Averno – 14/18
Averno
1.
Você morre
quando seu espírito morre.
Caso contrário, você vive.
Você talvez não lide bem com isso, mas continua –
algo sobre o qual você não tem nenhuma escolha.
Quando digo
isso a meus filhos
eles não prestam atenção.
Os velhos, pensam eles –
é isso o que sempre fazem:
falam sobre coisas que ninguém pode ver
para esconder todos os neurônios que estão perdendo.
Piscam um para o outro;
escute o velho, falando de espírito
por não mais se lembrar da palavra para cadeira.
É terrível
estar só.
Não me refiro
a viver só –
estar só, onde ninguém escuta você.
Lembro da
palavra para cadeira.
Quero dizer – só não estou mais interessada.
Acordo
pensando
você tem de se preparar.
Logo o espírito vai desistir –
todas as cadeiras do mundo não irão ajudá-la.
Sei o que dizem quando estou fora
da sala.
Eu deveria procurar alguém, eu deveria estar tomando
um dos novos remédios para depressão.
Posso ouvi-los, aos sussurros, planejando como compartilhar o custo.
E quero gritar
vocês todos vocês estão vivendo em um sonho.
Já é ruim,
pensam eles, ver-me cair aos pedaços.
Já é ruim sem esses sermões que ouvem todo dia
como se eu tivesse algum direito a essa nova informação.
Bem, eles têm
o mesmo direito.
Estão vivendo
em um sonho, e eu estou me preparando
para ser um fantasma. E quero gritar
a névoa se dissipou –
É como uma nova vida:
você não se interessa pelo resultado;
você sabe o resultado.
Pense nisto:
sessenta anos sentada em cadeiras. E agora o espírito mortal
buscando tão sem rodeios, tão sem receios –
Levantar o
véu.
Ver a quê você está dizendo adeus.
2
Não voltei
por muito tempo.
O outono havia terminado quando vi o campo outra vez.
Aqui, ele termina quase antes de começar –
os velhos nem mesmo possuem roupas de verão.
O campo
estava coberto de neve, imaculado.
Não havia vestígio do que aconteceu aqui.
Você não sabia se o fazendeiro
havia replantado ou não.
Talvez ele tenha desistido e se mudado.
A polícia não prendeu a menina.
Pouco depois, disseram que ela se mudara para outro país,
algum país onde não tenham campos.
Um desastre
como esse
não deixa marcas na terra.
E pessoas como aquelas – elas pensam que isso lhes oferece
um novo recomeço.
Permaneci por
muito tempo, fitando o nada.
Um instante depois, percebi como escurecera, como estava frio.
Há muito
tempo – não imagino desde quando.
Se a terra decide não ter memória
de certo modo o tempo parece não ter sentido.
Mas não para
meus filhos. Andam atrás de mim
para que eu faça um testamento; estão cismados que o governo
levará tudo.
Deviam vir
comigo um dia
ver esse
campo sob a crosta de neve.
A história
toda está escrita aqui.
Nada: não
tenho nada a lhes dar.
Essa é a
primeira parte.
A segunda é:
não quero ser cremada.
3.
De um lado, a
alma vagueia.
Do outro,
seres humanos amedrontados.
Entre eles, o
fosso da desesperança.
Algumas
jovens me perguntam
se estarão
seguras perto do Averno –
Estão com
frio, querem seguir mais um pouco rumo ao sul.
E uma delas
diz, fazendo piada, mas não muito ao sul –
Digo, tão seguro quanto em
qualquer lugar,
o que as
deixam felizes.
O que isso
quer dizer é que nada é seguro.
Você toma um
trem, você desaparece.
Você escreve
seu nome na janela, você desaparece.
Há lugares
como esses por toda parte,
lugares nos
quais você entra quando é jovem
e deles nunca
retorna
Como o campo,
aquele que queimou.
Em seguida, a
menina desapareceu.
Talvez ela
não tenha existido,
seja como for
não temos prova.
Tudo o que
sabemos é:
o campo
queimou.
Mas nós vimos aquilo.
Temos de
acreditar na menina,
no que ela
disse. De outro modo
são apenas
forças que não compreendemos
governando a
terra.
