sexta-feira, 3 de abril de 2020

Allen Ginsberg (Estados Unidos:1926 – 1997)

 

América

 

 

América eu lhe dei tudo e agora não sou nada.

América dois dólares e vinte e sete centavos 17 de janeiro de 1956.

Não posso aturar minha própria mente.

América quando daremos fim à guerra humana?

Vá se foder com sua bomba atômica.

Não me sinto bem não me aborreça.

Não escreverei meu poema antes de estar em meu juízo perfeito.

América quando você se tornará angelical?

Quando você se despirá de suas vestes?

Quando você enxergará a si mesma através da sepultura?

Quando você será digna de seus milhões de trotskistas?

América por que suas bibliotecas estão cheias de lágrimas?

América quando você enviará seus ovos para a Índia? [1]

Estou farto de suas exigências insanas.

Quando poderei ir ao supermercado e comprar o necessário com         minha boa aparência?

América apesar de tudo perfeitos somos eu e você não o resto do mundo.

Seu aparato governamental é demais para mim.

Você me fez querer ser um santo.

Deve haver alguma outra maneira de resolver essa discussão.

Burroughs está em Tânger não acho que voltará o que é sinistro. [2]

Você está sendo sinistra ou isso é um tipo de pegadinha?

Estou tentando ir direto ao assunto.

Eu me recuso a desistir de minha obsessão.

América pare de forçar a barra eu sei o que estou fazendo.

América as flores da ameixeira estão caindo.

Deixei de ler os jornais por muitos meses, a cada dia alguém vai a julgamento por assassinato.

América eu me torno piegas quando se trata dos Wooblies. [3]

América eu era comunista quando criança e não lamento.

Fumei maconha em todo e qualquer ensejo.

Fico sentado em minha casa por dias a fio e olhos fixos nas rosas do closet.

Quando vou a Chinatown me embriago e nunca pego ninguém. [4][5]

Minha mente se rebela vai  haver confusão.

Você devia ter visto eu lendo Marx.

Meu psicanalista pensa que sou perfeitamente normal.

Não vou rezar o Pai Nosso.

Tenho visões místicas e vibrações cósmicas.

América eu ainda não falei do que você fez a Tio Max quando ele veio da Rússia.

Estou falando com você.

Você vai deixar que a nossa vida emocional seja controlada pela revista Time? [6]

Sou doente pela revista Time.

Eu a leio toda semana.

Sua capa me olha toda vez que eu espreito a confeitaria da esquina ao passar.

Leio a revista no porão da Biblioteca Pública de Berkeley.

Ela está sempre me falando de responsabilidade. Os homens de negócios são sérios. Os produtores de cinema são sérios.

Todo mundo é sério menos eu.

Isso me faz pensar que sou a América.

Estou falando sozinho de novo.

 

A Ásia está se levantando contra mim.

Eu não tenho a sorte de um chinês.

Melhor seria considerar meus recursos nacionais.

Meus recursos nacionais se resumem a dois cigarros de maconha

milhões de genitais uma literatura pessoal impublicável que vai

a cerca de 2.000 quilômetros por hora e vinte e cinco mil

manicômios.

Não digo nada dos meus presídios ou dos milhões de deserdados da sorte que vivem em meus vasos de flores sob a luz de quinhentos sóis.

Eu acabei com os puteiros da França, Tânger é a próxima.

Minha ambição é ser presidente embora eu seja católico.

 

América como posso escrever uma litania sagrada à maneira de sua disposição insensata?


Continuarei como Henry Ford minhas estrofes são tão individuais quando seus automóveis ainda mais porque todos eles são de sexos diferentes.


América eu lhe venderei estrofes por $2.500 cada $500 a menos que sua estrofe desgastada.

