domingo, 31 de maio de 2020

Eugenio Montejo (Venezuela: 1938 – 2008)





Amantes 


Amavam-se. Não estavam sós na terra;
possuíam a noite, suas vésperas azuis,
sua celagem.

Viviam um no outro, tocavam-se
como duas pétalas não abertas no fundo
de alguma flor do ar.

Amavam-se. Não estavam sós à margem
de sua primeira noite.

E era a terra que neles se amava,
o ouro noturno de seus contornos,
a galáxia.

Já não teriam duas mortes. Não iam separar-se.
Desnudos, assustados, seus corpos se estendiam
como fileiras de luzes num extenso campo de pouso
onde algo ia chegar vindo de longe,
não demasiadamente tarde.


Amantes


Se amaban. No estaban solos en la tierra;
tenían la noche, sus vísperas azules,
sus celajes.

Vivían uno en el otro, se palpaban
como dos pétalos no abiertos en el fondo
de alguna flor del aire.

Se amaban. No estaban solos a la orilla
de su primera noche.

Y era la tierra la que se amaba en ellos,
el oro nocturno de sus vueltas,
la galaxia.

Ya no tendrían dos muertes. No iban a separarse.
Desnudos, asombrados, sus cuerpos se tendían
como hileras de luces en un largo aeropuerto
donde algo iba a llegar desde muy lejos,
no demasiado tarde.


sábado, 30 de maio de 2020

Katerína Gógou (Grécia: 1940 – 1993)




21 / 24*


25 de maio

Qualquer dia eu abrirei a porta
e sairei à rua
como ontem
E não pensarei em nada exceto
por um pouco no meu pai
e por um pouco no mar – tudo o que ele me deixou –
e na cidade. A cidade que disperdiçaram.
E em nossos amigos que se foram.
Abrirei a porta numa manhã
como ontem e me jogarei
direto no fogo
gritando "fascistas!!"
levantando barricadas e atirando pedras
com uma bandeira vermelha
altaneira brilhando ao sol.
Abrirei a porta – não que esteja com medo
mas quero lhes dizer que não consegui
e vocês terão de aprender
que não devem ir às ruas
sem armas, como eu
– pois não consegui –
senão vocês estarão perdidos como eu
uma "quem liga" uma "já era"
quebrados em pedaços
pelo mar, pela infância
e pelas bandeiras vermelhas.
Qualquer manhã
eu abrirei a porta
e me perderei
no sonho da revolução
com a vasta solidão
de ruas que serão consumidas pelo fogo
com a imensa solidão
de barricadas de papel
e a pecha – não creiam neles –
Agitador.


21 / 24


May 25

One day I'll open the door
and go out into the street
like yesterday
And I won't think of anything but
a bit of my father
and a bit of the sea – all that has left me –
and the city. The city they wasted.
And our lost friends.
I'll open the door one morning
like yesterday and go straight
into the fire
shouting "fascists!!"
raising barricades and throwing stones
with a red flag
lofty and shining in the sun.
I'll open the door – not that I'm scared
but I want to tell you I didn't make it
and you have to learn
you shouldn't go into the street
without arms, like me
– because I didn't make it –
otherwise you'll be lost like me
a "who cares" a "has-been"
broken into pieces
by the sea, childhood
and red flags.
One morning
I'll open the door
and lose myself
in the dream of revolution
with the vast loneliness
of streets that'll be burning
with the immense loneliness
of paper barricades
with the label – don't believe them –
Provocateur.


(*) Do livro Três cliques à esquerda (Three Clicks left). A versão do grego para o inglês é de Jack Hirschman

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Nazim Hikmet (Tessalônica/Grécia: 1902 – Moscou/Rússia: 1963)




Hino à Vida


O cabelo caindo sobre tua testa
esvoaçou de repente.
De repente algo moveu-se no solo.
As árvores estão sussurrando
na escuridão.
Teus braços nus ficarão frios.

Ao longe,
onde não podemos divisar,
a lua deve estar subindo.
Ela não nos alcançou ainda,
deslizando por entre as folhas
para iluminar teus ombros.
Mas sei
que um vento vem com a lua.
As árvores estão sussurrando.
Teus braços nus ficarão frios.

