quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Jorge Luis Borges (Argentina: 1899 – 1986)

 Do livro Elogio da sombra – 11 / 31

 Do livro Elogio da sombra – 11 / 31


 O etnólogo

 

O caso foi-me relatado no Texas, mas acontecera em outro estado. Consta que havia apenas um personagem, salvo que em toda a história os personagens são milhares, visíveis e invisíveis, vivos e mortos. Chamava-se, creio, Fred Murdock. Era alto como um norte-americano, nem louro nem moreno, perfil de machado, de muito poucas palavras. Não havia nada de característico nele, nem sequer a fingida característica que é própria dos jovens. Naturalmente respeitoso, não descria dos livros nem de quem escreve os livros. Sua idade era aquela em que o homem ainda não sabe quem ele é e está disposto a se entregar ao que lhe apresenta o acaso: a mística do persa ou a desconhecida origem do húngaro, as aventuras da guerra ou a álgebra, o puritanismo ou a orgia. Na universidade aconselharam-no a estudar as línguas indígenas. Há ritos esotéricos que perduram em certas tribos do oeste; seu professor, um homem entrado nos anos, propôs-lhe que fizesse sua moradia em uma reserva, que descobrisse o segredo que os feiticeiros revelam ao iniciado. Na volta, escreveria uma tese que as autoridades do instituto publicariam. Murdock aceitou com alacridade. Um de seus antepassados havia sido morto nas guerras da fronteira; essa antiga discórdia de suas estirpes era um vínculo agora. Previu, sem dúvida, as dificuldades que o aguardavam; tinha de conseguir que os peles-vermelhas o aceitassem como a um dos seus. Empreendeu a longa aventura. Por mais de dois anos morou na pradaria, entre muros de adobe ou ao relento. Levantava-se antes do alvorecer, deitava-se ao anoitecer, chegou a sonhar em um idioma que não era o de seus pais. Acostumou seu paladar a sabores ásperos, cobriu-se de roupas estranhas, esqueceu-se dos amigos e da cidade, chegou a pensar de uma maneira que sua lógica rejeitava. Durante os primeiros meses de aprendizado tomava notas sigilosas, que rasgaria depois, talvez para não despertar a suspeita dos outros, talvez porque já não precisasse delas. Ao término de um prazo prefixado por certos exercícios, de índole moral e de índole física, o sacerdote ordenou-lhe que fosse se lembrando de seus sonhos e que os revelasse a ele ao clarear o dia. Comprovou que nas noites de lua cheia sonhava com bisões. Revelou esses sonhos repetidos a seu mestre; este terminou por revelar-lhe sua doutrina secreta. Uma manhã, sem haver se despedido de ninguém, Murdock se foi.

 

Na cidade, sentiu saudade daquelas primeiras tardes na pradaria em que havia sentido, faz tempo, saudade da cidade. Foi à sala do professor e disse-lhe que sabia o segredo e que havia decidido não revelá-lo.

 

– Impede-o seu juramento? – perguntou o outro.

– Não é essa minha razão – disse Murdock. – Longe daqui aprendi algo que não posso dizer.

– Talvez o idioma inglês seja insuficiente? – observaria o outro.

– Nada disso, senhor. Agora que possuo o segredo, poderia enunciá-lo de cem modos distintos e mesmo contraditórios. Não sei muito bem como dizer-lhe que o segredo é precioso e que agora a ciência, nossa ciência, parece-me uma frivolidade.

Disse ainda após uma pausa:

– O segredo, além do mais, não vale o que valem os caminhos que a ele me conduziram. Esses caminhos precisam ser percorridos.

O professor lhe disse com frieza:

– Comunicarei sua decisão ao Conselho. Você pensa em viver entre os índios?

Murdock respondeu:

– Não. Talvez eu não volte à pradaria. O que me ensinaram seus homens serve para qualquer lugar e para qualquer circunstância – tal foi em essência a conversa.