América liberte Tom Mooney [7]

América salve os legalistas espanhóis [8]

América Sacco & Vanzetti não devem morrer [9]

América eu sou os rapazes de Scottsboro [10]

América aos sete anos mamãe me levou a reuniões de células comunistas eles nos venderam grãos-de-bico um punhado por ingresso um ingresso custa um tostão e os discursos eram livres todo mundo se sentia angelical e piegas em relação aos trabalhadores havia tanta sinceridade que você nem imagina a coisa boa que era o partido em 1835 Scott Nearing era um idoso maravilhoso um verdadeiro mensch Mamãe Bloor me levou às lágrimas certa vez eu vi Israel Amter em sua inteireza. Todo mundo deve ter sido um espião. [11] [12] [13] [14]

América você não deseja de fato ir à guerra.

América são maus eles russos. [15]

Eles russos eles russos e eles chineses. E eles russos.

A Rússia quer nos comer vivos. Poder louco da Rússia. Ela querer levar nossos carros de nossas garagens.

Ela querer tomar Chicago. Ela precisar de uma Reader’s Digest Vermelha. Ela querer nossas fábricas de carros na Sibéria. Ela enorme burocracia administrando nossos postos de combustível. [16]


Isso não bom. Argh! Ela fazer índios aprender a ler. Ela precisar de enormes crioulos pretos.

Rá! Ela fazer todos trabalhar dezesseis horas por dia. Socorro.

América isso é realmente sério.

América essa é a impressão que tenho ao ver na televisão.

América isso está certo?

Eu preferia chegar logo ao trabalho.

É verdade que eu não quero me alistar no Exército ou

transformar tornos mecânicos em fábricas de peças de precisão,

eu sou míope e psicopata afinal.

América estou dando duro com a disposição de um bicha. [17]

 

 

America

 

 

America I’ve given you all and now I’m nothing.

America two dollars and twentyseven cents January 17, 1956.   

I can’t stand my own mind.

America when will we end the human war?

Go fuck yourself with your atom bomb.

I don’t feel good don’t bother me.

I won’t write my poem till I’m in my right mind.

America when will you be angelic?

When will you take off your clothes?

When will you look at yourself through the grave?

When will you be worthy of your million Trotskyites?

America why are your libraries full of tears?

America when will you send your eggs to India?

I’m sick of your insane demands.

When can I go into the supermarket and buy what I need with my good looks?

America after all it is you and I who are perfect not the next world.   

Your machinery is too much for me.

You made me want to be a saint.

There must be some other way to settle this argument.   

Burroughs is in Tangiers I don’t think he’ll come back it’s sinister.   

Are you being sinister or is this some form of practical joke?   

I’m trying to come to the point.

I refuse to give up my obsession.

America stop pushing I know what I’m doing.

America the plum blossoms are falling.

I haven’t read the newspapers for months, everyday somebody goes on trial for murder.

America I feel sentimental about the Wobblies.

America I used to be a communist when I was a kid I’m not sorry.   

I smoke marijuana every chance I get.

I sit in my house for days on end and stare at the roses in the closet.   

When I go to Chinatown I get drunk and never get laid.   

My mind is made up there’s going to be trouble.

You should have seen me reading Marx.

My psychoanalyst thinks I’m perfectly right.

I won’t say the Lord’s Prayer.

I have mystical visions and cosmic vibrations.

America I still haven’t told you what you did to Uncle Max after he came over from Russia.

I’m addressing you.

Are you going to let your emotional life be run by Time Magazine?   

I’m obsessed by Time Magazine.

I read it every week.

Its cover stares at me every time I slink past the corner candystore.   

I read it in the basement of the Berkeley Public Library.

It’s always telling me about responsibility. Businessmen are serious. Movie producers are serious. Everybody’s serious but me.   

It occurs to me that I am America.

I am talking to myself again.

 

Asia is rising against me.

I haven’t got a chinaman’s chance.

I’d better consider my national resources.

My national resources consist of two joints of marijuana millions of genitals an unpublishable private literature that jetplanes 1400 miles an hour and twentyfive-thousand mental institutions.

