domingo, 7 de junho de 2020

Pablo Neruda (Chile: 1904 – 1973)



Os Enigmas


Houvestes perguntado sobre o que fia o crustáceo
entre suas patas douradas
e vos respondo: o mar o sabe.
Dizei-me, a que espera a ascídia em sua campânula transparente? A que espera?
E vos digo, espera como vós pelo tempo.
Perguntais-me: a quem se estende o abraço da alga Macrocystes? 
Indagai-o, indagai-o à certa hora, em certo mar que conheço.

Sem dúvida me perguntareis pelo marfim amaldiçoado do narval, para que eu vos responda 
sobre como o arpoado unicórnio marinho agoniza.
Perguntais-me talvez pelas plumas alcionárias que tremulam
nas incontaminadas origens da barra austral?
E sobre a arquitetura cristalina do pólipo haveis, sem dúvida, embaralhado 
uma pergunta a mais, formulando-a agora?
Quereis saber sobre a matéria eletrificada das hastes das profundezas?
O estalactite munido de armas que se quebra ao deslocar-se?
O anzol do peixe pescador, a música propagada
pelas profundezas como um fio n'água?

Quero dizer-vos que sobre isto sabe o mar, que a vida em seus estojos
É vasta como a areia, inumerável e pura
e entre as uvas da cor do sangue o tempo poliu a dureza de uma pétala, a luz da medusa 
e desfiou o ramo de seus fios de corais
de uma cornucópia de madrepérola infinita.

Não sou senão a rede vazia que segue à frente
dos olhos humanos, mortos naquelas trevas,
dedos acostumados ao triângulo, medidas
de um acanhado hemisfério de laranja.

Andei como vós escavando
A estrela interminável,
e, à noite, em minha rede acordei despido, 
presa única, peixe aprisionado no vento.


Los Enigmas


Me habeis preguntado que hila el crustaceo
entre sus patas de oro
y os respondo: El mar lo sabe.
Me decis, que espera la ascidia en su campana trasparente? Que espera?
Yo os digo, espera como vosotros el tiempo.
Me preguntais: a quien alcanza el abrazo del alga Macrocustis?
Indagadlo, indagadlo a cierta hora, en cierto mar que conozco.

Sin duda me preguntareis por el marfil maldito del narwhal, para que yo os conteste
de que modo el unicornio marino agoniza arponeado.
Me preguntais tal vez por las plumas alcionarias que tiemblan
en los puros origenes de la marca austral?
Y sobre la construccion cristalina del polipo habeis barajado, sin duda,
una pregunta mas, desgranandola ahora?
Quereis saber la electrica materia de las púas del fondo?
La armada estalactita que camina
quebrandose?
El anzuelo del pez pescador, la musica extendida?
en la profundidad como un hilo de agua?

Yo os quiero decir que esto lo sabe el mar, que la vida en sus arcas
es ancha como la arena, innumerable y pura
y entre las uvas sanguinarias el tiempo ha pulido la dureza de un petalo, la luz de la medusa 
y ha desgranado el ramo de sus hebras de corales 
desde una cornucopia de nacar infinito.

Yo no soy sino la red vacia que adelanta
ojos humanos, muertos en aquellas tinieblas,
dedos acostumbrados al triangulo, medidas
de un timido hemisferio de naranja.

Anduve como vosotros escarbando
la estrella interminable,
y en mi red, en la noche, me desperte desnudo, 
unica presa, pez encerrado en el viento.



sábado, 6 de junho de 2020

Auguste Barbier (França: 1805 –1888)




A Cura (excerto) *


É a virgem fogosa, da Bastilha filha,
Que outrora, quando chegou
Com seu ar atrevido, seus atributos de menina,
Por cinco anos ao povo excitou;
Que, mais tarde, entoando marcha guerreira,
Entendiada com seus primeiros amantes,
Deitou fora seu barrete, e fez-se vivandeira
De um capitão recém entrado nos vinte.
É essa mulher, enfim, que, sempre nua e linda,
Com sua echarpe tricolor,
Dentro de nossos muros metralhados súbito ressurgida,
Vem a secar de nossos olhos lágrimas de dor,
Devolver em três dias a alta coroa do reino
Às mãos dos franceses sublevados,
Esmagar um exército e triturar um trono
Com alguns pedregulhos amontoados.

