segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Adela Zamudio (Bolívia: 1854 – 1928)


Nascer Homem

 

Quanto trabalho ela tem,

por corrigir a torpeza

do seu marido, e na casa.

(Permita-me que me assombre).

Tão simplório como fátuo,

segue ele sendo o cabeça,

porque ele é homem!

 

Se alguns versos escreve,

de alguém esses versos são,

mas ela só os assina.

(Permita-me que me assombre).

Se esse alguém não é poeta,

por que tal suposição

porque ele é homem!

 

Uma mulher superior

não vota nas eleições,

e vota o pior velhaco.

(Permita-me que me assombre).

Desde que aprenda a assinar

pode votar um idiota,

porque ele é homem!

 

Ela deve perdoar

se o esposo for-lhe infiel;

mas ele pode vingar-se.

(Permita-me que me assombre).

Em um caso semelhante

ele pode até matar,

porque ele é homem!

 

Abate-se e bebe ou joga.

Por infortúnio ou má sorte:

ela sofre, luta e roga.

(Permita-me que me assombre).

A ela chamam de “ser frágil”

e a ele chamam de “ser forte”.

Porque ele é homem!

 

Oh, ser privilegiado,

que de perfeito e completo

gozas seguro renome!

Em todo caso, para isto,

bastou-te

nascer homem.

 

Nacer hombre

 

Cuánto trabajo ella pasa

por corregir la torpeza

de su esposo, y en la casa.

(Permitidme que me asombre).

Tan inepto como fatuo,

sigue él siendo la cabeza,

porque es hombre!

 

Si algunos versos escribe,

de alguno esos versos son,

que ella sólo los suscribe.

(Permitidme que me asombre).

Si ese alguno no es poeta,

por qué tal suposición

porque es hombre!

 

Una mujer superior

en elecciones no vota,

y vota el pillo peor.

(Permitidme que me asombre).

Con tal que aprenda a firmar

puede votar un idiota,

porque es hombre!

 

Él se abate y bebe o juega.

En un revés de la suerte:

ella sufre, lucha y ruega.

(Permitidme que me asombre).

Que a ella se llame el “ser débil”

y a él se le llame el “ser fuerte”.

Porque es hombre!

 

Ella debe perdonar

siéndole su esposo infiel;

pero él se puede vengar.

(Permitidme que me asombre).

En un caso semejante

hasta puede matar él,

porque es hombre!

 

Oh, mortal privilegiado,

que de perfecto y cabal

gozas seguro renombre!

En todo caso, para esto,

te ha bastado

nacer hombre.



sábado, 22 de agosto de 2020

Leira Araujo (Equador: 1990)

Câmara

 

Perpetuá-lo

no instante do abraço

a letargia das portas se fechando

cheirar

como caem minhas mãos como folhas

graças às estações que o perseguem.

 

Não há felicidade mais absoluta

maior sinal do trágico

temor do futuro

chagas que não queiram curar

a memória se aniquila neste passado

que sofremos para não variar o ritmo.

 

Perturba

sua boca mordendo a minha

seus dentes cortando-se pela raiz

para darem-se

a mim, à minha saliva.

 

A meu temor aos táxis vazios.

 

A meu ódio a cidade mais triste do mundo

onde nasceu

onde nascemos

para ver-nos e lançar-nos ao outro.

 

Como me vez, vejo-te eu.

 

 

Cámara

 

Perpetuarlo

en el instante del abrazo

el letargo de las puertas cerrándose.

Oler

como caen mis manos cual hojas

gracias a las estaciones que lo persiguen.

 

No hay felicidad más absoluta

mayor signo de lo trágico

temor al futuro

llagas que no querrán sanar

la memoria se aniquila en este pasado

que sufrimos para no variar el ritmo.

 

Altera

su boca mordiendo la mía

sus dientes cortándose de raíz

para darse

a mí, a mi saliva.

 

A mi temor a los taxis vacíos.

 

A mi odio a la ciudad más triste del mundo

donde nació

donde nacimos

para vernos y lanzarnos al otro.

 

Como me ves, yo te veo.

 

 

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Leira Araujo (Equador: 1990)

  

Sonhos que vêm do fundo do oceano


Há cachorros tigre querendo morder as calçadas. Eu sou a rua. Não, sou a avenida. Não, sou o semáforo que se estende sobre um pé desconhecido. Que não atravesses e que os cães levem tua carne.

Esta não é minha cidade. Essa tampouco é minha boca. Esta voz não é a que conheço e é um olhar-se no espelho e contar do um a dez do um a dez como os jogos bizarros dos meninos que começam a falar, mas ninguém os quer escutar, porque todos se esquecerão de como é não se preocupar com a pensão, como tocar o umbigo com sinceridade.

