De algum modo, mais tarde resolvi

tornar-me artista,

dar voz a tais impressões.

 

3.

Sobre o resto eu já lhe falei.

Uns poucos anos de fluência, e depois

o longo silêncio, como o silêncio do vale

antes que as montanhas ecoem

sua própria voz transfigurada em voz da natureza.

 

Este silêncio é agora meu companheiro.

Pergunto: de que a minha alma morreu?

E o silêncio responde

se sua alma morreu, de quem é a vida

que você está vivendo e

quando foi que você se tornou essa pessoa?

 

Echoes

  

1.

Once I could imagine my soul

I could imagine my death.

When I imagined my death

my soul died. This

I remember clearly.

 

My body persisted.

Not thrived, but persisted.

Why I do not know.

 

2.

When I was still very young

my parents moved to a small valley

surrounded by mountains

in what was called the lake country.

From our kitchen garden

you could see the mountains,

snow covered, even in summer.

 

I remember peace of a kind

I never knew again.

 

Somewhat later, I took it upon myself

to become an artist,

to give voice to these impressions.

 

3.

The rest I have told you already.

A few years of fluency, and then

the long silence, like the silence in the valley

before the mountains send back

your own voice changed to the voice of nature.

 

This silence is my companion now.

I ask: of what did my soul die?

and the silence answers

if your soul died, whose life

are you living and

when did you become that person?

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

  

Averno – 5/18

 

 

O Lago da cratera

 

Houve uma guerra entre o bem e o mal.

Decidimos que o corpo era do bem.

 

O que fez a morte ser do mal.

Com isso a alma tornou-se

completamente hostil à morte.

 

Como um soldado de infantaria disposto

a servir a um grande guerreiro, a alma

quis se aliar ao corpo.

 

voltou-se contra as trevas,

contra as formas de morte

que conhecia.

 

De onde vem a voz

que diz suponha que a guerra

é do mal, que diz

 

suponha que o corpo fez isto conosco,

fez-nos ter medo do amor –

  

Crater Lake

 

There was a war between good and evil.

We decided to call the body good.

 

That made death evil.

It turned the soul

against death completely.

 

Like a foot soldier wanting

to serve a great warrior, the soul

wanted to side with the body.

 

It turned against the dark,

against the forms of death

it recognized.

 

Where does the voice come from

that says suppose the war

is evil, that says

 

suppose the body did this to us,

made us afraid of love –

 

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

Averno – 04/18

 

Prisma

 

1.

Quem pode dizer o que é o mundo? O mundo

é um fluxo, portanto

indecifrável, os ventos se deslocando,

as grandes placas se deslocando e se alterando, invisíveis –

 

2.

Sujeira. Fragmentos

de rocha porosa. Nelas

o vulnerável coração constrói

uma casa, memória: os jardins

funcionais, de pequena escala, as camas

úmidas à beira mar –

 

3.

Assim como acolhemos

um inimigo, por estas janelas

acolhemos

o mundo:

 

aqui está a cozinha, aqui está o estúdio assombreado.

 

Significando: aqui o dono sou eu.

 

4.

Quando você se apaixona, diz minha irmã,

é como se fosse atingida por um raio.

 

Ela falava esperançosamente,

para atrair a atenção do raio.

 

Lembrei-lhe que ela estava repetindo a mesma

receita de nossa mãe, sobre a qual ela e eu

 

discutíamos na infância, quando sentíamos

que aquilo que observávamos nos adultos

 

eram os efeitos não de um raio

mas de uma cadeira elétrica.

 

5.

Enigma:

Por que minha mãe era feliz?

 

Resposta:

Ela casou com meu pai.

 

6.

“Vocês meninas”, disse minha mãe, “deveriam casar

com alguém como seu pai.”

 

Era um comentário. Outro era,

“Não há ninguém como seu pai.”

 

7.

Vindas das nuvens perfuradas, contínuas linhas prateadas.

 

Inverossímil

amarelo da hamamélis, veias

de mercúrio que eram os cursos dos rios –

 

Depois a chuva de novo, apagando

as pegadas na terra umedecida.

 

8.

A sugestão era, tem-se que abandonar

a infância. A palavra “casar” era um sinal.

Você também poderia considerá-la como conselho estético;

a voz da criança era desagradável,

sem nenhum registro baixo.

 

A palavra era um código, misterioso, como a pedra de Roseta.

Era também uma placa de estrada, um alerta.

Você poderia levar algumas poucas coisas como um dote.

Você poderia levar a parte de você que pensa.

“Casar” significava você deve manter essa parte calada.

 

9.

Uma noite de verão. Lá fora,

sons de uma tempestade de verão. Depois o céu clareando.

Na janela, constelações de verão.

 

Estou na cama. Esse homem e eu,

estamos suspensos na estranha calma

a que em geral o sexo induz. Mais sexo induz.

Nostalgia, o que é isso? Desejo, o que é isso?