As jovens
estão felizes, pensando em suas férias.
Não tomem o
trem, eu digo.
Escrevem seus
nomes no vidro enevoado do trem.
Quero lhes
dizer, vocês são boas garotas,
tentando
deixar seus nomes para trás.
4.
Passamos o
dia todo
navegando
pelo arquipélago,
as minúsculas
ilhas que faziam
parte da península
até que se
despedaçaram
nos
fragmentos que você vê agora
flutuando na
água do mar do norte.
Elas me
pareciam seguras,
penso que em
razão de ninguém poder viver lá.
Mais tarde
nos sentamos na cozinha
observando o
início do anoitecer e depois a neve.
Primeiro uma,
depois a outra.
Permanecemos
em silêncio, hipnotizadas pela neve
como se uma
espécie de turbulência
que antes
estivera oculta
se tornasse
visível,
algo dentro
da noite
exposto agora
–
Em nosso
silêncio, estamos nos fazendo
aquelas
perguntas que amigos que confiam um no outro
fazem após
grande fadiga,
um esperando
que o outro saiba mais.
E quando
assim não é, esperando
que as
impressões partilhadas levem a uma súbita compreensão.
Há algum proveito em impormos a nós mesmos
a percepção de que devemos morrer?
É possível deixar passar a oportunidade de
nossa vida?
Perguntas
como essa.
A neve caía
pesada. A noite escura
transmutada em agitado ar
esbranquiçado.
Algo que não
víramos se revelou.
Porém o
significado não foi desvelado.
5.
Após o
primeiro inverno, o campo começou a germinar.
No entanto,
não mais havia sulcos alinhados.
A cheiro do
trigo persistia, uma espécie de aroma aleatório
mesclado com
ervas variadas, para as quais
nada de útil
aos humanos fora até então encontrado.
Foi
intrigante – ninguém sabia
para aonde o
fazendeiro fora.
Alguns
pensaram que morrera.
Alguém disse
que ele possuía uma filha na Nova Zelândia,
para aonde
fora criar
netos em vez
trigo.
A natureza,
diga-se, não é como nós;
ela não
possui um armazém de lembranças.
O campo não
passa a ter medo de fósforos,
de jovens.
Muito menos se lembra
de sulcos.
Ele é aniquilado, queimado,
e depois de
um ano está novamente vivo
como se nada
invulgar houvesse acontecido.
Da janela o
fazendeiro fixa a distância.
Talvez na
Nova Zelândia, talvez em outro lugar.
E pensa: minha vida está acabada.
Sua vida se
expressou naquele campo;
ele não mais
acredita em poder extrair algo
da terra. A
terra, ele pensa,
derrotou-me.
Lembra-se do
dia em que o campo queimou,
não por acaso, ele pensa.
Algo em seu
íntimo profundo disse: posso conviver com isso,
Posso enfrentar isso depois de um tempo.
O momento
terrível foi a primavera depois do trabalho perdido,
quando
compreendeu que a terra
não sabia
como se lamentar, que em vez disso ela mudaria.
E seguiria existindo sem ele.
Averno
1.
You die when your spirit dies.
Otherwise, you live.
You may not do a good job of it, but you go on —
something you have no choice about.
When I tell this to my children
they pay no attention.
The old people, they think —
this is what they always do:
talk about things no one can see
to cover up all the brain cells they’re losing.
They wink at each other;
listen to the old one, talking about the spirit
because he can’t remember anymore the word for chair.
It is terrible to be alone.
I don’t mean to live alone —
to be alone, where no one hears you.
I remember the word for chair.
I want to say — I’m just not interested anymore.
I wake up thinking
you have to prepare.
Soon the spirit will give up —
all the chairs in the world won’t help you.
I know what they say when I’m out of the room.
Should I be seeing someone, should I be taking
one of the new drugs for depression.
I can hear them, in whispers, planning how to divide the cost.
And I want to scream out
you’re all of you living in a dream.
Bad enough, they think, to watch me fall apart.
Bad enough without this lecturing they get these days
as though I had any right to this new information.
Well, they have the same right.
