sábado, 8 de agosto de 2020

Gabriel Garcia Márquez (Colômbia: 1927 – 2014)

 

Se alguém te chama à porta, amiga minha

  

Se alguém te chama à porta, amiga minha,

e algo em teu sangue pulsa e não repousa

e em teu caule de água, temerosa,

a fonte é uma líquida harmonia.

 

Se alguém te chama à porta e ainda fias

sobrar-te tempo para ser formosa

e cabe todo abril em uma rosa

e pela rosa se dessangra o dia

 

Se alguém te chama à porta na alvorada

sonora de pombos e badaladas

e ainda crês na dor e na poesia

 

Se ainda a vida é verdadeira e o verso existe.

Se alguém te chama à porta e tu estás triste,

abre, pois é o amor, amiga minha.

  

Si alguien llama a tu puerta, amiga mía

  

Si alguien llama a tu puerta, amiga mía,

y algo en tu sangre late y no reposa

y en tu tallo de agua, temblorosa,

la fuente es una líquida de armonía.

 

Si alguien llama a tu puerta y todavía

te sobra tiempo para ser hermosa

y cabe todo abril en una rosa

y por la rosa desangra el día

 

Si alguien llama a tu puerta una mañana

sonora de palomas y campanas

y aún crees en el dolor y en la poesía

 

Si aún la vida es verdad y el verso existe.

Si alguien llama a tu puerta y estás triste,

abre, que es el amor, amiga mía.

 

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Olga Marie Cabral (Trinidad e Tobago: 1909 – EUA, 1997)

 A música de Villa-Lobos

  

Alguém fala uma língua perdida.

É a música de Villa-Lobos.

Tento lembrar: onde foi que

nasci? E em que continente

precocemente estraçalhado? Devo ter sido

uma sacerdotisa entre os caimões

velando a joia que é o olho do

deus crocodilo. Devo ter navegado

por orinocos de diamantes, mares de cocos,

aluguei para sempre o equador e aprendi

minha língua ancestral.

 

Mas só tenho umas velhas capas de chuva

num baú cheio de aranhas

para lembrar meus ancestrais.

Eles não me deixaram

nada, e eu me esqueci

que aquela é a terra de meu nascimento

onde o sol em seu terno de espelhos

avistei por uma só vez com meu olho de feto.

 

Mas na música de Villa-Lobos

um deus com uma torre de verdes fachadas

com pressa avança pelas cidades

de subsolo congelado, e sou de novo

convocada aos jardins do jaguar

vigiada por quedas d’água

onde as gentes dos beija-flores se divertem

longe das auroras frias do norte.

 

Para além da modernidade, somos avisados

em duas línguas pelos cartazes que dizem

a mesma coisa de modo diferente. No bosque

amarelo onde dois caminhos divergem, escolhemos

a ambos, não por arrogância mas por

indecisão, o que, como montar

dois cavalos num só tempo, exige

longas pernas, coxas fortes, e descuidada boa

disposição. O mundo dá uma espiada, cada folha

ampliada, enquanto provamos essa nova sopa

de bar, o sanduíche do desjejum. Cartazes

em duas línguas elogiam bebidas e políticas

de partido. O mundo dá uma espiada e pedaços

de discurso fogem de seus gráficos para perambular

pelo bosque amarelo. É tarde mas logo

o mundo será diferente.

  

The Music of Villa-Lobos

  

Someone is speaking a lost language.

It is the music of Villa-Lobos.

I try to remember: where was I

born? And from what continent

untimely torn? I might have been

a priestess among the caymans

guarding the eye-jewel of the

crocodile god. I might have sailed

orinocos of diamonds, seas of coconuts,

leased the equator for life and learned

my ancestral language.

 

But I have only some old sleeves of rain

in a trunk with spiders

to remember my ancestors by.

They have left me

nothing, and I have forgotten

that is land of my birth

where the sun in his suit of mirrors

was seen once only with my vast fetal eye.