 

Na janela, constelações de verão.

Outrora, eu conseguia nomeá-las.

 

10.

Formas

abstratas, padrões.

A luz da mente. O frio, exigindo

fogos de equidade, curiosamente

 

bloqueados pela terra, coesos, reluzindo

no ar e na água,

 

os elaborados

sinais que diziam agora plante, agora colha –

eu conseguia nomeá-los, tinha nomes para eles:

duas coisas diferentes.

 

11.

Coisas fabulosas, estrelas.

Quando era criança, eu sofria de insônia.

Em noites de verão, meus pais me deixavam sentar junto ao lago;

levava o cachorro como companhia.

 

Eu disse “sofria”? Essa era a maneira de meus pais explicarem

o que lhes parecia

inexplicável: melhor “sofria” que “preferia viver com o cachorro”.

 

Escuridão. Silêncio que anulava a condição de ser mortal.

Os barcos amarrados subindo e descendo.

Com a lua cheia, por vezes eu podia ler os nomes das garotas

pintados nas laterais dos barcos:

Ruth Ann, Sweet Izzy, Peggy My Darling

Não iriam a lugar nenhum, aquelas garotas.

Não havia nada a se aprender com elas.

 

Estendi minha jaqueta na areia úmida,

O cachorro se enroscou ao meu lado.

Meus pais não conseguiam ver a vida em minha cabeça;

quando eu a transcrevi, eles corrigiram a grafia.

 

Sons vindos do lago. Os sons consoladores, inumanos

sons de água lambendo o cais, o cachorro escavando longe

nas ervas daninhas –

 

12.

A missão era se apaixonar.

Os detalhes corriam por sua conta.

A segunda parte era

incluir no poema certas palavras,

palavras extraídas de um texto específico

sobre outro assunto em geral.

 

13.

Chuva primaveril, depois uma noite de verão.

Uma voz de homem, depois uma voz de mulher.

 

Você cresceu, foi atingida por um raio.

Ao abrir os olhos, viu-se para sempre atada ao seu grande amor.

 

Isso só aconteceu uma vez. Depois você foi cuidada,

sua história estava terminada.

 

Aconteceu uma só vez. Ser atingida por um raio foi como ser vacinada;

pelo resto de sua vida você estaria imune,

você estaria aquecida e seca.

 

A não ser que o choque não fosse bastante profundo.

Então você não estaria vacinada, você estaria viciada.

 

14.

A missão era se apaixonar.

O autor era feminino.

O ego deveria ser chamado de alma.

 

A ação acontecia no corpo.

As estrelas representavam tudo o mais: sonhos, a mente etc.

 

O bem-amado foi identificado

com o eu em narcisista projeção.

A mente era a subtrama. Seguia-se uma tagarelice interminável.

 

O tempo era experimentado

menos como narrativa que ritual.

O que era repetido tinha peso.

 

Certos finais eram trágicos, portanto aceitáveis.

Tudo o mais era fracasso.

 

15.

Engano. Mentiras. Adornos a que chamamos

 

hipóteses –

 

Havia demasiadas estradas, demasiadas versões.

Havia demasiadas estradas, nenhum caminho –

 

E ao término?

 

16.

Liste as implicações de “encruzilhadas”.

 

Resposta: uma história com moral.

 

Dê um contraexemplo:

 

17.

O eu se findou e o mundo começou.

Eram de igual tamanho,

proporcionais,

um espelhou o outro.

 

18.

Esta era a charada: por que não poderíamos viver na mente.

 

A resposta era esta: a barreira da terra se intrometeu.

 

19.

O quarto estava silencioso.

Isto é, o quarto estava silencioso, mas os amantes estavam respirando.

 

Do mesmo modo, a noite estava escura.

Ela estava escura, mas as estrelas brilhavam.

 

O homem na cama era um de vários homens

a quem doei meu coração. A dádiva do eu,

isso não tem limite.

Sem limite, ainda que recorrente.

 

O quarto estava silencioso. Era um absoluto,

como a noite escura.

 

20.

Uma noite no verão. Sons de um temporal de verão.

As grandes placas se deslocando e se modificando, invisíveis  –

 

E no quarto escuro, os amantes dormindo nos braços um do outro.

 

Nós somos, cada um de nós, aquele que acorda primeiro,

Que se agita e vê, lá na primeira alvorada,

o estranho.

 

 

 

Prism

 

 

1.
Who can say what the world is? The world
is in flux, therefore
unreadable, the winds shifting,
the great plates invisibly shifting and changing –

 

2.
Dirt. Fragments
of blistered rock. On which
the exposed heart constructs
a house, memory: the gardens
manageable, small in scale, the beds
damp at the sea’s edge –

 

3.
As one takes in
an enemy, through these windows
one takes in
the world:

 

here is the kitchen, here is the darkened study.

 

Meaning: I am master here.