Beija-me e é um sonho seco. Nossas línguas são pedras no meio da rua. Os carros buzinam, há água na esquina. Quero saber aonde irá essa corrente. Ele também quer. Não sei por que sei o que ele quer. Do nada estou em sua cabeça mas sigo na minha. Não sou uma deusa. Não sou o inferno. Não sou o espaço. Sou a arraia de um oceano inexistente. As rochas se lançam sobre os corpos, tocarão as campainhas, invejarão as sombras que projetam as árvores tristes. Centenas de bocas sorriem pela chegada do apocalipse. Vejo-os fazendo massa nas esquinas, comendo pipoca enquanto esperam o filme do fim. Amamo-nos. Deveríamos agora cantar Cumbayá. Deveríamos  nos beijar. Que ninguém pense que isso é pornô. Que ninguém diga nada. Que se calem. Maldito seja, o que querem. Deixem de querer-se. Deixem de cheirar milho com caramelo. Que venha o mar e os leve. A mim não me levará. Nos sonhos todos somos criadores. Nos sonhos ninguém teme o verbete EU, ninguém teme o ego, ninguém justifica sua existência por meio da palavra.

Outra vez o tigre. Veio afogar-se. Outra vez um tigre e milhares de cachorros tigre. Que meigo é morrer com seus dentinhos cravados em minha perna. Está me beijando. Há riscos em minhas costas. Tomo um mar para escutar o som das conchas. Ensino a respirar ao tigre. Sob a água. Está verde. E sorri. E sorri

 

 Sueños desde el fondo del oceáno

 

Hay cachorros de tigre queriendo morder las aceras. Yo soy la calle. No, soy una avenida. No, soy el semáforo extendiéndose sobre un pie desconocido. Que no cruces y que los perros se lleven tu carne.

Esta no es mi ciudad. Ésa tampoco es mi boca. Esta voz no es la que conozco y es un mirarse al espejo y contar del uno al diez del uno al diez como los juegos descabellados de los niños que empiezan a hablar, pero nadie los quiere escuchar, porque todos olvidaron cómo es no preocuparse por la pensión, cómo tocarse el ombligo con sinceridad.

Me besa y es un sueño seco. Nuestras lenguas son piedras en medio de la calle. Los carros pitan, hay agua en la esquina. Quiero saber a dónde irá esa corriente. Él también quiere. No sé por qué sé lo que él quiere. De pronto estoy en su cabeza pero sigo en la mía. No soy una diosa. No soy el infierno. No soy el espacio. Soy la mantarraya de un océano inexistente. Las rocas se lanzarán hacia los cuerpos, tocarán los timbres, envidiarán las sombras que proyectan los árboles tristes. Cientos de bocas sonríen por la llegada del apocalipsis. Los veo hacerse masa en las esquinas, comiendo canguil mientras esperan la película del fin. Nos amamos. Deberíamos ahora cantar Cumbayá. Deberíamos besarnos. Que nadie piense que esto es porno. Que nadie diga nada. Que se callen. Maldita sea, qué les pasa. Dejen de quererse. Dejen de oler a maíz con caramelo. Que venga el mar y se los lleve. A mí no me llevará. En los sueños todos somos hacedores. En los sueños nadie teme al artículo YO, nadie teme al ego, nadie justifica su existencia a través de la palabra.

Otra vez el tigre. Ha venido a ahogarse. Otra vez un tigre y miles de cachorros de tigre. Qué tierno es morir con sus dientecillos clavándose en mi pierna. Me está besando. Hay rayas en mi espalda. Tomo un mar para escuchar el sonido de las conchas. Le enseño a respirar al tigre. Bajo el agua. Está verde. Y sonríe. Y sonríe.

 

 

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Ileana Espinel Cedeño (Equador: 1933 – 2001)

 

Quero-te

  

Quero-te porque tens tudo o que não tenho:

um sorriso vago que amanhece em teu rosto

como o orvalho brando,

a atitude frágil, lânguida como meu tédio,

o coração vestido, submergido o sangue

e a alma verde.

Uma vida para viver, outra para rir

e outra para morrer,

o método e a ordem

rimando com o deserto de tuas razões,

a alegria no canto, o ronco na noite

e por demais, de dia.

 

Eu que rio de angústia e de prazer soluço,

que conheço a estranha plenitude das horas,

que morro a cada instante e, sem morrer, elevo

meu sangue alucinado ao zênite do desejo,

que poetizo – sem ver minha coroa de ossos –

com um mar no percurso e um punhal nas asas,

quero-te porque tenho tudo o que não tens.