Fred casou-se, divorciou-se e agora é um dos bibliotecários de Yale.

 

El Etnógrafo


El caso me lo refirieron en Texas, pero había acontecido en otro estado. Cuenta con un solo protagonista, salvo que en toda historia los protagonistas son miles, visibles e invisibles, vivos y muertos. Se llamaba, creo, Fred Murdock. Era alto a la manera americana, ni rubio ni moreno, de perfil de hacha, de muy pocas palabras. Nada singular había en él, ni siquiera esa fingida singularidad que es propia de los jóvenes. Naturalmente respetuoso, no descreía de los libros ni de quienes escriben los libros. Era suya esa edad en que el hombre no sabe aún quién es y está listo a entregarse a lo que le propone el azar: la mística del persa o el desconocido origen del húngaro, las aventuras de la guerra o el álgebra, el puritanismo o la orgía. En la universidad le aconsejaron el estudio de las lenguas indígenas. Hay ritos esotéricos que perduran en ciertas tribus del oeste; su profesor, un hombre entrado en años, le propuso que hiciera su habitación en

una reserva, que observara los ritos y que descubriera el secreto que los brujos revelan al iniciado. A su vuelta, redactaría una tesis que las autoridades del instituto darían a la imprenta. Murdock aceptó con alacridad. Uno de sus mayores había muerto en las guerras de la frontera; esa antigua discordia de sus estirpes era un vínculo ahora. Previo, sin duda, las dificultades que lo aguardaban; tenía que lograr que los hombres rojos lo aceptaran como uno de los suyos. Emprendió la larga aventura. Más de dos años habitó en la pradera, entre muros de adobe o a la intemperie. Se levantaba antes del alba, se acostaba al anochecer, llegó a soñar en un idioma que no era el de sus padres. Acostumbró su paladar a sabores ásperos, se cubrió con ropas extrañas, olvidó los amigos y la ciudad, llegó a pensar de una manera que su lógica rechazaba. Durante los primeros meses de aprendizaje tomaba notas sigilosas, que rompería después, acaso para no despertar la suspicacia de los otros, acaso porque ya no las precisaba. Al término de un plazo prefijado por ciertos ejercicios, de índole moral y de índole física, el sacerdote le ordenó que fuera recordando sus sueños y que se los confiara al clarear el día. Comprobó que en las noches de luna llena soñaba con bisontes. Confió estos sueños repetidos a su maestro; éste acabó por revelarle su doctrina secreta. Una mañana, sin haberse despedido de nadie, Murdock se fue.


En la ciudad, sintió la nostalgia de aquellas tardes iniciales de la pradera en que

había sentido, hace tiempo, la nostalgia de la ciudad. Se encaminó al despacho del profesor y le dijo que sabía el secreto y que había resuelto no revelarlo.

 

– ¿Lo ata su juramento? – preguntó el otro.

– No es ésa mi razón – dijo Murdock– . En esas lejanías aprendí algo que no puedo decir.

– ¿Acaso el idioma inglés es insuficiente? –  observaría el otro.

– Nada de eso, señor. Ahora que poseo el secreto, podría enunciarlo de cien modos distintos y aun contradictorios. No sé muy bien cómo decirle que el secreto es precioso y que ahora la ciencia, nuestra ciencia, me parece una mera frivolidad.

Agregó al cabo de una pausa:

– El secreto, por lo demás, no vale lo que valen los caminos que me condujeron a él. Esos caminos hay que andarlos.

El profesor le dijo con frialdad:

– Comunicaré su decisión al Consejo. ¿Usted piensa vivir entre los indios?
Murdock le contestó:

– No. Tal vez no vuelva a la pradera. Lo que me enseñaron sus hombres vale para cualquier lugar y para cualquier circunstancia. Tal fue en esencia el diálogo.

Fred se casó, se divorció y es ahora uno de los bibliotecarios de Yale.


