sábado, 31 de outubro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )

 

Averno – 8/18

 

Estrela vespertina

 

Nesta noite, pela primeira vez após muitos anos,

veio a mim de novo

uma visão do esplendor da terra:

 

no céu do anoitecer

a primeira estrela pareceu

crescer em brilho

enquanto a terra escurecia

 

até não poder mais tornar-se escura.

E a luz, que era a luz da morte,

pareceu restituir à terra

 

seu poder de consolação. Não havia

outras estrelas. Apenas aquela

cujo nome eu conhecia

 

pois em minha outra vida eu a

feri: Vênus,

estrela do anoitecer,

 

a você dedico

minha visão, pois sobre esta superfície vazia

 

você lançou luz suficiente

para tornar meu pensamento

outra vez visível.

 

 

 

The Evening Star

 

 

Tonight, for the first time in many years,

there appeared to me again

a vision of the earth’s splendor:

 

 

in the evening sky

the first star seemed

to increase in brilliance

as the earth darkened

 

 

until at last it could grow no darker.

And the light, which was the light of death,

seemed to restore to earth

 

 

its power to console. There were

no other stars. Only the one

whose name I knew

 

 

as in my other life I did her

injury: Venus,

star of the early evening,

 

 

to you I dedicate

my vision, since on this blank surface

 

 

you have cast enough light

to make my thought

visible again.

 

 

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Louise Glück (EUA: 1943 – )


 

Averno – 7/18

 

Fuga

 

1.

Eu era o homem porque era mais alta.

Minha irmã decidiu

quando deveríamos comer.

De tempo em tempo, ela teria um bebê.

 

2.

Então a minha alma apareceu.

Quem é você, eu disse.

E a minha alma disse,

Sou a sua alma, a encantadora desconhecida.

 

3.

Nossa irmã morta

esperou, oculta na cabeça de minha mãe.

Nossa irmã morta não era nem

homem nem mulher. Era como uma alma.

 

4.

A minha alma foi adotada:

Uniu-se a um homem.

Não a um homem real, o homem

que eu fingia ser, brincando com a minha irmã.

 

5.

Ela está voltando para mim – deitar-me no sofá

refrescou minha memória.

A minha memória é como um porão cheio de papéis velhos:

nada nunca muda.

 

6.

Tive um sonho: a minha mãe caiu de uma árvore.

Depois que ela caiu, a árvore morreu:

havia durado além de sua utilidade.

A minha mãe estava ilesa – suas flechas desapareceram, suas asas

viraram braços. Criatura de Fogo: Sagitário. Ela se encontra em –

 

um jardim suburbano. Ele está voltando para mim.

 

7.

Ponho o livro de lado. O que é uma alma?

Uma bandeira esvoaçando

bem alto sobre o pólo, se você me entende.

 

O corpo

encolhe-se temeroso no matagal onírico.

 

8.

Bem, estamos aqui para fazer algo a respeito disso.

(com sotaque alemão.)

 

9.

Tive um sonho: estamos em guerra.

A minha mãe deixa a sua besta sobre a relva crescida.

 

(Sagitário, o arqueiro)

 

Minha infância, para sempre a mim interditada,

ficou dourada como um jardim de outono,

adubado com uma grossa camada de feno do pântano salgado.

 

10.

Um arco dourado: um presente útil em tempo de guerra.

 

Quão pesado ele era – nenhuma criança podia segurá-lo.

 

Exceto eu: eu podia segurá-lo.

11.

Fui ferida. O arco

era agora uma harpa, suas cordas ferindo

fundo a minha palma. Em um sonho

 

ela produz tanto a ferida quanto a sua cicatrização.

 

12.

A minha infância: a mim interditada. Ou está

ela sob o adubo – fértil.

 

Mas muito escura. Muito escondida.

 

13.

No escuro, a minha alma disse

eu sou a sua alma.

 

Ninguém pode me ver; apenas você –

apenas você pode me ver.

 

14.

E eu disse, você deve confiar em mim.

 

Significado: se você mexer na árvore,

você sangrará até a morte.

 

15.

Por que não posso gritar?

 

Eu deveria estar escrevendo a minha mão está sangrando,

sentindo dor e horror – o que

senti no sonho, como uma baixa de guerra.