Do alto,
desde os galhos perdidos na escuridão,
algo caiu aos teus pés.
Vieste para mais perto de mim.
Sob minha mão tua carne desnuda é como a pele penujada de uma fruta.
Nem é uma canção do coração nem é “senso comum” -
em frente às árvores, aos pássaros e insetos,
minha mão sobre a carne de minha mulher
está pensando.
Nesta noite minha mão
não pode ler ou escrever.
Nem é amável nem é descortês…
É a língua de um leopardo no salto,
uma folha de uva,
a pata de um lobo.
Para mover-se, respirar, comer, beber.
Minha mão é como a semente
rompendo a casca sob a terra.
Nem é canção do coração nem é “senso comum”,
nem é amável nem descortês.
Minha mão pensando sobre a carne de minha mulher
é a mão do primeiro homem.
Como uma raiz que encontra água subterrânea,
ela me diz:
“Comer, beber, frio, quente, luta, cheiro, cor -
não é viver para morrer
mas morrer para viver...”

E agora
enquanto cabelos femininos vermelhos fustigam-me o rosto,
enquanto algo se move sobre o solo,
enquanto as árvores sussurram na escuridão,
e enquanto a lua eleva-se ao longe
onde não podemos divisar,
minha mão sobre a carne de minha mulher
diante das árvores, dos pássaros e insetos,
quero o direito à vida,
do leopardo no salto, da semente rompendo a casca -
quero o direito do primeiro homem.


Hymn To Life


(Traduzido para o inglês por Randy Blasing e Mutlu Konuk) 

The hair falling on your forehead
suddenly lifted.
Suddenly something stirred on the ground.
The trees are whispering
in the dark.
Your bare arms will be cold.

Far off
where we can't see,
the moon must be rising.
It hasn't reached us yet,
slipping through the leaves
to light up your shoulder.
But I know
a wind comes up with the moon.
The trees are whispering.
Your bare arms will be cold.

From above,
from the branches lost in the dark,
something dropped at your feet.
You moved closer to me.
Under my hand your bare flesh is like the fuzzy skin of a fruit.
Neither a song of the heart nor "common sense"–
before the trees, birds, and insects,
my hand on my wife's flesh
is thinking.
Tonight my hand
can't read or write.
Neither loving nor unloving...
It's the tongue of a leopard at a spring,
a grape leaf,
a wolf's paw.
To move, breathe, eat, drink.
My hand is like a seed
splitting open underground.
Neither a song of the heart nor "common sense,"
neither loving nor unloving.
My hand thinking on my wife's flesh
is the hand of the first man.
Like a root that finds water underground,
it says to me:
"To eat, drink, cold, hot, struggle, smell, color–
not to live in order to die
but to die to live..."

And now
as red female hair blows across my face,
as something stirs on the ground,
as the trees whisper in the dark,
and as the moon rises far off
where we can't see,
my hand on my wife's flesh
before the trees, birds, and insects,
I want the right of life,
of the leopard at the spring, of the seed splitting open–
I want the right of the first man.




quinta-feira, 28 de maio de 2020

Nazim Hikmet (Tessalônica/Grécia: 1902 – Moscou/Rússia: 1963)



Quero morrer antes de ti


Eu
quero morrer antes de ti.
Tu pensas que quem vai mais tarde
encontrará quem foi primeiro?
Não penso assim.
Melhor será se me cremares,
e colocar-me sobre a estufa de teu quarto
numa jarra.

A jarra deve ser de vidro, 
transparente, vidro branco
de modo que tu me vejas dentro...
Olha o meu sacrifício:
renuncio a ser parte da terra,
renuncio a ser uma flor
para poder estar contigo.
E estou me transformando em pó,
para viver contigo.

Mais tarde, quando também morreres,
tu virás para a minha jarra.
E nela viveremos juntos
tua cinza em minha cinza,
até que uma noiva descuidada
ou um neto infiel
jogue-nos fora...