Acontece que a Liberdade não é uma condessa 
Do bairro de Saint-Germain, nobre subúrbio, 
Uma mulher que a um grito desfaleça,
Que se veste de branco e vermelho.
Ela é uma mulher forte de poderosas mamas,
De voz rouca, de encantos brutos,
Que, do moreno da pele, do fogo nas pupilas,
Ágil e marchando a passos largos,
Compraz-se com o clamor do povo, com os cruentos embates, 
Com o rufar longínquo dos tambores, 
Com o cheiro da pólvora, com os sons distantes 
Dos sinos e surdos canhões;
Que não escolhe seus amantes senão entre a plebe, 
Que não entrega seus largos flancos 
Senão a gente forte como ela, a quem a abrace
Com o vermelho do sangue nos braços.


La Curée


C'est la vierge fougueuse, enfant de la Bastille, 
Qui jadis, lorsqu'elle apparut
Avec son air hardi, ses allures de fille,
Cinq ans mit tout le peuple en rut ;
Qui, plus tard, entonnant une marche guerrière,
Lasse de ses premiers amants,
Jeta là son bonnet, et devint vivandière
D'un capitaine de vingt ans
C'est cette femme, enfin, qui, toujours belle et nue,
Avec l'écharpe aux trois couleurs,
Dans nos murs mitraillés tout à coup reparue,
Vient de sécher nos yeux en pleurs,
De remettre en trois jours une haute couronne
Aux mains des Français soulevés,
D'écraser une armée et de broyer un trône
Avec quelques tas de pavés.

C'est que la Liberté n'est pas une comtesse 
Du noble faubourg Saint-Germain,
Une femme qu'un cri fait tomber en faiblesse,
Qui met du blanc et du carmine
C'est une forte femme aux puissantes mamelles,
À la voix rauque, aux durs appas,
Qui, du brun sur la peau, du feu dans les prunelles,
Agile et marchant à grands pas,
Se plaît aux cris du peuple, aux sanglantes mêlées,
Aux longs roulements des tambours,
À l'odeur de la poudre, aux lointaines volées
Des cloches et des canons sourds ;
Qui ne prend ses amours que dans la populace,
Qui ne prête son large flanc
Qu'à des gens forts comme elle, et qui veut qu'on l'embrasse
Avec des bras rouges de sang.


Nota:
(*) A mulher que inspirou este trecho do longo poema de Barbier e o quadro de Delacroix - Liberté guidant le peuple - chamava-se Marie Dechamps. Ela é citada no livro Pessoas Extraordinárias (Paz e Terra, 1999, pp. 145-147, de Eric Hobsbawn. Também é a efígie impressa em notas de real.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Eugenio Montejo (Venezuela: 1938 – 2008)



Sobremesa


Às cegas, ao fundo da névoa
que cai de remotos dias,
tornamos a nos sentar
e falamos já sem nos vermos.
Às cegas, ao fundo da névoa.

Sobre a mesa volta o ar
e o sonho atrai os ausentes.
Pães em que hibernaram musgos frios
sobre a toalha despertam agora.

Vagueiam vapores de café
e no aroma, reavivados,
vemos pairar antigos rostos
que embaçam os espelhos.

Retas cadeiras vazias
aguardam os que, desde longe,
retornarão mais tarde. Começamos a falar
sem nos vermos e alheios ao tempo. 

Às cegas, na varanda
que cresce e nos envolve,
conversamos por horas sem perceber
quem vive ainda, quem está morto.


Sobremesa


A tientas, al fondo de la niebla
que cae de los remotos días,
volvemos a sentarnos
y hablamos ya sin vernos.
A tientas, al fondo de la niebla.

Sobre la mesa vuelve el aire
y el sueño atrae a los ausentes.
Panes donde invernaron musgos fríos
en el mantel ahora se despiertan.

