Sobre um Verso Estrangeiro
(Les Regrets, de Joachim Du
Bellay)
Para Elli, Natal, 1931
(Da tradução do grego para o
inglês de Edmund Keeley e Philip Sherrard)
Afortunado aquele que fez a
viagem de Odisseu.
Afortunado se ao partir ele
sentiu o cordame de um amor forte em seu corpo, espalhando-se como veias pelas
quais o sangue pulsa.
Um amor de indissolúvel
ritmo, inconquistável como a música e interminável porque ele nasceu quando
nascemos e quando morre, se é que morre, nem nós sabemos nem tampouco outrem.
Peço a Deus que me ajude a
dizer, nalgum momento de alegria plena, o que é esse amor:
por vezes quando me acomodo
envolvido pela solidão do exílio eu ouço o seu distante murmúrio como o som do
mar que se encontrou com uma inexplicável tempestade repentina.
E de novo e de novo a sombra
de Odisseu surge à minha frente, seu olho avermelhado pelo sal das águas,
pelo anseio amadurecido de
ver por outra vez a fumaça se evolando de sua aconchegante lareira e o
envelhecido cão a esperá-lo à porta.
Um homem avantajado,
sussurrando por entre a barba embranquecida palavras em nossa língua, como
falada há três mil anos.
Ele estende a palma calejada
pelas cordas e pelo timão, sua pele envelhecida pelo vento seco do norte, pelo
calor e pela neve.
É como se ele quisesse
expulsar de nosso meio o sobre-humano Ciclope de um só olho, as Sereias que nos
fazem esquecer com seu canto, Cila e Caríbdis:
tantos monstros complexos
que nos impedem de lembrar que ele também foi um homem lutando pelo mundo com
corpo e alma.
Ele é o poderoso Odisseu:
aquele que ideou o cavalo de madeira com que os aqueus conquistaram Tróia.
Imagino-o vindo para
dizer-me como também posso construir um cavalo de madeira para conquistar a
minha própria Tróia.
Porque ele fala com
humildade e calma, sem esforço, como se fosse meu pai
ou certos velhos marinheiros
da minha infância que, aprendendo em suas redes com o inverno que chegava e o
vento que se encolerizava,
costumavam declamar, com
lágrimas nos olhos, a canção de Erotócrito**; era então que eu estremeceria em
meu sono diante do injusto destino de Aretusa descendo pelos degraus de
mármore.
Ele fala-me da áspera dor
que se sente quando o navio singra com suas velas enfunadas pelas lembranças e
sua alma que se transmuta em leme;
do estar-se só, na escuridão
da noite, e desamparado como a palha no chão da debulha;
da amargura de ver seus
companheiros tragados um a um pela fúria dos elementos e dispersados;
e do como revigorar-se de
modo estranho ao conversar com os mortos quando os vivos que sobram já não são
bastantes;
Ele fala... Ainda vejo suas
mãos que souberam como avaliar o cinzelamento da sereia na proa
apresentando-me o mar azul
sem ondas no coração do inverno.
Upon a Foreign Verse
(Les Regrets by Joachim Du
Bellay)
For Elli, Christmas 1931
Fortunate he who's made the
voyage of Odysseus.
Fortunate if on setting out
he's felt the rigging of a love strong in his body, spreading there like veins
where the blood throbs.
A love of indissoluble
rhythm, unconquerable like music and endless
because it was born when we
were born and when it dies, if it does die, neither we know and nor does anyone
else.
I ask God to help me say, at
some moment of great happiness, what that love is:
sometimes when I sit
surrounded by exile I hear its distant murmur like the sound of sea that has
met with an inexplicable squall.
And again and again the
shade of Odysseus appears before me, his eye red from the waves' salt,
from his ripe longing to see
once more the smoke ascending from his warm hearth and the dog grown old
waiting by the door.
A large man, whispering
through his whitened beard words in our language spoken as it was three
thousand years ago.
He extends a palm calloused
by the ropes and the tiller, his skin weathered by the dry north wind, by heat
and snow.
It's as if he wants to expel
from among us the superhuman one-eyed Cyclops, the Sirens who make you forget
with their song, Scylla and Charybdis:
so many complex monsters
that prevent us from remembering that he too was a man struggling in the world
with soul and body.
He is the mighty Odysseus:
he who proposed the wooden horse with which the Achaeans captured Troy.
I imagine he comes to tell
me how I too may build a wooden horse to capture my own Troy.
Because he speaks humbly and
calmly, without effort, as though he were my father
or certain old sailors of my
childhood who, leaning on their nets with winter coming on and the wind
angering,
used to recite, with tears
in their eyes, the song of Erotokritos;
it was then I would shudder
in my sleep at the unjust fate of Aretousa descending the marble steps.
He tells me of the harsh
pain you feel when the ship's sails swell with memory and your soul becomes a
rudder;
of being alone, dark in the
night, and helpless as chaff on the threshing floor;
of bitterness of seeing your
companions one by one pulled down into the elements and scattered;
and of how strangely you gain
strength conversing with the dead when the living who remain are no longer
enough.
He speaks ... I still see
his hands that knew how to judge the carving of the mermaid at the prow
presenting me the waveless
blue sea in the heart of winter.
(*) Erotókritos (do grego moderno, Ερωτόκριτος):
Epopéia romântica, composta pelo poeta cretense Vitsentzos Kornaros no início
do século XVII. Narra os amores de dois jovens: Erotócrito (que aparece como
Rotokritos ou Rokritos) e Aretoussa ou Aretusa (do grego Αρετούσα). Os temas
tratados são a honra, a amizade, a posição social e a coragem.
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