I say nothing about my prisons nor the millions of underprivileged who live in my flowerpots under the light of five hundred suns.

I have abolished the whorehouses of France, Tangiers is the next to go.

My ambition is to be President despite the fact that I’m a Catholic.

 

America how can I write a holy litany in your silly mood?

I will continue like Henry Ford my strophes are as individual as his automobiles more so they’re all different sexes.

America I will sell you strophes $2500 apiece $500 down on your old strophe

America free Tom Mooney

America save the Spanish Loyalists

America Sacco & Vanzetti must not die

America I am the Scottsboro boys.

America when I was seven momma took me to Communist Cell meetings they sold us garbanzos a handful per ticket a ticket costs a nickel and the speeches were free everybody was angelic and sentimental about the workers it was all so sincere you have no idea what a good thing the party was in 1835 Scott Nearing was a grand old man a real mensch Mother Bloor the Silk-strikers’ Ewig-Weibliche made me cry I once saw the Yiddish orator Israel Amter plain. Everybody must have been a spy.

America you don’t really want to go to war.

America its them bad Russians.

Them Russians them Russians and them Chinamen. And them Russians.   

The Russia wants to eat us alive. The Russia’s power mad. She wants to take our cars from out our garages.

Her wants to grab Chicago. Her needs a Red Reader’s Digest. Her wants our auto plants in Siberia. Him big bureaucracy running our filling stations.

That no good. Ugh. Him make Indians learn read. Him need big black niggers. Hah. Her make us all work sixteen hours a day. Help.   

America this is quite serious.

America this is the impression I get from looking in the television set.   

America is this correct?

I’d better get right down to the job.

It’s true I don’t want to join the Army or turn lathes in precision parts factories, I’m nearsighted and psychopathic anyway.

America I’m putting my queer shoulder to the wheel.

 

Berkeley, January 17, 1956

 

 

 

 

Notas:

[1] Referência à grave crise fome que vitimou a Índia por longo período, especialmente a região de Bengala, a partir da Segunda Guerra Mundial. Ainda em curso quando o poema foi escrito. Ler sobre isso em http://en.wikipedia.org/wiki/Bengalfamineof1943 ehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Revoluçãoverde.

[2] William S. Burroughs (1914 - 1997): escritor, pintor e crítico social norte-americano.

[3] Wobbly: membro do sindicato Trabalhadores Industriais do Mundo, dedicado à derrubada do capitalismo. Em atividade especialmente no início dos anos 1900.

[4] Chinatown: bairro chinês. Os mais famosos são os de São Francisco, Los Angeles e Nova York. Certamente o poeta se refere ao desta última cidade, onde morou até morrer.

[5] Get laid: gíria norte-americana com várias acepções, dentre as quais, ‘foder’, ‘não pegar ninguém’.

[6] Time Magazine: revista conservadora norte-americana.

[7] Thomas Joseph "Tom" Mooney (1882 - 1942): líder trabalhista e ativista norte-americano sentenciado a vinte e dois anos de prisão pela explosão de uma bomba na parada Prontidão do Dia do Bombardeio, em 1916. (http://en.wikipedia.org/wiki/ThomasMooney)

[8] Legalistas Espanhóis: na Guerra Civil Espanhola, aqueles que eram leais ao recém eleito governo republicano. Foram apoiados pelos soviéticos.

[9] Nicola Sacco & Bartolomeo Vanzetti: anarquistas italianos que foram presos, julgados e condenados nos Estados Unidos na década de 1920, sob a acusação de homicídio do contador e do guarda de uma fábrica de sapatos. Seu julgamento tornou-se famoso e levantou muita controvérsia. Foram condenados à pena de morte e executados em 23 de agosto de 1927 (http://pt.wikipedia.org/wiki/ProcessodeSaccoeVanzetti). Sua história é narrada no livro A Tragédia de Sacco e Vanzetti, de Frank Russell, editado pela Civilização Brasileira (1966).