Yerran vapores de café
y en el aroma, reavivados,
vemos flotar antiguos rostros
que empañan los espejos.

Rectas sillas vacías
aguardan a quienes, desde lejos,
retornarán más tarde. Comenzamos a hablar
sin vernos y sin tiempo.

A tientas, en la vaharada
que crece y nos envuelve,
charlamos horas sin saber
quién vive todavía, quién está muerto.



quinta-feira, 4 de junho de 2020

Arthur Henry Reginald Buller (Inglaterra:1874 – Canadá:1944)



Poema Humorístico (limerick, em inglês)


Relatividade


Houve uma garota chamada Claridade.
Muito mais rápida que a luz era a sua velocidade.
De casa ela saiu um dia,
e como às leis da relatividade obedecia,
voltou na noite anterior, com um dia a menos de idade.


Relativity


There was a young lady named Bright,
whose speed was much faster than light.
She set off one day
in a relative way,
and returned on the previous night.


quarta-feira, 3 de junho de 2020

Juan Gelman (Argentina: 1930 – 2014)




O Jogo que Jogamos


Se me concedessem escolher, escolheria
esta saúde de saber que estamos muito enfermos,
esta sorte de estarmos tão infelizes.
Se me concedessem escolher, escolheria
esta inocência de não ser um inocente,
esta pureza em que vivo, sendo impuro.

Se me concedessem escolher, escolheria
este amor com que odeio,
esta esperança que come pães desesperados.

Aqui acontece, senhores,
uma aposta com a morte.


El Juego En Que Andamos


Si me dieran a elegir, yo elegiría
esta salud de saber que estamos muy enfermos,
esta dicha de andar tan infelices.
Si me dieran a elegir, yo elegiría
esta inocencia de no ser un inocente,
esta pureza en que ando por impuro.

Si me dieran a elegir, yo elegiría
este amor con que odio,
esta esperanza que come panes desesperados.

Aquí pasa, señores,
que me juego la muerte.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Katerína Gógou (Grécia: 1940 – 1993)




A solidão
não ostenta em seu olhar a cor entristecida
das mulheres burras apatetadas. [1]
Ela não perambula de modo abstrato e íntima satisfação
rebolando as ancas em salas de concerto
e museus congelados.
Ela não é os quadros militares covardes dos 'bons' velhos tempos
A naftalina no peito das velhinhas
As fitas róseas e chapéus de palha.
Ela não abre as pernas dando risadinhas fingidas
O olhar fixo de vaca em suspiros ritmados
e roupas íntimas de cores sortidas.

A solidão
tem a cor dos paquistaneses, essa solidão, [2]
E é avaliada metro a metro
Junto com suas coisas
Encontrada no final das filas nos sinais fechados [3]
Ela permanece pacientemente enfileirada
Bournazi – Santa Barbara – Kokkinia
Touba – Stavroupoli – Kalamaria [4]
Sob quaisquer condições climáticas
Com sua cabeça suada

Ela ejacula aos gritos e estraçalha vidraças com correntes
Ela controla os meios de produção
Ela detona a propriedade privada
Ela é uma visita domingueira na prisão
O mesmo passo no pátio revolucionários e prisioneiros penais
Ela é vendida e comprada minuto a minuto, suspiro a suspiro
Nos mercados de escravos da terra – Kotzia é logo ali [5]
Levante-se cedo
Levante-se e comprove.

Ela é uma puta nos prostíbulos
O treinamento militar alemão para recrutas
E os últimos
Infindáveis quilômetros da rodovia nacional que leva ao centro
Nas carnes interditadas da Bulgária.
E quando seu sangue se adensa e ela não consegue mais
Suportar que sua espécie seja negociada a preço tão vil
Ela dança uma zeibekiko descalça sobre as mesas [6]
Segurando em suas mãos azuis machucadas
Um bem afiado machado

A Solidão
A nossa solidão eu digo. É sobre a nossa solidão que estou falando,
É um machado em nossas mãos
Que sobre suas cabeças está girando girando girando



Loneliness
does not have the saddened color
of the cloudy bimbo in her eyes. [1]
She does not stroll abstractly and self-content
Shaking her hips in concert halls
And in frozen museums.
She is not the yellow cadres of “good” old times
And naphthalene in granny’s chests
Rosy ribbons and straw hats.
She does not open her legs with fake small laughers
A cow’s gaze rhythmic sighs
And assorted underwear.