They’re living in a dream, and I’m preparing
to be a ghost. I want to shout out
the mist has cleared —
It’s like some new life:
you have no stake in the outcome;
you know the outcome.
Think of it: sixty years sitting in chairs. And now the mortal spirit
seeking so openly, so fearlessly —
To raise the veil.
To see what you’re saying goodbye to.
2.
I didn’t go back for a long time.
When I saw the field again, autumn was finished.
Here, it finishes almost before it starts —
the old people don’t even own summer clothing.
The field was covered with snow, immaculate.
There wasn’t a sign of what happened here.
You didn’t know whether the farmer
had replanted or not.
Maybe he gave up and moved away.
The police didn’t catch the girl.
After awhile they said she moved to some other country,
one where they don’t have fields.
A disaster like this
leaves no mark on the earth.
And people like that — they think it gives them
a fresh start.
I stood a long time, staring at nothing.
After a bit, I noticed how dark it was, how cold.
A long time — I have no idea how long.
Once the earth decides to have no memory
time seems in a way meaningless.
But not to my children. They’re after me
to make a will; they’re worried the government
will take everything.
They should come with me sometime
to look at this field under the cover of snow.
The whole thing is written out there.
Nothing: I have nothing to give them.
That’s the first part.
The second is: I don’t want to be burned.
3.
On one side, the soul wanders.
On the other, human beings living in fear.
In between, the pit of disappearance.
Some young girls ask me
if they’ll be safe near Averno —
they’re cold, they want to go south a little while.
And one says, like a joke, but not too far south —
I say, as safe as anywhere,
which makes them happy.
What it means is nothing is safe.
You get on a train, you disappear.
You write your name on the window, you disappear.
There are places like this everywhere,
places you enter as a young girl
from which you never return.
Like the field, the one that burned.
Afterward, the girl was gone.
Maybe she didn’t exist,
we have no proof either way.
All we know is:
the field burned.
But we saw that.
So we have to believe in the girl,
in what she did. Otherwise
it’s just forces we don’t understand
ruling the earth.
The girls are happy, thinking of their vacation.
Don’t take a train, I say.
They write their names in mist on a train window.
I want to say, you’re good girls,
trying to leave your names behind.
4.
We spent the whole day
sailing the archipelago,
the tiny islands that were
part of the penisula
until they’d broken off
into the fragments you see now
floating in the northern sea water.
They seemed safe to me,
I think because no one can live there.
Later we sat in the kitchen
watching the evening start and then the snow.
First one, then the other.
We grew silent, hypnotized by the snow
as though a kind of tubulence
that had been hidden before
was becoming visible,
something within the night
exposed now —
In our silence, we were asking
those questions friends who trust each other
ask out of great fatigue,
each one hoping the other knows more
and when this isn’t so, hoping
their shared impressions will amount to insight.
Is there any benefit in forcing upon
oneself
the realization that one must die?
Is it possible to miss the opportunity of one’s life?
Questions like that.
The snow was heavy. The black night
transformed into busy white air.
Something we hadn’t seen revealed.
Only the meaning wasn’t revealed.
5.
After the first winter, the field began to grow again.
But there were no more orderly furrows.
The smell of the wheat persisted, a kind of random aroma
intermixed with various weeds, for which
no human use has been as yet devised.
It was puzzling — no one knew
where the farmer had gone.
Some people thought he died.
Someone
said he had a daughter in New Zealand,
that he went there to raise
grandchildren instead of wheat.
Nature, it turns out, isn’t like us;
it doesn’t have a warehouse of memory.
The field doesn’t become afraid of matches,
of young girls. It doesn’t remember
furrows either. It gets killed off, it gets burned,
and a year later it’s alive again
as though nothing unusual has occured.
The farmer stares out the window.
Maybe in New Zealand, maybe somewhere else.
And he thinks: my life is over.
His life expressed itself in that field;
he doesn’t believe anymore in making anything
out of earth. The earth, he thinks,
has overpowered me.
He remembers the day the field burned,
not, he thinks, by accident.
Something deep within him said: I can live with this,
I can fight it after awhile.
The
terrible moment was the spring after his work was erased,
when he understood that the earth
didn’t know how to mourn, that it would change instead.
And then go on existing without him.