Mas nós
até quando chegado esse tempo
nos mesclaremos
um ao outro
de tal modo que 
mesmo no lixo em que formos jogados
os nossos grãos cairão lado a lado.
Mergulharemos juntos no solo.
E em certo dia, se uma flor silvestre
alimentar-se desse trecho de solo e florescer
sobre seu corpo, definitivamente
surgirão duas flores:
uma és tu
uma sou eu.

Eu
não penso ainda na morte.
Gerarei uma criança.
A vida está jorrando de mim.
Meu sangue está borbulhando.
Viverei, mas muito, muito tempo,
mas contigo.
Tampouco a morte me apavora.
Mas julgo o nosso rito fúnebre
um tanto ou quanto desagradável.
Até que eu morra,
eu penso que isso melhorará.
Há alguma esperança de que tu saias em breve da prisão? 
Uma voz dentro de mim diz:
talvez.


I Want To Die Before You


I 
want to die before you. 
Do you think that who passes later 
will find who's gone before? 
I don't think so. 
You'd better have me burned, 
and put me on the stove in your room 
in a jar. 
The jar shall be made of glass, 
transparent, white glass 
so that you can see me inside... 
You see my sacrifice: 
I renounced from being part of the earth, 
I renounced from being a flower 
to be able to stay with you. 
And I am becoming dust, 
to live with you. 
Later, when you also die, 
you'll come to my jar. 
And we'll live there together 
your ash in my ash, 
until a careless bride 
or an unfaithful grandson 
throws us out of there... 
But we 
until that time 
will mix 
with each other 
so much that 
even in the garbage we are thrown into 
our grains will fall side by side. 
We will dive into the soil together. 
And one day, if a wild flower 
feeds from this piece of soil and blossoms 
above its body, definitely 
there will be two flowers: 
one is you 
one is me. 
I 
don't think of death yet. 
I will give birth to a child. 
Life is flooding from me. 
My blood is boiling. 
I will live, but long, very long, 
but with you. 
Death doesn't scare me either. 
But I find our way of funeral 
rather unlikable. 
Until I die, 
I think this will get better. 
Is there a hope you'll get out of prison these days? 
A voice in me says: 
maybe.




quarta-feira, 27 de maio de 2020

Wole Soyinka (Nigéria: 1934 –)




Conversa ao Telefone


O preço parecia razoável, a localização,
Indiferente. A senhoria jurou que vivia
Fora das dependências. Nada restou
Exceto a confissão “Madame”, adverti,
“Detesto viagem perdida – sou africano.”
Silêncio. Transmissão silenciosa de
Forçada boa-educação. A voz, quando voltou
Veio revestida de batom, longa e dourada
Piteira sugada. Fui traiçoeiramente apanhado
“QUÃO ESCURO?...... eu não ouvira mal......
“VOCÊ É CLARO OU MUITO ESCURO” Botão A, Botão B, fedor
Do hálito rançoso de cabine telefônica
Vermelha. Caixa postal vermelha. Ônibus vermelho
De dois andares recendendo a alcatrão. Era real. Envergonhada
Pelo silêncio mal-educado, a rendição
Exigiu um embaraçado pedido de simplificação.
Atenciosa, até que ela foi, mudando a ênfase –
“VOCÊ É ESCURO? OU MUITO CLARO?” veio a revelação
“Quer dizer – como chocolate puro ou ao leite?”
Sua aceitação foi clínica, massacrante em sua leve
Impessoalidade. Rapidamente, com ajuste de comprimento de onda, 
Escolhi “Sépia oeste-africana” – e reconsiderando,
“Como em meu passaporte.” Silêncio para um espectroscópico
Voo da imaginação, até que a honestidade ressoou seu sotaque
Inflexível sobre o bocal. “O QUE É ISSO?” admitindo
“NÃO SEI O QUE É ISSO” “Como moreno”
“ISSO É ESCURO, NÃO É?” "Não precisamente,
No rosto eu sou moreno, mas Madame deveria ver
O restante de mim. As palmas das mãos, as solas dos pés
São de um louro oxigenado. A fricção produzida –
Isso é ridículo, Madame – quando me sento, faz 
Meu traseiro ficar preto-corvo" – Um momento – percebendo
Seu receptor produzindo uma trovoada
Em minhas orelhas – “Madame”, pleiteei, “não gostaria
De ver por si mesma?" 