[10] Scottsboro boys: nome genérico que identifica nove adolescentes negros falsamente acusados de estupro no estado do Alabama em 1931 (http://pt.wikipedia.org/wiki/ScottsboroBoys)

[11] Scott Nearing (1883 - 1983): economista, educador, escritor, ativista político e advogado radical (http://en.wikipedia.org/wiki/ScottNearing)

[12] Em alemão no original – homem.

[13] Ella Reeve "Mother" Bloor (1862 - 1951): coordenadora do trabalho e ativista dos movimentos socialista e comunista norte-americanos. Ela é mais lembrada por haver pertencido ao alto escalão do Partido Comunista dos Estados Unidos. (http://en.wikipedia.org/wiki/EllaReeveBloor)

[14] Israel Amter (1881—1954): politico marxista e membro fundador do Partido Comunista norte-americano (CPUSA).(http://en.wikipedia.org/wiki/IsraelAmter)

[15] Neste trecho, Ginsberg faz uso de pronomes pessoais do caso oblíquo como sujeitos dos verbos, uma incorreção gramatical praticada nos Estados Unidos por imigrantes (como o seu tio Max (talvez), índios e escravos), intraduzível no português. Optei pela conjugação equivocada dos verbos.

[16] Reader’s Digest: a nossa revista ‘Seleções’, porta-voz das políticas conservadoras e do way of life norte-americanos. Para a revista, o que enobrecia as mulheres era ser dona de casa.

[17] To put one’s shoulder on the wheel: literalmente, ‘apoiar nosso ombro na roda’, expressão idiomática que pode ser traduzida por ‘trabalhar arduamente e com tenacidade’. 'Queer' pode tanto ser traduzido por ‘esquisito’ ou ‘estranho’ quanto por ‘bicha’ ou ‘homossexual’ ou 'gay'. A última acepção ainda não era usada na época em que o poema foi escrito.


quinta-feira, 2 de abril de 2020

Aurelio Arturo (Colombia: 1906 – 1974)


Rapsódia de Saulo


Trabalhar era bom lá no sul, cortar as árvores,
fazer canoas dos troncos.
Ir pelos rios lá no sul, dizer canções,
era bom. Trabalhar entre ricas madeiras.

(Um homem da riba, umas mãos hábeis,
um homem de ágeis remos pelo rio opulento,
falou-me das madeiras balsâmicas, de seus eflúvios...
Um homem velho lá no sul, contando histórias).

Trabalhar era bom. Sobre troncos
a vida, sobre a espuma, cantando os crescentes.
Trabalhar, um pretexto para não ir-se do rio,
para ser também o rio, o rumor da margem?

Juan Gálvez, José Narváez, Pioquinto Sierra,
como carvalhos entre carvalhos... Era agradável,
convosco cantar ou praguejar, nos bosques
abater as aves como se folhas do céu.

E Pablo Garcés, Julio Balcázar, os Ulloas,
tantos que ali se esforçavam por entre os dias.

Sem pensarmos trouxemos à baila os vales,
os rios, seu deslizante rumor abrindo noites,
um silêncio a que beliscam as verdes paisagens,
um silêncio atravessado por uma ave delgada como folha.

Mas os que não voltaram vivem mais intensamente,
os mortos vivem em nossas canções.

Trabalhar... Esse rio me banha o coração,
Lá no sul. Vi rebanhos de nuvens e mulheres mais ligeiras
que essa brisa que embala a sesta das árvores.
Pude ver, juro-lhes, era no belo sul.

Grata foi a aspereza. E as brancas aldeias,
usufruíam tão suaves brisas: povoados de rio,
em seus umbrais as mulheres sabiam sorrir e dar um beijo.
Grata foi a aspereza e esse hábito de honradez e de resinas.

Enche-me o coração de luz de um suave rosto cor-de-rosa

Aldeia, pombo de meu ombro, eu que assobiei pelos caminhos,
eu que cantei, um homem rude, buscarei por tuas samambaias;
acariciarei tua trança escura - um homem bronco -,
teus cães lamberão outra vez minhas mãos toscas.