 

16.

Ela está voltando para mim.

Pereira. Macieira.

 

Eu costumava sentar lá

retesando arcos de meu coração.

 

17.

Então a minha alma apareceu. Ela disse

assim como ninguém pode me ver, ninguém

pode ver o sangue.

 

Também: ninguém pode ver a harpa.

 

Então eu disse

posso salvá-la. Querendo dizer

isso é um teste.

 

18.

Quem é “você”? Como em

 

“Você está cansada da dor invisível?”

 

19.

Como um pássaro separado da luz do dia:

 

assim foi a minha infância.

 

20.

Eu era o homem porque eu era mais alta.

 

Mas eu não era alta –

nunca me olhei em um espelho?

 

21.

Silêncio no berçário,

o jardim consultório. Então:

 

O que a harpa sugere?

 

22.

Eu sei o que você quer –

você quer Orfeu, você quer a morte.

 

Orfeu que disse “Ajude-me a encontrar Eurídice”.

 

Então a música começou, o lamento da alma

ao ver o corpo esvanecer.

 

 

Fugue

 

1.

I was the man because I was taller.

My sister decided

when we should eat.

From time to time, she’d have a baby.

 

2.

Then my soul appeared.

Who are you, I said.

And my soul said,

I am your soul, the winsome stranger.

 

3.

Our dead sister

waited, undiscovered in my mother’s head.

Our dead sister was neither

a man nor a woman. She was like a soul.

 

4.

My soul was taken in:

it attached itself to a man.

Not a real man, the man

I pretended to be, playing with my sister.

 

5.

It is coming back to me – lying on the couch

has refreshed my memory.

My memory is like a basement filled with old papers:

nothing ever changes.

 

6.

I had a dream: my mother fell out of a tree.

After she fell, the tree died:

it had outlived its function.

My mother was unharmed – her arrows disappeared, her wings

turned to arms. Fire creature: Sagittarius. She finds herself in –

 

a suburban garden. It is coming back to me.

 

7.

I put the book aside. What is a soul?

A flag flown

too high on the pole, if you know what I mean.

 

The body

cowers in the dreamlike underbrush.

 

8.

Well, we are here to do something about that.

(In a German accent.)

 

9.

I had a dream: we are at war.

My mother leaves her crossbow in the high grass.

 

(Sagittarius, the archer.)

 

My childhood, closed to me forever,

turned gold like an autumn garden,

mulched with a thick layer of salt marsh hay.

 

10.

A golden bow: a useful gift in wartime.

 

How heavy it was – no child could pick it up.

 

Except me: I could pick it up.

 

11.

Then I was wounded. The bow

was now a harp, its string cutting

deep into my palm. In the dream

 

it both makes the wound and seals the wound.

 

12.

My childhood: closed to me. Or is it

under the mulch – fertile.

 

But very dark. Very hidden.

 

13.

In the dark, my soul said

I am your soul.

 

No one can see me; only you –

only you can see me.

 

14.

And it said, you must trust me.

 

Meaning: if you move the harp,

you will bleed to death.

 

15.

Why can’t I cry out?

 

I should be writing my hand is bleeding,

feeling pain and terror – what

I felt in the dream, as a casualty of war.

 

16.

It is coming back to me.

 

Pear tree. Apple tree.

 

I used to sit there

pulling arrows out of my heart.

 

17.

Then my soul appeared. It said

just as no one can see me, no one

can see the blood.

 

Also: no one can see the harp.

Then it said

I can save you. Meaning

this is a test.

 

18.

Who is “you”? As in

 

“Are you tired of invisible pain?”

 

19.

Like a small bird sealed off from daylight:

 

that was my childhood.

 

20.

I was the man because I was taller.

 

But I wasn’t tall –

didn’t I ever look in a mirror?

 

21.

Silence in the nursery,

the consulting garden. Then:

 

What does the harp suggest?

 

22.

I know what you want –

you want Orpheus, you want death.

 

Orpheus who said “Help me find Eurydice.”

 

Then the music began, the lament of the soul

watching the body vanish.

Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

  Argonautas   E se a alma deve conhecer-se a si mesma ela deve voltar os olhos para outra alma: * o estrangeiro e inimigo, vim...