The Telephone Conversation


The price seemed reasonable, location 
Indifferent. The landlady swore she lived 
Off premises. Nothing remained 
But self-confession “Madam, I warned, 
“I hate a wasted journey - I am African.” 
Silence. Silenced transmission of 
Pressurized good–breeding. Voice, when it came 
Lipstick-coated, long gold-rolled 
Cigarette-holder pipped. Caught I was foully 
“HOW DARK?...... I had not misheard…… 
“ARE YOU LIGHT OR VERY DARK?” Button B, Button A, stench 
Of rancid breath of public hide-and–speak 
Red booth. Red pillar box. Red double-tiered 
Omnibus squelching tar. It was real. Shamed 
By ill-mannered silence, surrender 
Pushed dumbfounded to beg simplification. 
Considerate she was, varying the emphasis - 
“ARE YOU DARK? OR VERY LIGHT?" Revelation came 
“You mean – like plain or milk chocolate?” 
Her assent was clinical, crushing in its light 
Impersonality, Rapidly, wave length adjusted, 
I chose “West African sepia” - and as afterthought, 
“Down in my passport.” Silence for spectroscopic 
Flight of fancy, till truthfulness clanged her accent 
Hard on the mouthpiece. “WHAT IS THAT?” conceding 
“DON’T KNOW WHAT THAT IS” “Like brunette.” 
THAT’S DARK, ISN’T IT?” "Not altogether, 
Facially, I am a brunette, but Madam you should see 
The rest of me. Palm of my hand, soles of my feet 
Are a peroxide blonde. Friction caused - 
Foolishly, Madam – by sitting down, has turned 
My bottom raven black" - One moment – sensing 
Her receiver rearing on the thunderclap 
About my ears - “Madam” I pleaded “wouldn’t you rather 
See for yourself?”




terça-feira, 26 de maio de 2020

Jorge Luis Borges (Argentina:1899 – 1986)




Arte Poética


Olhar o rio feito de tempo e água
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
e que os semblantes passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sonho
que sonha não sonhar e que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sonho.

Ver no dia e no ano um símbolo
dos dias do homem e de seus anos,
converter o ultraje dos anos
em uma música, um rumor, e um símbolo,

ver na morte o sonho, no ocaso
um triste ouro, tal é a poesia
que é imortal e pobre. A poesia
volta como a aurora e o ocaso.

Às vezes nas tardes um rosto
nos olha do fundo de um espelho;
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela nosso próprio rosto.

Também é como o rio interminável
que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.


Arte Poética


Mirar el río hecho de tiempo y agua
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua.

Sentir que la vigilia es otro sueño
que sueña no soñar y que la muerte
que teme nuestra carne es esa muerte
de cada noche, que se llama sueño.

Ver en el día o en el año un símbolo
de los días del hombre y de sus años,
convertir el ultraje de los años
en una música, un rumor, y un símbolo,

ver en la muerte el sueño, en el ocaso
un triste oro, tal es la poesía
que es inmortal y pobre. La poesía
vuelve como la aurora y el ocaso.

A veces en las tardes una cara
nos mira desde el fondo de un espejo;
el arte debe ser como ese espejo
que nos revela nuestra propia cara.

También es como el río interminable
que pasa y queda y es cristal de un mismo
Heráclito inconstante, que es el mismo
y es otro, como el río interminable.




segunda-feira, 25 de maio de 2020

Eugenio Montejo (Venezuela: 1938 – 2008)




A Poesia


A poesia cruza a terra solitária,
Apoia sua voz no sofrimento do mundo 
e nada pede
nem sequer palavras.

