domingo, 29 de novembro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

 O triunfo de Aquiles*

 

Na história de Pátroclo

ninguém sobrevive, nem mesmo Aquiles

que era quase um deus.

Pátroclo se parecia com ele; usaram

a mesma armadura.

 

Sempre nessas amizades

um serve ao outro, um é menor que o outro:

a hierarquia

está sempre presente, embora as lendas

não possam ser comprovadas –

sua fonte é o sobrevivente,

aquele que foi abandonado.

 

O que eram os navios gregos incendiados

se comparados a essa perda?

 

Em sua tenda, Aquiles

sofreu com todo o seu ser

e os deuses viram que

ele já era um homem morto, uma vítima

de sua porção que amava,

a porção que era mortal.

 

 

The Triumph of Achilles

 

In the story of Patroclus

no one survives, not even Achilles

who was nearly a god.

Patroclus resembled him; they wore

the same armor.

 

Always in these friendships

one serves the other, one is less than the other:

the hierarchy

is always apparant, though the legends

cannot be trusted—

their source is the survivor,

the one who has been abandoned.

 

What were the Greek ships on fire

compared to this loss?

 

In his tent, Achilles

grieved with his whole being

and the gods saw

he was a man already dead, a victim

of the part that loved,

the part that was mortal.

 


(*) A história de Pátroclo e Aquiles é contada na Ilíada, de Homero, Cantos XVI – XVIII.

 

 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Lorenzo Stecchetti (Itália: 1845 – 1916)

 

Foi numa noite como esta...

 

Foi numa noite como esta e o vento

Debalde a minha porta sacudia:

Longa como um lamento

Longe, longe a meia-noite batia,

Caía a chuva em torrente

das calhas sonoras e tu partiste.

 

Partiste para sempre, e sobre o leito,

Mordendo a colcha, a face eu pressionava:

Estrugia no peito

O soluço do pranto e eu não chorava.

Assim me abandonaste

E em nosso último adeus não me beijaste.

 

Não mais te vi depois da despedida

E nada sei de quem tu agora sejas.

Quem sabe descaída

No vitupério esperando estejas,

Parada sob a porta,

Por quem compre um beijo teu; ou estás morta.

 

Ainda que este pensar me atormente,

Não te recordas mais do que é passado,

E fruindo contente

A casta paz de um himeneu sagrado,

Beijas com devoção

Os filhos que do nosso amor não são.

 

 

Era una notte come questa...

 

 

Era una notte come questa e il vento    

Scuoteva urlando la mia porta invano:  

Lunga come un lamento                      

Mezzanotte battea lontan lontano,

Cadea la pioggia a rivi                

Dalle gronde sonore e tu partivi.

 

Tu partivi per sempre ed io sul letto,     

Col viso in giù, la coltrice mordea:        

Mi strideva nel petto                   

Il singuiozzo del pianto e non piangea.  

Così tu m’hai lasciato                                 

E il bacio dell’ addio non me l’hai dato.

Da quella notte non t’ho più veduta       

E più nulla di te non seppi mai.              
Forse tu sei caduta                             

Nel vitupero ed aspettando stai,           

Seduta sulla porta,                                                    

Chi compri il bacio tuo; forse sei morta. 

 

Forse, e questo pensier più mi tormenta,

Non ti ricordi più del tuo passato,         

E godendo contenta                   

La casta pace d'un imen beato,            

Baci col labbro pio                              

I figli d'un amor che non fu il mio.          

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Martha Rivera-Garrido (República Dominicana: 1961 – )

 

Ao que nomeiam as palavras

 

                “Muito cedo em minha vida, para mim foi muito tarde.

                Marguerite Duras

 

Minha mulher está morrendo aqui

neste dedo escuro que dá nome às coisas,

na árvore, já deixando de ser esquecimento e melancolia.

 

Só estou comendo os pedaços

que vão sobrando de mim,

enquanto procuro lembranças no cofre,

pequenos cachos de papel.

 

Eu, mulher, estou fumando minha tristeza,

corrigindo meus olhos, mentiras que sonhei,

infidelidades no jogo do amor.

 

Meus seios foram as pedras da ruína,

tições que queimaram as mãos do poema.