 


quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Jorge Luis Borges (Argentina: 1899 – 1986)

 

Do livro Elogio da sombra – 10 / 31

  

Ricardo Güiraldes *

 

Ninguém irá esquecer que foste amável;

Era a não procurada, era a primeira

Forma de seu desvelo, a verdadeira

Cifra de uma alma clara como o dia.

 

Tampouco esquecerei sua bizarra

Serenidade, o fino rosto forte,

As luzes das vitórias e as da morte,

A mão a dialogar com a guitarra.

Como no puro sonho de um espelho

(És a realidade, eu seu reflexo)

Vejo-te conversando com nós outros

 

Em Quintana, onde estás, mágico e morto.

É todo teu, Ricardo, o agora aberto

Campo de ontem, crepúsculo dos potros.

 

Ricardo Güiraldes


Nadie podrá olvidar su cortesía;
Era la no buscada, la primera
Forma de su bondad, la verdadera
Cifra de un alma clara como el día.

 

No he de olvidar tampoco la bizarra
Serenidad, el fino rostro fuerte,
Las luces de la gloria y de la muerte,
La mano interrogando la guitarra.


Como en el puro sueño de un espejo
(Tú eres la realidad, yo su reflejo)
Te veo conversando con nosotros


En Quintana. Ahí estás, mágico y muerto.
Tuyo, Ricardo, ahora es el abierto
Campo de ayer, el alba de los potros.


 (*) Ricardo Güiraldes: poeta e romancista argentino (1886 – 1927)

 

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Jorge Luis Borges (Argentina: 1899 – 1986)

Do livro Elogio da sombra – 09 / 31

 



O labirinto



Zeus não podia desatar as redes

de pedra que me cercam. Esqueci-me

dos homens que antes fui, sigo o odiado

caminho de monótonas paredes

que é meu destino. Retas galerias

que se encurvam em círculos secretos

ao término dos anos. Parapeitos

aos quais rachou a cobiça dos meus dias.

Decifrei no terreno esfarelado

rastros que temo. No ar foi-me trazido

nas encurvadas tardes um bramido

e o ecoar de um bramido desolado.

Sei que na sombra há Outro, cuja sorte

é fatigar as amplas soledades

que tecem e destecem este Hades,

e ansiar meu sangue e engolir minha morte.

Buscamo-nos os dois. Quem dera fosse

este o último dia desta espera.



El Laberinto


Zeus no podría desatar las redes
de piedra que me cercan. He olvidado
los hombres que antes fui; sigo el odiado
camino de monótonas paredes

que es mi destino. Rectas galerías
que se curvan en círculos secretos
al cabo de los años. Parapetos
que ha agrietado la usura de los días.

En el pálido polvo he descifrado
rastros que temo. El aire me ha traído
en las cóncavas tardes un bramido
o el eco de un bramido desolado.

Sé que en la sombra hay Otro, cuya suerte
es fatigar las largas soledades
que tejen y destejen este Hades
y ansiar mi sangre y devorar mi muerte.

Nos buscamos los dos. Ojalá fuera
éste el último día de la espera.

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Jorge Luis Borges (Argentina: 1899 – 1986)

 

Do livro Elogio da sombra – 08 / 31

 

Labirinto

 

(Esta tradução foi realizada em parceria com Isaias Edson Sidney)

 

Não haverá nunca uma porta. Estás dentro

E o alcácer guarda em si todo o universo

E não tem nem anverso nem reverso

Nem muro externo nem secreto centro.

 

Não esperes que o rigor de teu caminho

Que teimoso bifurca-se num outro,

Que se bifurca noutro tenazmente,

Terá fim. É de ferro teu destino

 

Como teu juiz. Não aguardes a investida

Do touro que é homem, cuja estranha

Forma múltipla assusta o emaranhado

 

De interminável pedra entretecida.

Não existe. Nada esperes. Nem sequer

a fera no sombrio entardecer.