Eu que cantei pelos caminhos, um homem da margem
um homem de ligeiras canoas pelos rios selvagens.


Rapsodia de Saulo


TRABAJAR era bueno en el sur, cortar los árboles,
hacer canoas de los troncos.
Ir por los ríos en el sur, decir canciones,
era bueno. Trabajar entre ricas maderas.

(Un hombre de la riba, unas manos hábiles,
un hombre de ágiles remos por el río opulento,
me habló de las maderas balsámicas, de sus efluvios...
Un hombre viejo en el sur, contando historias).

Trabajar era bueno. Sobre troncos
la vida, sobre la espuma, cantando las crecientes.
¿Trabajar un pretexto para no irse del río,
para ser también el río, el rumor de la orilla?

Juan Gálvez, José Narváez, Pioquinto Sierra,
como robles entre robles... Era grato,
con vosotros cantar o maldecir, en los bosques
abatir avecillas como hojas del cielo.

Y Pablo Garcés, Julio Balcázar, los Ulloas,
tantos que allí se esforzaban entre los días.

Trajimos sin pensarlo en el habla los valles,
los ríos, su resbalante rumor abriendo noches,
un silencio que picotean los verdes paisajes,
un silencio cruzado por un ave delgada como hoja.

Mas los que no volvieron viven más hondamente,
los muertos viven en nuestras canciones.

Trabajar... Ese río me baña el corazón.
En el sur. Vi rebaños de nubes y mujeres más leves
que esa brisa que mece la siesta de los árboles.
Pude ver, os lo juro, era en el bello sur.

Grata fue la rudeza. Y las blancas aldeas,
tenían tan suaves brisas: pueblecillos de río,
en sus umbrales las mujeres sabían sonreír y dar un beso.
Grata fue la rudeza y ese hábito de hombría y de resinas.

Me llena el corazón de luz de un suave rostro rosa

Aldea, paloma de mi hombro, yo que silbé por los caminos,
yo que canté, un hombre rudo, buscaré tus helechos;
acariciaré tu trenza oscura — un hombre bronco —,
tus perros lamerán otra vez mis manos toscas.

Yo que canté por los caminos, un hombre de la orilla
un hombre de ligeras canoas por los ríos salvajes.



quarta-feira, 1 de abril de 2020

William Shakespeare (Inglaterra: 1564 – 1616)




Rei Ricardo II – Solilóquio do Ato 3, Cena 2


Não importa onde; de consolo ninguém fale;
Falemos de epitáfios, vermes e tumbas;
Fazer do pó papel e com olhos rasos
Inscrever nossa dor no seio da terra,
Falemos de cartórios e testamentos:
Se assim não for, o que podemos legar
Salvo nossos depostos corpos ao solo?
Nossas terras, vidas, são de Bolingbroke, [1]
E nada temos de nosso exceto a morte
E esta pequena porção de terra estéril
Que serve de abrigo e cobre nossos ossos.
Por Deus, sentemo-nos todos nesse chão
E contemos casos tristes de reis mortos;
Alguns depostos; alguns mortos em guerras;
Assombrados por fantasmas destronados;
Mortos ou envenenados por suas esposas;
Assassinados: por dentro da coroa
Que circunda as têmporas mortais de um rei
Domina a Morte a corte e o bufão idiota,
Rindo-se de seu estado e de sua pompa,
Cedendo-lhe um suspiro, miúda cena,
Para ser temido, reinar e matar,
Insuflando sua própria e vã presunção,
Como se a carne que cerca nossa vida
Fosse bronze invencível, e assim blindada
Por fim chega e com um pequeno alfinete
Fura os muros do castelo, e adeus meu rei!
Cobri-vos e não zombai da carne e o sangue
Com solene vênia: ignorai o respeito,
A tradição, a etiqueta e formais deveres,
Pois vós julgastes-me mal por muito tempo:
Vivo de pão como vós, sinto desejos,
Sinto pesar, falta de amigos: assim

Como podeis dizer a mim que sou um rei?