Solitária, vou deixando os espelhos aos meus outros:

incendiada, minha mulher morreu de morrer.

 

Da mesma forma em que me prolonguei,

com vertigem, com o terror ao ódio no sorriso,

amei.

 

(Os homens esquecem a água que os limpa do inferno.

O rosto que me alerta nos vidros é o meu).

 

Sou

Esta mulher de ar, esta pupila imbecil

que desperta as sereias e os pássaros,

este número de chumbo

que se enterra no crânio.

 

Sou também

uma careta que vai molhando sílabas,

garrancho pequeno que escorre

e entra no sonho do poema.

 

O poema sempre está só.

A saudade é palavra

no instante da morte.

 

 

Lo que Nombran las Palabras

 

                Muy pronto en mi vida, para mí fue muy tarde.
                Marguerite Duras

 

Mi mujer se está muriendo aquí
en este dedo oscuro que pone nombres a las cosas,
en el árbol, dejado ya de ser olvido y pesadumbre.

 

Sola estoy comiendo los pedazos
que van quedando de mí,
mientras intento recuerdos en el cofre,
pequeños gajos de papel.

 

Yo mujer, estoy fumando mi tristeza,
expío mis ojos, mentiras que soñé,
infieles en el juego del amor.

 

Mis senos fueron las piedras de la ruina,
tizones que quemaron las manos del poema.
Y sola voy dejando los espejos a mis otros:
incendiada, mi mujer se murió de morir.

 

De la misma forma en que me prolongué,
con vértigo, con el terror al odio en la sonrisa,
he amado.

 

(Los hombres olvidan el agua que los limpia del infierno.
El rostro que me alerta en los cristales es el mío).

 

Soy
Esta mujer de aire, esta pupila imbécil
que despierta las sirenas y los pájaros,
este número de plomo
que se entierra en el cráneo.

 

Soy también
una mueca que va mojando sílabas,
garabato pequeño que se escurre
y entra al sueño del poema.

 

El poema siempre está solo.
La soledad es palabra
en el instante de la muerte.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Martha Rivera-Garrido (República Dominicana: 1961 – )

 

Não te apaixones

 

Não te apaixones por uma mulher que lê, por uma mulher que sente intensamente, por uma mulher que escreve...

Não te apaixones por uma mulher culta, mágica, delirante, louca. Não te apaixones por uma mulher que pensa, que sabe o que sabe e mais que isso sabe voar; uma mulher segura de si mesma.

Não te apaixones por uma mulher que ri e chora ao fazer amor, que sabe transformar sua carne em espírito; e muito menos se apaixone por uma mulher que ame a poesia (essas são mais perigosas) ou que permaneça por meia hora contemplando uma pintura e que não saiba viver sem a música.

Não te apaixones por uma mulher que se interessa por política, que seja rebelde e sofra diante do imenso horror das injustiças. Que gosta de futebol e de bola e não aprecia em nada ver televisão. Nem se apaixone por uma mulher que é bela sem se importar com os traços de seu rosto e de seu corpo.

Não te apaixones por uma mulher intensa, lúdica e lúcida e irreverente. Não queiras te apaixonar por uma mulher assim. Pois quando te apaixonas por uma mulher como essa, fique ela contigo ou não, te ame ou não, de uma mulher assim, jamais escapas.

 

No te enamores

 

No te enamores de una mujer que lee, de una mujer que siente demasiado, de una mujer que escribe…

No te enamores de una mujer culta, maga, delirante, loca.

No te enamores de una mujer que piensa, que sabe lo que sabe y además sabe volar; una mujer segura de sí misma.

No te enamores de una mujer que se ríe o llora haciendo el amor, que sabe convertir en espíritu su carne; y mucho menos de una que ame la poesía (esas son las más peligrosas), o que se quede media hora contemplando una pintura y no sepa vivir sin la música.

No te enamores de una mujer a la que le interese la política y que sea rebelde y vertigue un inmenso horror por las injusticias.Una a la que le gusten los juegos de fútbol y de pelota y no le guste para nada ver televisión. Ni de una mujer que es bella sin importar las características de su cara y de su cuerpo.

No te enamores de una mujer intensa, lúdica y lúcida e irreverente.