 

Laberinto


No habrá nunca una puerta. Estás adentro
Y el alcázar abarca el universo
Y no tiene ni anverso ni reverso
Ni externo muro ni secreto centro.
No esperes que el rigor de tu camino
Que tercamente se bifurca en otro,
Que tercamente se bifurca en otro,
Tendrá fin. Es de hierro tu destino
Como tu juez. No aguardes la embestida
Del toro que es un hombre y cuya extraña
Forma plural da horror a la maraña
De interminable piedra entretejida.
No existe. Nada esperes. Ni siquiera

En el negro crepúsculo la fiera.


domingo, 12 de setembro de 2021

Jorge Luis Borges (Argentina: 1899 – 1986)

Do livro Elogio da sombra – 07 / 31

 

20 de maio de 1928

 

Agora é invulnerável como os deuses.

Nada na terra pode feri-lo, nem o desamor de uma mulher, nem a tísica, nem as ansiedades do verso, nem essa coisa branca, a lua, que já não tem que fixar em palavras.

Caminha lentamente sob as tílias; olha as balaustradas e as portas não para recordá-las.

Já sabe quantas noites e quantas manhãs lhe restam.

Sua vontade impôs-lhe uma disciplina precisa. Executará determinados atos, atravessará previstas esquinas, tocará uma árvore ou uma grade, para que o porvir seja tão irrevogável como o passado.

Age dessa maneira para que o feito que deseja realizar e teme não seja outra coisa a não ser o termo final de uma série.

Caminha pela rua 49; pensa que nunca atravessará tal ou qual saguão lateral.

Sem que suspeitassem, já se despedira de muitos amigos.

Pensa o que nunca saberá, se o dia seguinte será um dia de chuva.

Passa por um conhecido e lhe prega uma peça.

Sabe que este episódio será, por um tempo, uma piada.

Agora  é invulnerável como os mortos.

Na hora acertada, subirá por alguns degraus de mármore. (Isto perdurará na memória dos outros.)

Descerá ao lavatório; no piso axadrezado a água rapidamente apagará o sangue. O espelho o aguarda.

Penteará o cabelo, ajustará o nó da gravata (sempre foi um pouco dândi, como convém a um jovem poeta) e procurará imaginar que o outro, o do espelho, executa os atos e que ele, seu sósia, os repete. A mão não vacilará no que fará por último. Docilmente, magicamente, já terá apoiado a arma contra a têmpora.

Assim, creio, aconteceram as coisas.

 

Mayo 20, 1928


Ahora es invulnerable como los dioses.
Nada en la tierra puede herirlo, ni el desamor de una mujer, ni la tisis, ni las ansiedades del verso, ni esa cosa blanca, la luna, que ya no tiene que fijar en palabras.
Camina lentamente bajo los tilos; mira las balaustradas y las puertas, no para recordarlas.
Ya sabe cuántas noches y cuántas mañanas le faltan.
Su voluntad le ha impuesto una disciplina precisa. Hará determinados actos, cruzará previstas esquinas, tocará un árbol o una reja, para que el porvenir sea tan irrevocable como el pasado.
Obra de esa manera para que el hecho que desea y que teme no sea otra cosa que el término final de una serie.

Camina por la calle 49; piensa que nunca atravesará tal o cual zaguán lateral.
Sin que lo sospecharan, se ha despedido ya de muchos amigos.
Piensa lo que nunca sabrá, si el día siguiente será un día de lluvia.
Se cruza con un conocido y le hace una broma.
Sabe que este episodio será, durante algún tiempo, una anécdota.
Ahora es invulnerable como los muertos.
En la hora fijada, subirá por unos escalones de mármol. (Esto perdurará en la memoria de otros.)
Bajará al lavatorio; en el piso ajedrezado el agua borrará muy pronto la sangre. El espejo lo aguarda.
Se alisará el pelo, se ajustará el nudo de la corbata (siempre fue un poco dandy, como cuadra a un joven poeta) y tratará de imaginar que el otro, el del cristal, ejecuta los actos y que él, su doble, los repite. La mano no le temblará cuando ocurra el último. Dócilmente, mágicamente, ya habrá apoyado el arma contra la sien.
Así, lo creo, sucedieron las cosas.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Jorge Luis Borges (Argentina: 1899 – 1986)

 

Do livro Elogio da sombra – 06 / 31

 

The Unending Gift*

 

Um pintor nos prometeu um quadro.