  
KING RICHARD II – Act 3, Scene 2


No matter where; of comfort no man speak:
Let’s talk of graves, of worms, and epitaphs;
Make dust our paper and with rainy eyes
Write sorrow on the bosom of the earth,
Let’s choose executors and talk of wills:
And yet not so, for what can we bequeath
Save our deposed bodies to the ground?
Our lands, our lives and all are Bolingbroke’s,
And nothing can we call our own but death
And that small model of the barren earth
Which serves as paste and cover to our bones.
For God’s sake, let us sit upon the ground
And tell sad stories of the death of kings;
How some have been deposed; some slain in war,
Some haunted by the ghosts they have deposed;
Some poison’d by their wives: some sleeping kill’d;
All murder’d: for within the hollow crown
That rounds the mortal temples of a king
Keeps Death his court and there the antic sits,
Scoffing his state and grinning at his pomp,
Allowing him a breath, a little scene,
To monarchize, be fear’d and kill with looks,
Infusing him with self and vain conceit,
As if this flesh which walls about our life,
Were brass impregnable, and humour’d thus
Comes at the last and with a little pin
Bores through his castle wall, and farewell king!
Cover your heads and mock not flesh and blood
With solemn reverence: throw away respect,
Tradition, form and ceremonious duty,
For you have but mistook me all this while:
I live with bread like you, feel want,
Taste grief, need friends: subjected thus,
How can you say to me, I am a king?


Henry Bolingbroke: personagem fictício que, na peça, depõe Ricardo II e torna-se rei, com o nome de Henry IV.



terça-feira, 31 de março de 2020

Octavio Paz (México: 1914 – 1998)




Quarto de hotel

i

À luz cinzenta da reminiscência
que aspira redimir o já vivido
consome-se o ontem fantasma. Sou eu esse
que baila ao pé da árvore e delira
com nuvens que são corpos que são ondas,
com corpos que são nuvens que são praias?
Sou o que toca a água e canta a água,
a nuvem e voa, a árvore e dá folhas,
um corpo e desperta e o contesta?
Consome-se o tempo fantasma:
consome-se o ontem, o hoje se queima e o amanhã.
Tudo o que sonhei dura um minuto
e é um minuto todo o vivido.
Mas não importam séculos ou minutos:
também o tempo da estrela é tempo,
gota de sangue e fogo: piscadela.

ii

Roça minha testa com mãos frias
o rio do passado, e suas memórias
fogem sob minhas pálpebras de pedra.
Nunca se detém em sua corrida
e eu, desde o meu íntimo, o despeço.
Foge de mim o passado?
Fujo com ele, e é aquele que o despede
uma sombra que me imita, oca?
Talvez não seja ele que foge: afasto-me
e ele não me segue, alheio, consumado.
Aquele que fui para na ribeira.
Não me recorda nunca e nem me busca,
não me contempla nem se despede:
contempla, busca o outro fugitivo.
Mas tampouco o outro o recorda.

iii

Não há o antes nem o depois. O que vivi
o estou vivendo ainda?
O que vivi! Fui acaso? Tudo flui:
o que vivi ainda estou morrendo.
Não tem fim o tempo: finge lábios,
minutos, morte, céus, finge infernos,
portas que levam ao nada e nada cruza.
Não há fim, nem paraíso, nem domingo.
Não nos espera Deus no fim de semana.
Dorme, não o despertam nossos gritos.
Só o silêncio o desperta.
Quando se cale tudo e já não cantem
o sangue, os relógios, as estrelas,
Deus abrirá os olhos
e ao reino de seu nada tornaremos.