No quieras enamorarte de una mujer así. Porque cuando te enamoras de una mujer como esa, se quede ella contigo o no, te ame ella o no, de ella, de una mujer así, jamás se regresa.



sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

 

Averno – 18/18

 

Perséfone, a errante

 

Na segunda versão, Perséfone

está morta. Ela morre, sua mãe sofre –

problemas de sexualidade não devem

nos importunar aqui.

 

Compulsivamente, em luto, Démeter

circunda a terra. Não esperamos saber

o que Perséfone está fazendo.

Ela está morta, os mortos são mistérios.

 

Aqui temos

a mãe e uma cifra: isso

traduz a exata experiência

da mãe enquanto

 

olha o rosto do bebê. Ela pensa:

Eu me lembro de quando você não existia. A criança

fica confusa; mais tarde, a impressão da criança é a

de que sempre existiu, assim como

 

sua mãe tenha sempre existido

como é no presente. Sua mãe

é como uma pessoa em um ponto de ônibus,

um público para a chegada do ônibus. Antes,

ela era o ônibus, um provisório

lar ou comodidade. Perséfone, em segurança,

olha fixamente da janela da carruagem.

 

O que ela vê? Uma manhã

de início de primavera, em abril. Agora

toda a sua vida está começando – infelizmente,

essa será

 

curta. Ela está a ponto de conhecer, de fato,

 

apenas dois adultos: a morte e sua mãe.

Mas dois é

duas vezes o que tem sua mãe:

sua mãe tem

 

uma criança, uma filha.

Como deusa, ela poderia ter

tido mil crianças.

 

Começamos a ver aqui

a profunda violência da terra

 

cuja hostilidade sugere

que ela não tem nenhum desejo

de continuar a ser uma fonte de vida.

 

E por que essa hipótese

nunca é discutida? Porque

ela não está na história; ela apenas

cria uma história.

 

De luto, após a morte de sua filha,

a mãe erra pela terra.

Ela está preparando sua causa;

como um político

ela se lembra de tudo e não admite

coisa nenhuma.

 

Por exemplo, o nascimento

de sua filha foi insuportável, sua beleza

foi insuportável; ela se lembra disso.

Ela se lembra da inocência,

da ternura de Perséfone  –

 

O que ela está planejando, ao procurar sua filha?

Ela está emitindo

um aviso cuja mensagem implícita é:

o que você está fazendo fora de meu corpo?

Você se pergunta:

por que o corpo da mãe é seguro?

 

A resposta é

essa é a pergunta errada, visto que

 

o corpo da filha

não existe, a não ser

como um membro do corpo da mãe

que precisa ser

reenxertado a qualquer custo.

 

Quando um deus está de luto isso significa

destruir os outros (como na guerra)

enquanto ao mesmo tempo ele apela

para a revogação de acordos (como também na guerra)

 

se Zeus a trouxer de volta

o inverno terminará.

 

O inverno terminará, a primavera retornará.

as pequenas brisas importunas

que tanto amei, as idiotas flores amarelas –

 

A primavera retornará, um sonho

fundamentado em uma falsidade:

que os mortos retornam.

 

Perséfone

foi usada até a morte. Agora por repetidas vezes

sua mãe a arrasta para fora de novo –

 

Você deve se perguntar:

as flores são reais? Se

 

Perséfone “volta” será

por uma de duas razões:

 

ou ela não estava morta ou

estava sendo usada

para sustentar uma ficção –

 

Penso que posso me lembrar

de estar morta. Por muitas vezes, no inverno,

eu me aproximei de Zeus. Diga-me, eu perguntaria

como posso tolerar a terra?

 

E ele diria,

brevemente você estará aqui de volta.

E no entremeio

 

você se esquecerá de tudo:

aqueles campos de gelo serão

os prados do Elísio.

 

 

Persephone the Wanderer

 


In the second version, Persephone
is dead. She dies, her mother grieves –
problems of sexuality need not
trouble us here.

 

Compulsively, in grief, Demeter
circles the earth. We don’t expect to know
what Persephone is doing.
She is dead, the dead are mysteries.