Agora, em New England, sei que morreu. Senti, como noutras vezes, a tristeza de compreender que somos como um sonho. Pensei no homem e no quadro perdidos.

(Apenas os deuses podem prometer, porque são imortais.)

Pensei em um lugar prefixado que a tela não ocupará.

Pensei depois: se estivesse aí, seria com o tempo uma coisa a mais, uma coisa, uma das vaidades ou hábitos da casa; agora é ilimitada, incessante, capaz de tomar qualquer forma e qualquer cor e não ligada a nenhuma.

Existe de algum modo. Viverá e crescerá como uma música e estará comigo até o fim. Obrigado, Jorge Larco.

(Também os homens podem prometer, porque na promessa há algo imortal.)

 

 The Unending Gift


Un pintor nos prometió un cuadro.

 

Ahora, en New England, sé que ha muerto. Sentí, como otras veces, la tristeza de comprender que somos como un sueño. Pensé en el hombre y en el cuadro perdidos.

(Sólo los dioses pueden prometer, porque son inmortales.)

Pensé en un lugar prefijado que la tela no ocupará.

Pensé después: si estuviera ahí, sería con el tiempo uma cosa más, una cosa, una de las vanidades o hábitos de la casa; ahora es ilimitada, incesante, capaz de cualquier forma y cualquier color y no atada a ninguno.

Existe de algún modo. Vivirá y crecerá como una música y estará conmigo hasta el fin. Gracias, Jorge Larco.

(También los hombres pueden prometer, porque en la promesa hay algo inmortal.)


 

 

(*) A dádiva eterna.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Jorge Luis Borges (Argentina: 1899 – 1986)

  

Do livro Elogio da sombra – 05 / 31

 

 James Joyce

 

Em um dia dos homens estão os dias

do tempo, desde aquele inconcebível

dia inicial do tempo, em que um terrível

Deus prefixou o que é dia e agonia

 

até aquele outro em que o ubíquo rio

do tempo terrenal volte ao começo,

que é o Eterno, e finde no presente,

o ontem como o futuro, o que ora é meu.

 

Entre a alvorada e a noite está a história

universal. Desde a noite eu percebo

a meus pés os caminhos dos hebreus,

Cartago aniquilada, Inferno e Glória.

 

Dá-me Senhor, coragem e alegria

para escalar o cume deste dia.

 

 

James Joyce

 

En un día del hombre están los días

del tiempo, desde aquel inconcebible

día inicial del tiempo, en que un terrible

Dios prefijó los días y agonías

 

hasta aquel otro en que el ubicuo río

del tiempo terrenal torne a su fuente,

que es lo Eterno, y se apague en el presente,

el futuro, el ayer, lo que ahora es mío.

 

Entre el alba y la noche está la historia

universal. Desde la noche veo

a mis pies los caminos del hebreo,

Cartago aniquilada, Infierno y Gloria.

 

Dame, Señor, coraje y alegría

para escalar la cumbre de este día.

 

                                                           Cambridge, 1967



quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Jorge Luis Borges (Argentina: 1899 – 1986)

 Do livro Elogio da sombra – 04 / 31

 (Na versão metrificada – como no poema original –, alguns versos fogem à métrica de dez sílabas poéticas com tônica na sexta e na décima.)