 

 Te quiero

  

Te quiero porque tienes todo lo que no tengo:

una vaga sonrisa que amanece en tu frente

como el rocío leve,

la actitud débil, lánguida como mi tedio,

el corazón vestido, sumergida la sangre

y el alma verde.

Una vida para vivir, otra para reír

y otra para morir,

el método y el orden

rimando con el yermo de tus razones,

la alegría en el canto, el ronquido en la noche

y lo demás, de día…

 

Yo que río de angustia y de placer sollozo,

que conozco la extraña plenitud de las horas,

que muero a cada instante y, sin morir, elevo

mi sangre alucinada al cenit del deseo,

que poetizo – sin ver mi corona de huesos –

con un mar en la ruta y un puñal en las alas,

te quiero porque tengo todo lo que no tienes.

 

 

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Ileana Espinel Cedeño (Equador: 1933 – 2001)

 


 

A praticabilidade

 

 

A praticabilidade prática sugere que me case

com um bom comerciante,

porque assim deixarei de receber patrocínios

e de dar recitais...

 

A praticabilidade prática alega que não posso

viver só de versos.

Que necessário é ostentar garbo

e digerir manjares

e não feijões secos...

 

Minha mãe de minha alma

está de acordo nisso,

E o mesmo minha avó,

minha tia,

meu cunhado,

meus lindos irmãos

e todos os amigos de minha querida gente...

 

Da raiz mais funda da praticabilidade, brota:

“Ileana, um comerciante!... Um comerciante, Ileana!”

 

Mas Ileana,

a boba,

a lírica,

a louca,

casa-se

– se por acaso se casa –

com um poeta pobre.

  

El practicismo

  

El practicismo práctico sugiere que me case

con un buen comerciante,

porque así dejaré de recibir auspicios

y de dar recitales…

 

El practicismo práctico alega que no puedo

vivir solo de versos;

que necesario es pasar donosamente

y digerir manjares

y no frijoles secos…

 

Mi madre de mi alma

está de acuerdo en esto,

Y lo mismo mi abuela,

mi tía,

mi cuñado,

mis dos lindos hermanos

y todos los amigos de mi querida gente…

 

De la raíz más honda del practicismo, brota:

“¡Ileana, un comerciante!… ¡Un comerciante, Ileana!”

 

Pero Ileana,

la tonta,

la lírica,

la loca,

se casa

-si acaso se casa-

con un poeta pobre.

 

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Piedad Bonnett (Colômbia: 1951 – )

  

Canção do sodomita

 

Haverá uma enorme peste...

                                                   Êxodo, 9,3

 

Içaram o amor. Estão cravando-o

coroado de urtigas e de espinhos.

Cortaram suas mãos, puseram

sal e enxofre em seus cotos.

Ah, meu jovem amado, o tempo é breve.

Soam já as trombetas e iracunda

a lua avermelhada desonra o céu.

Deixa-me acariciar teu rosto consumido em sonhos,

contemplar para sempre tuas pálpebras violeta.

Deixa que desnude meu desejo,

que coloque a palma de minha mão

sobre a rosa fervente que floresce em teu peito.

Ah, meu jovem amado que dormes enquanto foge

a multidão com um longo soluço:

uma chuva de sangue cai sobre Sodoma.

Dá-me tuas coxas brancas, tua axila, o doce pescoço,

antes que em silêncio deslize

o anjo com sua espada de extermínio.

  

Canción de sodomita

 

Habrá una grandísima peste…

Éxodo, 9,3

 

Han izado el amor. Lo están clavando

coronado de ortigas y de cardos.

Le han cortado las manos, han echado

sal y azufre en sus pálidos muñones.

Ah, mi joven amado, el tiempo es breve.

Suenan ya las trompetas e iracunda

la luna enrojecida afrenta al cielo.

Déjame acariciar tu frente ardida en sueños,

contemplar para siempre tus párpados violeta.

Deja que desanude mi deseo,

que coloque la palma de mi mano

sobre la rosa hirviente que florece en tu pecho.

Ah, mi joven amado que duermes mientras huye

la multitud con un largo sollozo:

una lluvia de sangre cae sobre Sodoma.

Dame tus muslos blancos, tu axila, el dulce cuello,

antes de que en silencio se deslice

el ángel con su espada de exterminio.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Piedad Bonnett (Colômbia: 1951 – )

 

Teu nome

  

Quando a dor houver triturado já o último osso de minha noite

e apenas haja o silêncio para o coração insone que fia

e  desfia penas e memórias

vem teu nome até meu quarto às escuras.