 

We have here
a mother and a cipher: this is
accurate to the experience
of the mother as

 

she looks into the infant’s face. She thinks:
I remember when you didn’t exist. The infant
is puzzled; later, the child’s opinion is
she has always existed, just as

 

her mother has always existed
in her present form. Her mother
is like a figure at a bus stop,
an audience for the bus’s arrival. Before that,
she was the bus, a temporary
home or convenience. Persephone, protected,
stares out the window of the chariot.

 

What does she see? A morning
in early spring, in April. Now

 

her whole life is beginning — unfortunately,
it’s going to be
a short life. She’s going to know, really,

 

only two adults: death and her mother.
But two is
twice what her mother has:
her mother has

 

one child, a daughter.
As a god, she could have had
a thousand children.

 

We begin to see here
the deep violence of the earth

 

whose hostility suggests
she has no wish
to continue as a source of life.

 

And why is this hypothesis
never discussed? Because
it is not in the story; it only
creates the story.

 

In grief, after the daughter dies,
the mother wanders the earth.
She is preparing her case;
like a politician
she remembers everything and admits
nothing.

 

For example, her daughter’s
birth was unbearable, her beauty
was unbearable: she remembers this.
She remembers Persephone’s
innocence, her tenderness —

 

What is she planning, seeking her daughter?
She is issuing
a warning whose implicit message is:
what are you doing outside my body?

You ask yourself:
why is the mother’s body safe?

 

The answer is
this is the wrong question, since

 

the daughter’s body
doesn’t exist, except
as a branch of the mother’s body
that needs to be
reattached at any cost.

 

When a god grieves it means
destroying others (as in war)
while at the same time petitioning
to reverse agreements (as in war also):

 

if Zeus will get her back,
winter will end.

 

Winter will end, spring will return.
The small pestering breezes
that I so loved, the idiot yellow flowers –

 

Spring will return, a dream
based on a falsehood:
that the dead return.

 

Persephone
was used to death. Now over and over
her mother hauls her out again –

 

You must ask yourself:
are the flowers real? If

 

Persephone “returns” there will be
one of two reasons:

 

either she was not dead or
she is being used
to support a fiction –

 

I think I can remember
being dead. Many times, in winter,
I approached Zeus. Tell me, I would ask him,
how can I endure the earth?

 

And he would say,
in a short time you will be here again.
And in the time between

 

you will forget everything:
those fields of ice will be
the meadows of Elysium.

 

 

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

 

Averno – 17/18



 

 Tordo Sargento

 

A neve começou a cair, sobre a superfície de toda a terra.

Isso não pode ser verdade. E no entanto parecia verdade,

caindo mais e mais pesada em tudo o que pude ver.

Os pinheiros se tornaram quebradiços com o gelo.

 

Aqui é o lugar sobre o qual lhe falei,

onde de hábito à noite eu vinha, ver as graúnas de asas vermelhas,

às quais aqui chamamos tordo sargento

cintilar vermelho da vida que se esvai –

Mas no meu caso – penso que a culpa que trago comigo queira dizer

que não vivi muito bem.

 

Alguém como eu não escapa. Penso que você dorme por breve instante,

antes de afundar no terror da próxima vida

a não ser

 

que a alma seja de alguma outra forma

mais ou menos consciente do que antes foi,

mais ou menos cúpida.

 

Após muitas vidas, talvez alguma coisa mude.

Penso que no fim o que você desejar

você será capaz de ver –

 

Você não mais necessita

morrer e retornar por outra vez.


 

Thrush

 


Snow began falling, over the surface of the whole earth.
That can’t be true. And yet it felt true,
falling more and more thickly over everything I could see.
The pines turned brittle with ice.

 

This is the place I told you about,
where I used to come at night to see the red-winged blackbirds,
what we call thrush here–
red flicker of the life that disappears –

But for me – I think the guilt I feel must mean
I haven’t lived very well.

 

Someone like me doesn’t escape. I think you sleep awhile,
then you descend into the terror of the next life
except

 

the soul is in some different form,
more or less conscious than it was before,
more or less covetous.

 

After many lives, maybe something changes.
I think in the end what you want
you’ll be able to see –

 

Then you don’t need anymore
to die and come back again.

 

 

 

Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

  Argonautas   E se a alma deve conhecer-se a si mesma ela deve voltar os olhos para outra alma: * o estrangeiro e inimigo, vim...