 

New England, 1967

 

Alteraram-se as formas de meu sonho;

agora são casas laterais vermelhas [1]

e o delicado bronze da folhagem

e o casto inverno e o piedoso lenho.[2]

 

Como no dia sétimo, esta terra

é boa. Nos crepúsculos persiste

o que quase não é, audaz e triste,

um antigo rumor de Bíblia e guerra.

 

Logo (nos dizem) chegará a neve

e a América me espera em cada esquina,

mas sinto que na tarde que declina

o hoje tão lento e o ontem tão breve.

 

Buenos Aires, eu sigo caminhando

por tuas ruas, sem por quê nem quando.

                                                                   Cambridge, 1967

 

New England, 1967 (versão sem métrica)

 

Alteraram-se as formas de meu sonho;

agora são casas laterais vermelhas  [1]

e o delicado bronze das folhas

e o casto inverno e o piedoso lenho. [2]

 

Como no dia sétimo, a terra

é boa. Nos crepúsculos persiste

algo que quase não existe, ousado e triste,

um antigo rumor de Bíblia e guerra.

 

Logo (nos dizem) chegará a neve

e a América me espera em cada esquina,

mas sinto na tarde que declina

o hoje tão lento e o ontem tão breve.

 

Buenos Aires, eu sigo caminhando

por tuas esquinas, sem por quê nem quando.

 

                                                           Cambridge, 1967

 

 

New England, 1967

 

Han cambiado las formas de mi sueño;

ahora son laterales casas rojas

y el delicado bronce de las hojas

y el casto invierno y el piadoso leño.

Como en el día séptimo, la tierra

es buena. En los crepúsculos persiste

algo que casi no es, osado y triste,

un antiguo rumor de Biblia y guerra.

Pronto (nos dicen) llegará la nieve

y América me espera en cada esquina,

pero siento en la tarde que declina

el hoy tan lento y el ayer tan breve.

Buenos Aires, yo sigo caminando

por tus esquinas, sin por qué ni cuándo.

 

                                                           Cambridge, 1967

 

[1] Casa lateral: casa com passagem(ns) na(s) lateral(ais) e área livre atrás.

[2] Com a palavra ‘leño’ – aqui associada ao inverno – o poeta pode estar se referindo à ‘lenha na lareira’ ou à locução verbal coloquial espanhola ‘dormir como un leño’ – dormir profundamente.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Jorge Luis Borges (Argentina: 1899 – 1986)

Do livro Elogio da sombra – 03 / 31

  

Cambridge

 

Nova Inglaterra e a manhã.

Dobro a rua Craigie.

Penso (pensei-o antes)

que o nome Craigie é escocês

e que a palavra crag é de origem celta.

Penso (pensei-o antes)

que neste inverno estão os antigos invernos

dos que deixaram escrito

que o caminho está prefixado

e que já somos do Amor e do Fogo.

A neve e a manhã e os muros vermelhos

podem ser formas da felicidade,

mas eu venho de outras cidades

onde as cores são pálidas

e nas quais certa mulher, ao cair da tarde,

regará as plantas do jardim.

Alço os olhos e os perco no ubíquo azul.

Mais além estão as árvores de Longfellow

e o adormecido rio incessante.

Ninguém nas ruas, mas não é domingo.

Não é segunda-feira,

o dia que nos dá a ilusão de começar.

Não é terça-feira,

o dia que governa o planeta vermelho.

Não é quarta-feira,

o dia daquele deus dos labirintos

que no Norte foi Odin.

Não é quinta-feira,

o dia que já se resigna ao domingo.

Não é sexta-feira,

o dia regido pela divindade que nas selvas

enreda os corpos dos amantes.

Não é sábado.

Não está no tempo consecutivo

senão nos reinos espectrais da memória.

Como nos sonhos,

atrás das altas portas não há nada,

Anverso sem reverso,

moeda de uma só cara, as coisas.

Essas misérias são os bens

que o precipitado tempo nos deixa.

Somos nossa memória,

somos esse quimérico museu de formas inconstantes,

esse amontoado de espelhos rotos.