 

But in the music of Villa-Lobos

a god with a tower of green faces

comes striding across cities

of permafrost, and I am summoned

once again to the jaguar gardens

guarded by water falls

where the hummingbird people are at play

far from the cold auroras of the north.

 

 

Beyond modernity, we are warned

by placards in two languages that say

the same thing differently. In the yellow

wood where two roads diverge, we choose

both, not from arrogance but from

indecisiveness, which, like riding

two horses at one time, requires long

legs, strong thighs, and careless good

nature. The world flicks by, each leaf

magnified, as we sample this new bar

soap, that breakfast sandwich. Placards in

two languages praise soft drinks and party

politics. The world flicks by and bites

of speech elude their diagrams to hover

in the yellow wood. It is late and soon

the world will be different.

 

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Alí Chumacero (México: 1918 – 2010)

 

A uma flor submersa

  

Cai a rosa, cai

atravessando a água,

lenta pelo cristal de sombra

em que seu talo afoga;

descendo imperceptível,

clara, sem peso, pura

e as ondas a cobrem, a desnudam,

a devolvem a seu aroma

fazem-na velejadora pela seiva

que da terra nasce

e sobe trêmula,

extravasa a ternura de seu tato

em verde aprisionado,

e por fim desabrocha em flor

como o escravo que de noite sonha

em uma luz que rompa

as origens de seu sonho,

como o desnudo cervo, quando a fonte brota,

que irriga com seu vapor a corrente

destroçando sua imagem.

Cai mais ainda, cai

mais longe sua seiva,

sobre a lápide do sepulcro,

no olhar de um canário ferido

que se atreve a um último ruflar de asas

para embrenhar-se mudo por entre as sombras.

Cai sobre minha mão

inclinando-se mais e mais ao tato,

cede a sua suavidade de manto mortuário

e como uma pálida lembrança

o anjo ansioso

perde um rastro de seu aroma,

deixa uma pegada pé que não pousa

e gesso que se apaga no silêncio.

  

A uma flor inmersa

  

Cae la rosa, cae

atravesando el agua,

lenta por el cristal de sombra

en que su tallo ahoga;

desciende imperceptible,

clara, ingrávida, pura

y las olas la cubren, la desnudan,

la vuelven a su aroma,

hácenla navegante por la savia

que de la tierra nace

y asciende temblorosa,

desborda la ternura de su tacto

en verde prisionero,

y al fin revienta en flor

como el esclavo que de noche sueña

en una luz que rompa

los orígenes de su sueño,

como el desnudo ciervo, cuando la fuente brota,

que moja con su vaho la corriente

destrozando su imagen.

Cae más aún, cae

más allá de su savia,

sobre la losa del sepulcro,

en la mirada de un canario herido

que atreve el último aletazo

para internarse mudo entre las sombras.

Cae sobre mi mano

inclinándose más y más al tacto,

cede a su suavidad de sábana mortuoria

y como un pálido recuerdo

o ángel desalado

pierde una estela de su aroma,

deja una huella pie que no se posa

y yeso que se apaga en el silencio.


quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Ali Chumacero (México: 1918 – 2010)

 Jardim de cinzas

 

Haver crido em alguma vez

vendo a noite desabar no mundo

e uma tristeza no coração entornada,

e depois esse corpo que pressionam nossas mãos:

a mulher que sorri

e sobre o leito nos transforma

em cadáver mutilado na lembrança,

como mentira ínfima

ou rosa há séculos vivendo no silêncio.

E sem dúvida nela nos perdemos,

mortos contra seus braços, em seus mistérios mudos

como uma voz que ninguém escuta,

frutos já de cadáver de amor, petrificados;

seu prazer nos sustém sobre um enganoso mundo,

aí nos consumimos prosseguindo

na vã tarefa interminável,

e logo não cremos em nada,

somos desolação ou cruel lembrança,

vazio que não encontra mar nem forma,

em um cruel lamento de ataúdes.