Cuarto de Hotel

i

A la luz cenicienta del recuerdo
que quiere redimir lo ya vivido
arde el ayer fantasma. ¿Yo soy ese
que baila al pie del árbol y delira
con nubes que son cuerpos que son olas,
con cuerpos que son nubes que son playas?
¿Soy el que toca el agua y canta el agua,
la nube y vuela, el árbol y echa hojas,
un cuerpo y se despierta y le contesta?
Arde el tiempo fantasma:
arde el ayer, el hoy se quema y el mañana.
Todo lo que soñé dura un minuto
y es un minuto todo lo vivido.
Pero no importan siglos o minutos:
también el tiempo de la estrella es tiempo,
gota de sangre o fuego: parpadeo.

ii

Roza mi frente con sus manos frías
el río del pasado y sus memorias
huyen bajo mis párpados de piedra.
No se detiene nunca su carrera
y yo, desde mí mismo, lo despido.
¿Huye de mí el pasado?
¿Huyo con él y aquel que lo despide
es una sombra que me finge, hueca?
Quizá no es él quien huye: yo me alejo
y él no me sigue, ajeno, consumado.
Aquel que fui se queda en la ribera.
No me recuerda nunca ni me busca,
no me contempla ni despide:
contempla, busca a otro fugitivo.
Pero tampoco el otro lo recuerda.

iii

No hay antes ni después. ¿Lo que viví
lo estoy viviendo todavía?
¡Lo que viví! ¿Fui acaso? Todo fluye:
lo que viví lo estoy muriendo todavía.
No tiene fin el tiempo: finge labios,
minutos, muerte, cielos, finge infiernos,
puertas que dan a nada y nadie cruza.
No hay fin, ni paraíso, ni domingo.
No nos espera Dios al fin de semana.
Duerme, no lo despiertan nuestros gritos.
Sólo el silencio lo despierta.
Cuando se calle todo y ya no canten
la sangre, los relojes, las estrellas,
Dios abrirá los ojos
y al reino de su nada volveremos.




segunda-feira, 30 de março de 2020

Ben Jonson (Inglaterra: 1572 – 1637)




Ampulheta

(tradução absolutamente livre)

Considera esse punhado de pó, nessa ampulheta,
Por átomos movimentado:
Acreditarias que aqui o corpo está
De alguém que amou e foi amado;
E na flama de sua amante, como mosca a voejar,
Foi por ela a cinzas reduzido com um olhar:
Sim; e na morte, como em vida amaldiçoado
Por não ter se declarado,
Mesmo em cinzas amantes nunca estão sossegados.


Hourglass


Consider this small dust, here in the glass,
By atoms moved:
Could you believe that this the body was
Of one that loved;
And in his mistress' flame playing like a fly,
Was turned to cinders by her eye:
Yes; and in death, as life unblest,
To have't exprest,
Even ashes of lovers find no rest.






domingo, 29 de março de 2020

Eugenio Montejo (Venezuela: 1938 – 2008)




O Que é Nosso


Teu é o tempo enquanto teu corpo vive
com o tremor do mundo,
o tempo, não teu corpo.
Teu corpo estava aqui, estendido ao sol, sonhando;
despertou contigo numa manhã
quando a terra quis.

Teu é o tato das mãos, não as mãos;
a luz enchendo os olhos, não os olhos;
talvez uma árvore, um pássaro que contemplas,
o resto não te pertence.
O que a terra empresta aqui perdura,
é da terra.

Apenas trouxemos o tempo em que vivemos
entre o relâmpago e o vento;
o tempo em que teu corpo gira com o mundo,
o dia de hoje, o grito diante do milagre;
a chama que arde com a vela, não a vela,
o nada de onde tudo se ergue
– isso é nosso.


Lo Nuestro


Tuyo es el tiempo cuando tu cuerpo pasa
con el temblor del mundo,
el tiempo, no tu cuerpo.
Tu cuerpo estaba aquí, tendido al sol, soñando;
se despertó contigo una mañana
cuando quiso la tierra.