Vem de longe e sem hora, nunca avisa;
tem a chave da porta.
Ao entrar sempre se detém a olhar-nos.
Depois abre sua mão e nos entrega
uma flor ou um seixo, algo secreto,
mas tão intenso que o coração palpita
demasiadamente veloz. E despertamos.


La Poesía 


La poesía cruza la tierra sola, 
apoya su voz en el dolor del mundo
y nada pide
ni siquiera palabras.

Llega de lejos y sin hora, nunca avisa;
tiene la llave de la puerta.
Al entrar siempre se detiene a mirarnos.
Después abre su mano y nos entrega
una flor o un guijarro, algo secreto, 
pero tan intenso que el corazón palpita
demasiado veloz. Y despertamos.



domingo, 24 de maio de 2020

Walt Whitman (Estados Unidos:1819 – 1892)




Continuidades


Nada é realmente e para sempre perdido ou pode se perder,
Nenhum nascimento, identidade, forma – nenhum objeto do mundo.
Nem a vida, nem a força, nem qualquer coisa visível;
A aparência não deve frustrar, nem uma esfera deslocada aturdir vossa mente.
Amplos são o tempo e o espaço – amplos os campos da Natureza.
O corpo, apático, envelhecido, frio – as brasas deixadas por chamas passadas,
A luz fenecida no olhar, a seu tempo tornarão a fulgir;
O sol que descende no oeste ascende em manhãs e tardes continuadas;
Aos torrões congelados sempre retornam à lei invisível da primavera,
Com a grama e as flores e os frutos do verão e o milho.


Continuities


Nothing is ever really lost, or can be lost, 
No birth, identity, form–no object of the world. 
Nor life, nor force, nor any visible thing; 
Appearance must not foil, nor shifted sphere confuse thy brain. 
Ample are time and space–ample the fields of Nature. 
The body, sluggish, aged, cold–the embers left from earlier fires, 
The light in the eye grown dim, shall duly flame again; 
The sun now low in the west rises for mornings and for noons continual; 
To frozen clods ever the spring's invisible law returns, 
With grass and flowers and summer fruits and corn.







sábado, 23 de maio de 2020

Nazim Hikmet (Tessalônica/Grécia: 1902 – Moscou/Rússia: 1963)




Um Triste Estado de Liberdade


Tu desperdiças a atenção de teus olhos,
o labor cintilante de tuas mãos,
e sova massa suficiente para dúzias de pães
dos quais não provarás sequer uma migalha;
tu és livre para escravizar-te aos outros -
tu és livre para tornar o rico mais rico.

Do momento em que tu nasces
eles plantam a tua volta
moinhos que trituram mentiras
mentiras que perduram por tua vida.
Tu continuas pensando em tua grande liberdade
um dedo sobre a fronte
livre para possuíres uma livre consciência.

Tua cabeça dobrou-se como se meio cortada rente à nuca,
teus braços longos, pendurados,
teu perambular em tua grande liberdade:
tu és livre
com a liberdade de estar desempregado.

Tu amas o teu país
como se a coisa a ti mais próxima, mais preciosa. 
Mas um dia, por exemplo,
eles poderão endossá-lo à América,
e tu, também, com a tua grande liberdade -
tu tens a liberdade de transformar-te em uma base aérea.

Tu podes proclamar que alguém vive
não como uma ferramenta, um número ou uma conexão,
mas como um ser humano -
então de súbito eles algemam teus pulsos.
Tu és livre para seres preso, enjaulado
e mesmo enforcado.

Não há nem uma cortina de ferro
ou de madeira nem de tule
em tua vida;
é inútil escolheres a liberdade:
tu és livre.
Mas essa espécie de liberdade
é um triste acontecimento sob as estrelas.


A Sad State of Freedom

(Traduzido do grego por Taner Baybars)


You waste the attention of your eyes, 
the glittering labour of your hands, 
and knead the dough enough for dozens of loaves 
of which you'll taste not a morsel; 
you are free to slave for others– 
you are free to make the rich richer. 

The moment you're born 
they plant around you 
mills that grind lies 
lies to last you a lifetime. 
You keep thinking in your great freedom 
a finger on your temple 
free to have a free conscience. 