  

Jardín de ceniza

 

Haber creído alguna vez

viendo la noche desplomarse al mundo

y una tristeza al corazón volcada,

y después ese cuerpo que oprimen nuestras manos:

la mujer que sonríe

y sobre el lecho se nos vuelve

cadáver mutilado en el recuerdo,

como mentira ínfima

o rosa desde siglos viviendo en el silencio.

Y sin embargo en ella nos perdemos,

muertos contra sus brazos, en su misterio mudos

tal una voz que nadie escucha,

frutos ya de cadáver de amor, petrificados;

su placer nos sostiene sobre un mentido mundo,

ahí nos consumimos continuando

en la vana tarea interminable,

y luego no creemos nada,

somos desolación o cruel recuerdo,

vacío que no encuentra mar ni forma,

rumor desvanecido en un duro lamento de ataúdes.


terça-feira, 4 de agosto de 2020

Ali Chumacero (México: 1918 – 2010)


 

Espelho e água

 

Tua alma em mim deixou sua fria imagem,

apenas lembrança do que vivias,

e se ao espelho olho e me reflito

ali encontro teus olhos, teu silêncio de cera

com um repouso de desanimado alento,

como se caindo areias

ou um tropel de lembranças

sobre minha pele, com sossegado passo

rumo ao cristal caíram.

Não caem folhas como frases mortas,

e meus olhos em ti não foram rosas

afogadas em teu aroma?

Se a água olhas, olhas

meu coração ornado de sepulcros

sob as ondas que o movem,

crescido entre as ruínas de teu nome,

entre perder-se na morte ou florescer

como uma eterna espera ou o lamento

de um Adão impassível que sonhava

contigo e teu enganoso Paraíso.

Porque ao olhar-te contra a água, olhas

meu pensamento em tua alma suspenso.

  

Espejo y agua

 

Tu alma en mí dejó su fría imagen,

sólo recuerdo de lo que vivías,

y si al espejo miro y me reflejo

allí encuentro tus ojos, tu silencio de cera

con un reposo de apagado aliento,

como si descendiendo arenas

o un tropel de recuerdos

sobre mi piel, con sosegado paso

hacia el cristal cayeran.

¿No caen hojas como frases muertas,

y mis ojos en ti no fueron rosas

ahogadas en tu aroma?

Si al agua miras, mira

mi corazón ornado de sepulcros

bajo las olas que lo mueven,

crecido entre las ruinas de tu nombre,

entre perderse en muerte o florecer

como una eterna espera o el lamento

de un Adán impasible que soñaba

contigo y tu mentido Paraíso.

Porque al mirarte contra el agua, miras

mi pensamiento en tu alma suspendido.


domingo, 2 de agosto de 2020

Ali Chumacero (México: 1918 – 2010)


 

A uma estátua

  

Cessa tua voz e morra

sobre teus lábios minha alegria.

Não haverá palavra que em tua pele levante

nem um incerto sabor de brisa assombreada

como a lembrança que em meus olhos deixa

o passo do teu alento,

porque vives imersa em teu silêncio,

impenetrável aos meus sentidos

e se minhas mãos em tua pela pousam

inclinas a cabeça,

navegas em um tempo que escuta teu pulsar,

e entre suas águas, inundando-te

sob a suave forma de seu espelho,

estás abandonada,

próxima a ser violenta permanência,

inimiga de esquecimentos,

quase perdida em íntimo naufrágio

e sim mais vontade

que a crueldade entre teus lábios muda.

 

Toma teu corpo agora, volve o rosto,

Olha-te assim, segura e colapsada

em um poço onde mora o medo,

onde há apenas imagens

e o corpo deixa sua encarcerada dor

para entrar na fonte de sua origem.

Verás nascer o sonho de teu corpo

submerso em pureza por toda a vida,

todo impulso dissimulado em puro movimento

e toda forma sustentada em puro resplendor

já não será a flor senão seu aroma,

já não serás tu mesma.