Com um galope seco vem teu nome abrindo

um caminho entre brumas

instaurando suas vozes seus dobres

seus erres que retumbam como um grito de guerra

seu rude sotaque de sino quebrado.

Teu nome é tantas coisas:

a lembrança de um barco que vem do ultramar e seus teimosos marinheiros

o fogo entre a pedra

gota rubra

que vai tingindo a parede da aurora.

Nele pode-se escutar a voz dos que creem

com mística implacável e fé colérica.

Mas é também doçura teu nome

muro branco onde minha mão traça os sinais do sossego

lugar onde recosto minha cabeça.

Entre teu nome e ti sem dúvida um silêncio

uma fenda noturna onde se aninham os pássaros.

 

Tu nombre

 

Cuando el dolor ha triturado ya el último hueso de mi noche

y sólo habla el silencio al corazón insomne que hila

y deshila penas y memorias

viene tu nombre hasta mi cuarto a oscuras.

Con un galope seco viene tu nombre abriendo

un camino entre nieblas

instaurando sus voces sus redobles

sus erres que retumban como un grito de guerra

su bronco acento de campana rota.

Tu nombre es tantas cosas:

el recuerdo de un barco que viene de ultramar y sus tercos marinos

el fuego entre la piedra

gota roja

que va tiñendo la pared del alba.

En él puede escucharse la voz de los que creen

con mística implacable y fe colérica.

Pero es también dulzura tu nombre

muro blanco donde mi mano traza los signos del sosiego

lugar donde recuesto mi cabeza.

Entre tu nombre y tú sin embargo un silencio

una grieta nocturna donde anidan los pájaros.

 

sábado, 15 de agosto de 2020

Piedad Bonnett (Colômbia: 1951 – )

 

Harmonia

  

Ouve como se amam os tigres

e se enche a selva com seus fundos arquejos

e se rompe a noite com seus ferozes relâmpagos.

Olha como giram os astros na eterna

dança da harmonia e seu silêncio

povoa-se de sussurros vegetais.

Cheira o espesso mel que destilam as árvores,

o leite escuro que suas folhas exsudam.

O universo inteiro se trança e destrança

em infinitas cópulas secretas.

Sábias geometrias entrelaçam as formas

de doces caracóis e de ingratas serpentes.

No mar há um canto de sereias.

Toca minha pele

trêmula de ti e exposta aos espinhos,

antes que o ritmo de meu sangue se cale,

antes que retorne à água e à terra.

 

Armonía

  

Oye cómo se aman los tigres

y se llena la selva con sus hondos jadeos

y se rompe la noche con sus fieros relámpagos.

Mira cómo giran los astros en la eterna

danza de la armonía y su silencio

se puebla de susurros vegetales.

Huele la espesa miel que destilan los árboles,

la leche oscura que sus hojas exudan.

El universo entero se trenza y se destrenza

en infinitas cópulas secretas.

Sabias geometrías entrelazan las formas

de dulces caracoles y de ingratas serpientes.

En el mar hay un canto de sirenas.

Toca mi piel

temblorosa de ti y expuesta a las espinas,

antes que el ritmo de mi sangre calle,

antes de que regrese al agua y a la tierra.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Lucrecia Panchano (Colômbia: 1940)

 

Marca de ferro em brasa

  

Marca de escravidão abominável

que de nós tudo rouba, exceto a consciência

e em nós releva sua física presença

e no negro enfatiza a virtude louvável.

 

A marca... da servidão a marca ultrajante

que quis destruir todas as nossas raízes.

E se hoje mostramos diferentes matizes,

sobrevivemos ao colonialismo infamante.

 

Depois de vários séculos de ignomínia e dor

e com essa fé suprema que o negro vivifica,

por levar como herança esse algo! superior.

 

A marca... Agora é símbolo de liberdade e amor

com um significado que o negro dignifica

e é a veraz expressão de altivez e valor.

 

Carimba

  

Marca de abominable esclavitud

que todo nos robó, excepto la conciencia

que en nosotros releva su física presencia

y enfatiza en el negro, su máxima virtud.

 

Carimba… marca indignante del vasallaje

que quiso destruir todas nuestras raíces.

Y aunque hoy presentamos diferentes matices,

somos supervivientes de infame coloniaje.

 

Después de varios siglos de ignominia y dolor

y con esa fe suprema que el negro vivifica,

por llevar en su ancestro ese, ¡algo! superior.

 

Carimba… Ahora es símbolo de libertad y amor

con un significado que el negro dignifica

y es la expresión auténtica de altivez y valor.

 

Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

  Argonautas   E se a alma deve conhecer-se a si mesma ela deve voltar os olhos para outra alma: * o estrangeiro e inimigo, vim...