Tuyo es el tacto de las manos, no las manos;
la luz llenándote los ojos, no los ojos;
acaso un árbol, un pájaro que mires,
lo demás es ajeno.
Cuanto la tierra presta aquí se queda,
es de la tierra.

Sólo trajimos el tiempo de estar vivos
entre el relámpago y el viento;
el tiempo en que tu cuerpo gira con el mundo,
el hoy, el grito delante del milagro;
la llama que arde con la vela, no la vela,
la nada de donde todo se suspende
– eso es lo nuestro.



sábado, 28 de março de 2020

Eugenio Montejo (Venezuela: 1938 – 2008)




A Terra Girou para Aproximar-nos


A terra girou para aproximar-nos,
girou sobre si mesma e em nós,
até unir-nos por fim em um só sonho,
como escrito no Simpósio.
Passaram-se noites, neves e solstícios;
passou o tempo em minutos e milênios.
Uma carreta que ia para Nínive
chegou a Nebraska.
Um galo cantou longe do mundo,
na milésima vida anterior à de nossos pais.
A terra girou musicalmente
levando-nos a bordo;
não cessou de girar por um só instante,
como se tanto amor, tanto milagre
apenas fosse um adágio há muito já escrito
entre as partituras do Simpósio.


La tierra giró para acercarnos


La tierra giró para acercarnos,
giró sobre sí misma y en nosotros,
hasta juntarnos por fin en este sueño,
como fue escrito en el Simposio.
Pasaron noches, nieves y solsticios;
pasó el tiempo en minutos y milenios.
Una carreta que iba para Nínive
llegó a Nebraska.
Un gallo cantó lejos del mundo,
en la previda a menos mil de nuestros padres.
La tierra giró musicalmente
llevándonos a bordo;
no cesó de girar un solo instante,
como si tanto amor, tanto milagro
sólo fuera un adagio hace mucho ya escrito
entre las partituras del Simposio.



sexta-feira, 27 de março de 2020

Eugenio Montejo (Venezuela: 1938 – 2008)



 Escrita


Nalguma vez escreverei com pedras,
medindo uma a uma as minhas frases
por seu peso, volume, movimento.
Estou cansado de palavras.

Não mais lápis: andaimes, teodolitos,
o desnudamento solar do sentimento
tatuando na profundeza das rochas
sua música secreta.

Desenharei com linhas de cascalhos
o meu nome, a história de minha casa
e a memória daquele rio
que vai passando sempre e sem demora
por entre minhas veias como sábio arquiteto.

Com pedra escreverei o meu canto
em arcos, pontes, dolmens, colunas,
defronte a solidão do horizonte,
como um mapa que se abra ante os olhos
dos viajantes que não regressam nunca.


Escritura


Alguna vez escribiré con piedras,
midiendo cada una de mis frases
por su peso, volumen, movimiento.
Estoy cansado de palabras.

No más lápiz: andamios, teodolitos,
la desnudez solar del sentimiento
tatuando en lo profundo de las rocas
su música secreta.

Dibujaré con líneas de guijarros
mi nombre, la historia de mi casa
y la memoria de aquel río
que va pasando siempre y se demora
entre mis venas como sabio arquitecto.

Con piedra viva escribiré mi canto
en arcos, puentes, dólmenes, columnas,
frente a la soledad del horizonte,
como un mapa que se abra ante los ojos
de los viajeros que no regresan nunca.




quinta-feira, 26 de março de 2020

José Martí (Cuba: 1853 – 1895)



Cultivo uma rosa branca


Cultivo uma rosa branca
em junho como em janeiro
para o amigo sincero
que me dá a sua mão franca.
E para o cruel que me arranca
o coração com que vivo,
nem cardo ou urtiga cultivo;
cultivo uma rosa branca.


Cultivo una rosa bianca


Cultivo una rosa blanca
en junio como en enero
para el amigo sincero
que me da su mano franca.
Y para el cruel que me arranca
el corazón con que vivo,
cardo ni ortiga cultivo;
cultivo la rosa blanca.



Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

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