Loneliness
Has the color of Pakistanis, this loneliness [2]
And she is counted inch by inch
Along with their pieces
In the bottom of the light-shaft. [3]
She stands patiently queuing
Bournazi – Santa Barbara – Kokkinia
Touba –Stavroupoli – Kalamaria [4]
Under all weathers
With a sweaty head

She ejaculates screaming and smashes the front windows with chains
She occupies the means of production
She blows up private property
She is a Sunday visit in prison
Same step in the yard revolutionaries and penal prisoners
She is sold and bought minute by minute, breath by breath
In the slave markets of the earth – Kotzia is near here [5]
Wake up early.
Wake up to see it.

She is a whore in the rotten-houses
The German drill for conscripts
And the last
Endless miles of the national highway towards the centre
In the suspended meats from Bulgaria.
And when her blood clots and she can take no more
Of her kind being sold so cheaply
She dances barefoot on the tables a zeibekiko [6]
Holding in her bruised blue hands
A well sharpened axe.

Loneliness,
Our loneliness I say. Its our loneliness I am speaking about,
Is a axe in our hands
That over your heads is revolving revolving revolving revolving.


Notas:

[1] Bimbo (gíria): garota pouco inteligente, super maquiada e obcecada por homens e roupas. Em geral, ela é loura.
[1] Cloudy (gíria): ligeiramente bêbado e apatetado.
[2] Os paquistaneses foram os primeiros trabalhadores imigrantes da Grécia. Em 1970 eles organizaram uma das mais violentas greves do país, num tempo em que o movimento pela autonomia dos trabalhadores estava em seu auge.
[3] Lightshaft: Quando um semáforo só muda para verde quando uma certa quantidade de carros enfileira-se a sua frente.
[4] Bairros proletários de Atenas e Salônica.
[5] Praça em que se situa a prefeitura de Atenas, onde os trabalhadores da construção civil se reuniam antes do amanhecer, para ser levados para o trabalho.

[6] Dança grega.





segunda-feira, 1 de junho de 2020

Katerína Gógou (Grécia: 1940 – 1993)





Não ouses deter-me. Estou sonhando.
Há séculos vivemos vergados pela injustiça.
Séculos de solidão.
Agora não. Não ouses deter-me.
Agora e aqui, para sempre e em todo lugar.
Estou sonhando liberdade.
Apesar da singularidade
belíssima de cada um
Na reinstituição
Da harmonia do universo.

Brinquemos. Conhecimento é alegria.
Não é conscrição escolar.
Eu sonho porque amo.
Sonhos fantásticos no céu.
Trabalhadores em suas próprias fábricas
Contribuindo para a produção mundial de chocolate.
Eu sonho porque SEI e POSSO.
Bancos engendram “ladrões”;
Prisões, “terroristas”;
Solidão, “desajustados”;
Produtos, “necessidades”;
Fronteiras, exércitos.

Tudo deriva da propriedade.
Violência engendra violência.
Agora não. Não ouses deter-me.
É chegado o tempo de reinstituir
A moralidade como a derradeira práxis.
Transformar a vida em poema.
E a vida em práxis.
Eu sonho que posso que posso que posso.
Te amo

E tu não me detenhas, nem estou sonhando.
Eu vivo.
Estendo minhas mãos
Ao amor à solidariedade
À Liberdade.
Por tantas vezes quanto necessárias forem e mais.
Eu defendo a ANARQUIA.