 

Não importa mais se de repente morres

e percas toda sombra

caindo em escombros amparada,

se por inteiro tu pereças,

náufraga de teu próprio mar,

presa dentro de ti, vencida

como um anjo que assolado pelo fogo

lançasse sua impotência,

e apenas um desengano

entre rochas de esquecimento e trevas

deixem teus lábios mudos

e a pureza inútil de teu corpo.

 

Morre, desnuda forma,

gelo que mata minha alegria,

crueldade vertida em mármore fatigado;

morre já, e deixa que contemple

a luta de teu corpo com a sombra,

o debater inútil de teus lábios

contra o vazio esquecimento de tuas ruínas,

que em ataúde ou tumbas dormes

entre um querer ou não de teus sentidos.

  

A una estatua

  

Cesa tu voz y muere

sobre tus labios mi alegría.

No habrá palabra que en tu piel levante

ni un incierto sabor de brisa oscurecida

como el recuerdo que en mis ojos deja

el paso de tu aliento,

porque vives inmersa en tu silencio,

impenetrable a mis sentidos

y si mis manos en tu piel se posan

inclinas la cabeza,

navegas en un tiempo que escucha tu latido,

y entre sus aguas, inundándote

bajo la tersa forma de su espejo,

estás abandonada,

próxima a ser violenta permanencia,

enemiga de olvidos,

casi perdida en íntima zozobra

y sin más voluntad

que la crueldad entre tus labios muda.

 

Toma tu cuerpo ahora, vuelve el rostro,

mírate así, segura y desplomada

hacia un estanque donde mora el miedo,

donde sólo hay imágenes

y el cuerpo deja su cautivo duelo

para entrar en la fuente de su origen.

Verás nacer el sueño de tu cuerpo

anegando en pureza toda vida,

todo impulso negado en puro movimiento

y toda forma sostenida en puro resplandor

ya no será la flor sino su aroma,

ya no serás tú misma.

 

No importa entonces que de pronto mueras

y pierdas toda sombra

quedándote en escombros defendida,

si toda tú pereces,

náufraga de tu propio mar,

presa dentro de ti, vencida

como ángel que asolado por el fuego

lanzara su impotencia,

y sólo un desengaño

entre rocas de olvido y de tinieblas

dejan tus labios mudos

y la pureza inútil de tu cuerpo.

 

Muere, desnuda forma,

hielo que mata mi alegría,

crueldad vertida en mármol fatigado;

muere ya, y deja que contemple

la lucha de tu cuerpo con la sombra,

el debatir inútil de tus labios

contra el vacío olvido de tus ruinas,

que en ataúd o tumbas duermes

entre un querer o no de tus sentidos.



sábado, 1 de agosto de 2020

Julio Cortázar (Argentina: 1914 – 1984)


O breve amor



Com que pura doçura

levanta-me do leito em que sonhava

profundas plantações perfumadas,



passeia os dedos por minha pele e me desenha

no espaço, instável, até que o beijo

pouse curvo e recorrente



para que o fogo lento comece

a dança cadenciada da fogueira

tecendo-se em rajadas, em hélices,

ir e vir de um furação de fumo –



(por que, a seguir,

o que resta de mim

é apenas um afogar-se entre as cinzas

sem um adeus, sem nada mais que o gesto

de libertar as mãos?)


El breve amor


Con qué tersa dulzura

me levanta del lecho en que soñaba

profundas plantaciones perfumadas,



me pasea los dedos por la piel y me dibuja

en el espacio, en vilo, hasta que el beso

se posa curvo y recurrente



para que a fuego lento empiece

la danza cadenciosa de la hoguera

tejiédose en ráfagas, en hélices,

ir y venir de un huracán de humo



(por qué, después,

lo que queda de mí

es sólo un anegarse entre las cenizas

sin un adiós, sin nada más que el gesto

de liberar las manos?)

Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

  Argonautas   E se a alma deve conhecer-se a si mesma ela deve voltar os olhos para outra alma: * o estrangeiro e inimigo, vim...