Your head bent as if half-cut from the nape, 
your arms long, hanging, 
your saunter about in your great freedom: 
you're free 
with the freedom of being unemployed. 

You love your country 
as the nearest, most precious thing to you. 
But one day, for example, 
they may endorse it over to America, 
and you, too, with your great freedom– 
you have the freedom to become an air-base. 

You may proclaim that one must live 
not as a tool, a number or a link 
but as a human being– 
then at once they handcuff your wrists. 
You are free to be arrested, imprisoned 
and even hanged. 

There's neither an iron, wooden 
nor a tulle curtain 
in your life; 
there's no need to choose freedom: 
you are free. 
But this kind of freedom 
is a sad affair under the stars.



sexta-feira, 22 de maio de 2020

Chinua Achebe (Nigéria: 1930 – 2013)



Um "Se" da História 


Agora imagine: houvesse Hitler vencido
a sua Guerra que bagunça os livros
de história seriam hoje. Os americanos
descartados por veredito da vitória
enforcaram um comandante japonês por
crimes de guerra. Uma geração depois
um dedo que coça cutuca suas costelas:
tivemos que enforcar
o nosso Westmoreland
por crimes mais sanguinolentos
no Vietnã!
Mas todo mundo agora deve
saber que o enforcamento exige muito mais
que uma vítima não importa a sua
manifesta carga de culpa. Pois mesmo
ao linchar um juiz sem valor é preciso –
um vencedor. Agora imagine se Hitler
houvesse apostado e vencido que caos
o mundo iria conhecer. Seu
implacável inimigo do lado de lá do Canal
certamente seria morto por
crimes de Guerra. Quanto a H. Truman,
o vilão de Hiroshima, bem!
Tivesse Hitler vencido a guerra
de Gaulle não precisaria de nenhum
julgamento adicional pois não fora ele
antes condenado por Paris
a morrer por sua traição
à França?... Tivesse Hitler vencido,
Vidkun Quisling teria mantido
seu cargo de Primeiro Ministro
da Noruega, simplesmente por
Hitler haver vencido.


An "If" of History


Just think, had Hitler won
his war the mess our history
books would be today. The Americans
flushed by verdict of victory
hanged a Japanese commander for
war crimes. A generation later
an itching finger pokes their ribs:
We've got to hang
our Westmoreland
for bloodier crimes
in Viet Nam!
But everyone by now must
know that hanging takes much more
than a victim no matter his
load of manifest guilt. For even
in lynching a judge of sorts is needed
a winner. Just think if Hitler
had gambled and won what chaos
the world would have known. His
implacable foe across the Channel
would surely have died for
war crimes. And as for H. Truman,
crimes de Guerra. Quando a H. Truman,
the Hiroshima villain, well!
Had Hitler won his war
de Gaulle would have needed no
further trial for was he not
condemned already by Paris
to die for his treason
to France?... Had Hitler won,
Vidkun Quisling would have kept
his job as Prime Minister
of Norway, simply by
Hitler winning.



quinta-feira, 21 de maio de 2020

Emily Dickinson (Estados Unidos: 1830 -1886)



Poema J695 / F720


Como se o mar se partisse
E a um outro mar mostrasse –
E aquele – a um outro – e os Três
Fossem a presunção talvez –

De outras eras de Mares –
inexplorados Litorais –
Eles mesmos o Limite de vindouros Mares –
A eternidade – é aqueles Tais.


J695 / F720


As if the Sea should part
And show a further Sea –
And that – a further – and the Three
But a Presumption be –

Of Periods of Seas –
Unvisited of Shores –
Themselves the Verge of  Seas to be –
Eternity – is Those –


quarta-feira, 20 de maio de 2020

Miguel de Cervantes (Espanha: 1547 - 1616)




De Dom Quixote

 

Bem sei que morro e mesmo se não crido

É mais certo o morrer, como é mais certo

ver-me aos teus pés, oh, bela ingrata!, morto,

antes que de adorar-te arrependido.