Don’t you stop me. I am dreaming.
We lived centuries of injustice bent over.
Centuries of loneliness.
Now don’t. Don’t you stop me.
Now and here, for ever and everywhere.
I am dreaming freedom.
Though everyone’s
All-beautiful uniqueness
To reinstitute
The harmony of the universe.
Lets play. Knowledge is joy.
Its not school conscription.
I dream because I love.
Great dreams in the sky.
Workers with their own factories
Contributing to world chocolate making.
I dream because I KNOW and I CAN.
Banks give birth to “robbers”.
Prisons to “terrorists”.
Loneliness to “misfits”.
Products to “need”
Borders to armies.
All caused by property.
Violence gives birth to violence.
Don’t now. Don’t you stop me.
The time has come to reinstitute
the morally just as the ultimate praxis.
To make life into a poem.
And life into praxis.
It is a dream that I can I can I can
I love you
And you do not stop me nor am I dreaming. I live.
I reach my hands
To love to solidarity
To Freedom.
As many times as it takes all over again.
I defend ANARCHY.



domingo, 31 de maio de 2020

Eugenio Montejo (Venezuela: 1938 – 2008)





Amantes 


Amavam-se. Não estavam sós na terra;
possuíam a noite, suas vésperas azuis,
sua celagem.

Viviam um no outro, tocavam-se
como duas pétalas não abertas no fundo
de alguma flor do ar.

Amavam-se. Não estavam sós à margem
de sua primeira noite.

E era a terra que neles se amava,
o ouro noturno de seus contornos,
a galáxia.

Já não teriam duas mortes. Não iam separar-se.
Desnudos, assustados, seus corpos se estendiam
como fileiras de luzes num extenso campo de pouso
onde algo ia chegar vindo de longe,
não demasiadamente tarde.


Amantes


Se amaban. No estaban solos en la tierra;
tenían la noche, sus vísperas azules,
sus celajes.

Vivían uno en el otro, se palpaban
como dos pétalos no abiertos en el fondo
de alguna flor del aire.

Se amaban. No estaban solos a la orilla
de su primera noche.

Y era la tierra la que se amaba en ellos,
el oro nocturno de sus vueltas,
la galaxia.

Ya no tendrían dos muertes. No iban a separarse.
Desnudos, asombrados, sus cuerpos se tendían
como hileras de luces en un largo aeropuerto
donde algo iba a llegar desde muy lejos,
no demasiado tarde.


sábado, 30 de maio de 2020

Katerína Gógou (Grécia: 1940 – 1993)




21 / 24*


25 de maio

Qualquer dia eu abrirei a porta
e sairei à rua
como ontem
E não pensarei em nada exceto
por um pouco no meu pai
e por um pouco no mar – tudo o que ele me deixou –
e na cidade. A cidade que disperdiçaram.
E em nossos amigos que se foram.
Abrirei a porta numa manhã
como ontem e me jogarei
direto no fogo
gritando "fascistas!!"
levantando barricadas e atirando pedras
com uma bandeira vermelha
altaneira brilhando ao sol.
Abrirei a porta – não que esteja com medo
mas quero lhes dizer que não consegui
e vocês terão de aprender
que não devem ir às ruas
sem armas, como eu
– pois não consegui –
senão vocês estarão perdidos como eu
uma "quem liga" uma "já era"
quebrados em pedaços
pelo mar, pela infância
e pelas bandeiras vermelhas.
Qualquer manhã
eu abrirei a porta
e me perderei
no sonho da revolução
com a vasta solidão
de ruas que serão consumidas pelo fogo
com a imensa solidão
de barricadas de papel
e a pecha – não creiam neles –
Agitador.


21 / 24


May 25

One day I'll open the door
and go out into the street
like yesterday
And I won't think of anything but
a bit of my father
and a bit of the sea – all that has left me –
and the city. The city they wasted.
And our lost friends.
I'll open the door one morning
like yesterday and go straight
into the fire
shouting "fascists!!"
raising barricades and throwing stones
with a red flag
lofty and shining in the sun.
I'll open the door – not that I'm scared
but I want to tell you I didn't make it
and you have to learn
you shouldn't go into the street
without arms, like me
– because I didn't make it –
otherwise you'll be lost like me
a "who cares" a "has-been"
broken into pieces
by the sea, childhood
and red flags.
One morning
I'll open the door
and lose myself
in the dream of revolution
with the vast loneliness
of streets that'll be burning
with the immense loneliness
of paper barricades
with the label – don't believe them –
Provocateur.