 

4.
When you fall in love, my sister said,
it’s like being struck by lightning.

 

She was speaking hopefully,
to draw the attention of the lightning.

 

I reminded her that she was repeating exactly
our mother’s formula, which she and I

 

had discussed in childhood, because we both felt
that what we were looking at in the adults

 

were the effects not of lightning
but of the electric chair.

 

5.
Riddle:
Why was my mother happy?

 

Answer:
She married my father.

 

6.
“You girls,” my mother said, “should marry
someone like your father.”

 

That was one remark. Another was,
“There is no one like your father.”

 

7.
From the pierced clouds, steady lines of silver.

 

Unlikely
yellow of the witch hazel, veins
of mercury that were the paths of the rivers –

 

Then the rain again, erasing
footprints in the damp earth.

 

8.
The implication was, it was necessary to abandon
childhood. The word “marry” was a signal.
You could also treat it as aesthetic advice;
the voice of the child was tiresome,
it had no lower register.
The word was a code, mysterious, like the Rosetta stone.
It was also a roadsign, a warning.
You could take a few things with you like a dowry.
You could take the part of you that thought.
“Marry” meant you should keep that part quiet.

 

9.
A night in summer. Outside,
sounds of a summer storm. Then the sky clearing.
In the window, constellations of summer.

 

I’m in a bed. This man and I,
we are suspended in the strange calm
sex often induces. Most sex induces.
Longing, what is that? Desire, what is that?

 

In the window, constellations of summer.
Once, I could name them.

 

10.
Abstracted
shapes, patterns.
The light of the mind. The cold, exacting
fires of disinterestedness, curiously

 

blocked by earth, coherent, glittering
in air and water,

 

the elaborate
signs that said now plant, now harvest–

I could name them, I had names for them:
two different things.

 

11.
Fabulous things, stars.

 

When I was a child, I suffered from insomnia.
Summer nights, my parents permitted me to sit by the lake;
I took the dog for company.

 

Did I say “suffered”? That was my parents’ way of explaining
tastes that seemed to them
inexplicable: better “suffered” than “preferred to live with the dog.”

 

Darkness. Silence that annulled mortality.
The tethered boats rising and falling.
When the moon was full, I could sometimes read the girls’ names
painted to the sides of the boats:
Ruth Ann, Sweet Izzy, Peggy My Darling

They were going nowhere, those girls.
There was nothing to be learned from them.

 

I spread my jacket in the damp sand,
The dog curled up beside me.
My parents couldn’t see the life in my head;
when I wrote it down, they fixed the spelling.

 

Sounds of the lake. The soothing, inhuman
sounds of water lapping the dock, the dog scuffing somewhere
in the weeds–

 

12.
The assignment was to fall in love.
The details were up to you.
The second part was
to include in the poem certain words,
words drawn from a specific text
on another subject altogether.

 

13.
Spring rain, then a night in summer.
A man’s voice, then a woman’s voice.

 

You grew up, you were struck by lightning.
When you opened your eyes, you were wired forever to your true love.

 

It only happened once. Then you were taken care of,
your story was finished.

 

It happened once. Being struck by lightning was like being vaccinated;
the rest of your life you were immune,
you were warm and dry.

 

Unless the shock wasn’t deep enough.
Then you weren’t vaccinated, you were addicted.

 

14.
The assignment was to fall in love.
The author was female.
The ego had to be called the soul.

 

The action took place in the body.
Stars represented everything else: dreams, the mind, etc.

 

The beloved was identified
with the self in a narcissistic projection.
The mind was the subplot. It went nattering on.

 

Time was experienced
less as narrative than ritual.
What was repeated had weight.

 

Certain endings were tragic, thus acceptable.
Everything else was failure.

 

15.
Deceit. Lies. Embellishments we call


hypotheses–

There were too many roads, to many versions.
There were too many roads, not one path–

 

And at the end?

 

16.
List the implications of “crossroads.”

 

Answer: a story that will have a moral.

 

Give a counter-example:

 

17.
The self ended and the world began.
They were of equal size,
commensurate,
one mirrored the other.

 

18.
The riddle was: why couldn’t we live in the mind.

 

The answer was: the barrier of the earth intervened.

 

19.
The room was quiet.
That is, the room was quiet, but the lovers were breathing.

 

In the same way, the night was dark.
It was dark, but the stars shone.

 

The man in bed was one of several men
to whom I gave my heart. The gift of the self,
that is without limit.
Without limit, though it recurs.

 

The room was quiet. It was an absolute,
like the black night.

 

20.
A night in summer. Sounds of a summer storm.
The great plates invisibly shifting and changing–

 

And in the dark room, the lovers sleeping in each other’s arms.

 

We are, each of us, the one who wakens first,
who stirs first and sees, there in the first dawn,
the stranger.

 

 


Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

  Argonautas   E se a alma deve conhecer-se a si mesma ela deve voltar os olhos para outra alma: * o estrangeiro e inimigo, vim...