 

Se estiver eu na região do olvido,

de vida e glória e de favor deserto,

ali se verá que em meu peito aberto

o teu lindo rosto está esculpido.

 

Esta relíquia eu guardo para o duro

transe que ao risco expõe minha porfia,

que em teu próprio vigor se fortalece.

 

Ai daquele que navega, o céu escuro,

por mar ignoto e perigosa via,

onde norte ou porto não se oferece!

 


Del Don Quijote

 

 

Yo sé que muero, y si no soy creído

es más cierto el morir, como es más cierto

verme a tus pies, oh bella ingrata!, muerto,

antes que de adorarte arrepentido.

 

Podré yo verme en la región del olvido,

de vida y gloria y de favor desierto,

y allí verse podrá en mi pecho abierto

como tu hermoso rostro está esculpido.

 

Que esta relíquia guardo para el duro

trance que me amenaza mi porfia,

que en tu mismo rigor se fortalece.

 

Ay de aquel que navega, el cielo escuro,

por mar no usado y peligrosa via,

adonde norte o puerto no se ofrece!

 

 


terça-feira, 19 de maio de 2020

Chinua Achebe (Nigéria: 1930 – 2013)




Mãe em Campo de Refugiados


Nenhuma ‘Madona e a Criança’ se igualaria
àquele quadro de ternura de uma mãe
por um filho que logo ela teria de esquecer.
O ar estava carregado de odores

de diarreia de crianças não lavadas
de costelas erodidas e descarnados
traseiros esforçando-se em penosos
passos atrás de barrigas estufadas. Ali

muitas mães há tempos haviam cessado
de importar-se mas esta; sustentou
um esboço de sorriso entre seus dentes,
e em seus olhos o que restou do orgulho
de uma mãe ao pentear o que sobrara
do cabelo ferruginoso em seu crânio e então –

o canto em seus olhos – começou com cuidado
a reparti-los... Em outra vida este
teria sido um pequeno ato rotineiro
e insignificante antes do seu
café da manhã e da escola; agora ela
  
o fazia como se depositando flores
sobre uma minúscula sepultura.


A Mother In A Refugee Camp


No Madonna and Child could touch
that picture of a mother's tenderness
for a son she soon would have to forget.
The air was heavy with odours
of diarrhoea of unwashed children
with washed-out ribs and dried-up
bottoms struggling in laboured
steps behind blown empty bellies. Most
mothers there had long ceased
to care but not this one; she held
a ghost smile between her teeth
and in her eyes the ghost of a mother's
pride as she combed the rust-coloured
hair left on his skull and then -
singing in her eyes - began carefully
to part it… In another life this
would have been a little daily
act of no consequence before his
breakfast and school; now she
did it like putting flowers
on a tiny grave.


segunda-feira, 18 de maio de 2020

Federico García Lorca (Espanha: 1898 – 1936)




Soneto do Doce Queixume

Tenho receio de perder o encanto
de teus olhos de estátua e a pronúncia
com que a solitária flor de teu hálito
à noite minha face acaricia.

Tenho pena de ser aqui nesta orla
tronco sem galhos; e o que mais lamento
é não dispor de flor, polpa ou argila,
pro vaga-lume de meu sofrimento.

Se tu és a minha cruz e a dor molhada,
se és o tesouro que guardo ocultado,
se sou o cão de teu senhor e mais nada,

não deixes que de ti seja eu privado,
e a água de teu rio conserva ornada
com folhas de meu outono alienado.


Soneto de la Dulce Queja


Tengo miedo a perder la maravilla
de tus ojos de estatua, y el acento
que de noche me pone en la mejilla
la solitaria rosa de tu aliento.

Tengo pena de ser en esta orilla
tronco sin ramas; y lo que más siento
es no tener la flor, pulpa o arcilla,
para el gusano de mi sufrimiento.

Si tú eres el tesoro oculto mío,
si eres mi cruz y mi dolor mojado,
si soy el perro de tu señorío,

no me dejes perder lo que he ganado
y decora las aguas de tu río
con hojas de mi otoño enajenado.
 

Jorge Seferis (Grécia: 1900 – 1971)

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