(*) Do livro Três cliques à esquerda (Three Clicks left). A versão do grego para o inglês é de Jack Hirschman

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Nazim Hikmet (Tessalônica/Grécia: 1902 – Moscou/Rússia: 1963)




Hino à Vida


O cabelo caindo sobre tua testa
esvoaçou de repente.
De repente algo moveu-se no solo.
As árvores estão sussurrando
na escuridão.
Teus braços nus ficarão frios.

Ao longe,
onde não podemos divisar,
a lua deve estar subindo.
Ela não nos alcançou ainda,
deslizando por entre as folhas
para iluminar teus ombros.
Mas sei
que um vento vem com a lua.
As árvores estão sussurrando.
Teus braços nus ficarão frios.

Do alto,
desde os galhos perdidos na escuridão,
algo caiu aos teus pés.
Vieste para mais perto de mim.
Sob minha mão tua carne desnuda é como a pele penujada de uma fruta.
Nem é uma canção do coração nem é “senso comum” -
em frente às árvores, aos pássaros e insetos,
minha mão sobre a carne de minha mulher
está pensando.
Nesta noite minha mão
não pode ler ou escrever.
Nem é amável nem é descortês…
É a língua de um leopardo no salto,
uma folha de uva,
a pata de um lobo.
Para mover-se, respirar, comer, beber.
Minha mão é como a semente
rompendo a casca sob a terra.
Nem é canção do coração nem é “senso comum”,
nem é amável nem descortês.
Minha mão pensando sobre a carne de minha mulher
é a mão do primeiro homem.
Como uma raiz que encontra água subterrânea,
ela me diz:
“Comer, beber, frio, quente, luta, cheiro, cor -
não é viver para morrer
mas morrer para viver...”

E agora
enquanto cabelos femininos vermelhos fustigam-me o rosto,
enquanto algo se move sobre o solo,
enquanto as árvores sussurram na escuridão,
e enquanto a lua eleva-se ao longe
onde não podemos divisar,
minha mão sobre a carne de minha mulher
diante das árvores, dos pássaros e insetos,
quero o direito à vida,
do leopardo no salto, da semente rompendo a casca -
quero o direito do primeiro homem.


Hymn To Life


(Traduzido para o inglês por Randy Blasing e Mutlu Konuk) 

The hair falling on your forehead
suddenly lifted.
Suddenly something stirred on the ground.
The trees are whispering
in the dark.
Your bare arms will be cold.

Far off
where we can't see,
the moon must be rising.
It hasn't reached us yet,
slipping through the leaves
to light up your shoulder.
But I know
a wind comes up with the moon.
The trees are whispering.
Your bare arms will be cold.

From above,
from the branches lost in the dark,
something dropped at your feet.
You moved closer to me.
Under my hand your bare flesh is like the fuzzy skin of a fruit.
Neither a song of the heart nor "common sense"–
before the trees, birds, and insects,
my hand on my wife's flesh
is thinking.
Tonight my hand
can't read or write.
Neither loving nor unloving...
It's the tongue of a leopard at a spring,
a grape leaf,
a wolf's paw.
To move, breathe, eat, drink.
My hand is like a seed
splitting open underground.
Neither a song of the heart nor "common sense,"
neither loving nor unloving.
My hand thinking on my wife's flesh
is the hand of the first man.
Like a root that finds water underground,
it says to me:
"To eat, drink, cold, hot, struggle, smell, color–
not to live in order to die
but to die to live..."

And now
as red female hair blows across my face,
as something stirs on the ground,
as the trees whisper in the dark,
and as the moon rises far off
where we can't see,
my hand on my wife's flesh
before the trees, birds, and insects,
I want the right of life,
of the leopard at the spring, of the seed splitting open–
I want the right of the first man.




Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

  Argonautas   E se a alma deve conhecer-se a si mesma ela deve voltar os olhos para outra alma: * o estrangeiro e inimigo, vim...