 

  

Cambridge

 

Nueva Inglaterra y la mañana.

Doblo por Craigie.

Pienso (yo lo he pensado)

que el nombre Craigie es escocés

y que la palabra crag es de origen celta.

Pienso (ya lo he pensado)

que en este invierno están los antiguos inviernos

de quienes dejaron escrito

que el camino está prefijado

y que ya somos del Amor o del Fuego.

La nieve y la mañana y los muros rojos

pueden ser formas de la dicha,

pero yo vengo de otros ciudades

donde los colores son pálidos

y en las que una mujer, al caer la tarde,

regará las plantas del patio.

Alzo los ojos y los pierdo en el ubicuo azul.

Más allá están los árboles de Longfellow

y el dormido río incesante.

Nadie en las calles, pero no es un domingo.

No es un lunes,

el día que nos depara la ilusión de empezar.

No es un martes,

el día que preside el planeta rojo.

No es un miércoles,

el día de aquel dios de los laberintos

que en el Norte fue Odín.

No es jueves,

el día que ya se resigna al domingo.

No es un viernes,

el día regido por la divinidad que en las selvas

entreteje los cuerpos de los amantes.

No es un sábado.

No está en el tiempo sucesivo

sino en los reinos espectrales de la memoria.

Como en los sueños

detrás de las altas puertas no hay nada,

ni siquiera el vacío.

Como en los sueños,

detrás del rostro que nos mira no hay nadie.

Anverso sin reverso,

moneda de una sola cara, las cosas.

Esas miserias son los bienes

que el precipitado tiempo nos deja.

Somos nuestra memoria,

somos ese quimérico museo de formas inconstantes,

ese montón de espejos rotos.

 

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Jorge Luis Borges (Argentina: 1899 – 1986)

 

 

Do livro Elogio da sombra – 02 / 31

 

 

Heráclito

 

O segundo crepúsculo.

A noite que se afunda no sonho.

A purificação e o esquecimento.

O primeiro crepúsculo.

A manhã que foi aurora.

O dia que foi a manhã.

O dia apinhado que será a tarde desgastada.

O segundo crepúsculo.

Esse outro hábito do tempo, a noite.

A purificação e o esquecimento.

O primeiro crepúsculo...

A aurora furtiva e na aurora

a inquietude do grego.

Que trama é esta

do será, do é e do foi?

Que rio é este

pelo qual corre o Ganges?

Que rio é este cuja fonte é inimaginável?

Que rio é este

que leva mitologias e espadas?

É inútil que se durma.

Corre no sonho, no deserto, em um porão.

O rio me arrebata e sou esse rio.

De uma matéria inconsistente fui feito, de misterioso tempo.

Talvez o manancial esteja em mim.

Talvez de minha sombra

surjam, fatais e ilusórios, os dias.

 

 Heráclito

 

El segundo crepúsculo.

La noche que se ahonda en el sueño.

La purificación y el olvido.

El primer crepúsculo.

La mañana que ha sido el alba.

El día que fue la mañana.

El día numeroso que será la tarde gastada.

El segundo crepúsculo.

Ese otro hábito del tiempo, la noche.

La purificación y el olvido.

El primer crepúsculo...

El alba sigilosa y en el alba

la zozobra del griego.

¿Qué trama es ésta

del será, del es y del fue?

¿Qué río es éste

por el cual corre el Ganges?

¿Qué río es éste cuya fuente es inconcebible?

¿Qué río es éste

que arrastra mitologías y espadas?

Es inútil que duerma.

Corre en el sueño, en el desierto, en un sótano.

El río me arrebata y soy ese río.

De una materia deleznable fui hecho, de misterioso tiempo.

Acaso el manantial está en mí.

Acaso de mi sombra

surgen, fatales e ilusorios, los días.

Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

  Argonautas   E se a alma deve conhecer-se a si mesma ela deve voltar os olhos para outra alma: * o estrangeiro e inimigo, vim...